Memórias de casa

No aniversário de 72 anos de Belchior, lembramos sua relação com o Ceará, onde sempre aproveitava as passagens para desenvolver projetos e cultivar parcerias artísticas

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@diariodonordeste.com.br

Um ano e meio após a morte do bardo cearense, outro aniversário sem sua presença ainda mexe com a memória coletiva - em especial sobre o fim "inusitado" de sua vida e carreira. Antônio Carlos Belchior nasceu em Sobral (CE), no dia 26 de outubro de 1946. Um dos ícones da geração do Pessoal do Ceará (ao lado de Fagner, Ednardo, Fausto Nilo, Amelinha e outros nomes), o sobralense faleceu após um longo período de reclusão, sem agenda regular de projetos ou contato com a família.

Dentre as últimas passagens de Belchior pelo Ceará, o produtor e parceiro artístico Antonio Severiano Batista, o "Tota", recorda que o compositor se movimentava pelo Estado natal, realizando shows programados e improvisados; além de garimpar obras artísticas por onde estivesse. Autor do clássico álbum da MPB, "Alucinação" (1976), Belchior deixou um legado vasto e influente na música. E, de maneira mais informal, manteve ligação com as artes visuais, como colecionador e realizador.

"Não tinha lugar que ele não procurasse artesãos, pintores. O Belchior sempre me disse que o artista plástico era um verdadeiro artesão", diz Tota. O produtor lembra que o compositor costumava separar o dinheiro que ganhava com o cachê dos shows para comprar, às vezes, na mesma noite da apresentação, alguma obra de arte.

"Ele tinha uma coleção enorme. (Colecionava) Zé Tarcísio, Antônio Bandeira, Aldemir Martins (todos cearenses)", detalha o produtor. No início da década de 70, o artista plástico Sérgio Pinheiro morou com Belchior e recorda como foi o início dessa vertente do poeta sobralense. "Era uma pessoa muito determinada, disciplinada, e nesse tempo começou a fazer desenhos. Bem no começo, copiava a obra do Miró", situa Sérgio, cujo próprio trabalho foi alvo do colecionismo do cantor.

Quando Belchior passou a produzir seriamente na seara das artes visuais, ambos já não eram próximos. "Daí ele começou a fazer aqueles trabalhos, como os retratos do Drummond (gravuras inspiradas no rosto e na obra do poeta mineiro)", identifica.

Atípico

Na música, Tota observa como Belchior aproveitava as passagens pelo Ceará para experimentar projetos atípicos. Na primeira metade dos anos 2000, o compositor viajou pelo Estado, apresentando-se ao lado do cantor brega e humorista Falcão. "São totalmente diferentes, né? É a mesma coisa de misturar abacate com jerimum", brinca.

"Mas o Falcão foi o artista que mais cantou com o Belchior pelo interior do Ceará. Nesse tempo ele (Belchior) vinha pouco (ao Ceará). E me dizia que eu conseguia (com a produção dessa agenda) segurá-lo por aqui", relata Tota. O produtor distingue que Belchior, apesar da influência e notoriedade da carreira no cenário da MPB, mantinha ainda o gosto de realizar shows para atender à expectativa dos fãs.

Confira playlist:

Tota conta que o sobralense se encantava com o movimento das quermesses, das comemorações católicas pelas cidades do Interior e, nessas ocasiões, animava-se pra improvisar um show de última hora. "Eu divulgava no mesmo dia, e ainda lotava. Ele e outro violonista já faziam o show", acrescenta.

Inacabado

O cantor de forró Chico Pessoa teve uma experiência de convivência singular com Belchior. O poeta chamou Chico para produzir um disco de interpretações da obra do sobralense. O trabalho foi gravado em estúdio, em Fortaleza, mas nunca foi lançado.

Belchior assinava a produção ao lado de Zé do Norte. A aproximação entre o Bardo e Chico Pessoa aconteceu depois do lançamento do disco "Chico Pessoa e Os Pessoal do Forró" (2001). "Ele tinha gostado muito, especificamente da música 'Minha Morena'", destaca o cantor.

O sobralense deixou Chico Pessoa escolher mais de 20 canções para gravar. Belchior pagou todos os custos do registro das faixas e os artistas trabalharam durante três meses. Porém, na sequência, Belchior "sumiu" e não finalizou o projeto.

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Chico conta que não faltam convites para lançar o álbum, inédito até hoje. Além de Zé do Norte, o disco conta com a sanfona de Waldonys e Adelson Viana.

Sobre a postura de Belchior como produtor, Chico recorda que o poeta fazia um trabalho de "direção artística" da gravação. "A obra dele já falava por si só. Eu transformava alguma canção num xote (por exemplo), e ele aprovava ou não", detalha.

O cantor destaca que somente depois da morte do poeta passou a conhecer mais sua obra. "Ouvi a composição 'Princesa de meu lugar', que Elba Ramalho gravou, só depois que ele morreu. É uma história feita pra Sobral, fala das carnaubeiras", acrescenta.

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