Um alerta de Belchior: artista manteve inspiração política

Pesquisadora aborda como o cearense desenvolveu uma postura combativa ao regime militar

Escrito por Josely Teixeira Carlos , josyteixeira@usp.br

No grande mapa da música brasileira, Belchior foi sem nenhuma dúvida um dos principais compositores a denunciar a ditadura militar no Brasil. Do conjunto de canções do sobralense que externam a tirania desse regime governamental implementado no País entre 1964 e 1985, destacam-se "Como nossos pais", "Como se fosse pecado" e "Galos, noites e quintais", mas é "Pequeno mapa do tempo" a que evidencia de forma dilacerante o sentimento mais característico de uma ditadura: o medo.

Eu tenho medo!

A canção, que abre o lado "B" do LP Coração selvagem (Warner, 1977), ao criticar de forma feroz o regime militar no Brasil, começa com os versos pungentes: "Eu tenho medo. E medo está por fora, medo anda por dentro do teu coração. Eu tenho medo de que chegue a hora em que eu precise entrar no avião. Eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão... Apertar o botão: cidade morta. Placa torta indicando a contramão.". Aqui Belchior faz referência aos deslocamentos forçados pelo País e ao ato de ter de deixar o Brasil, exílio interno e externo vivido, de forma imposta, por políticos, artistas e intelectuais. Nesse cenário, em que exibe as angústias dos cidadãos no período ditatorial, o cearense, por meio do gênero musical toada, canta essas palavras de forma suave, próxima a uma canção de ninar, certamente para amenizar a crueldade tratada na letra.

> Aniversário de 72 anos de Belchior: lembramos a relação do músico com o Ceará

Dialogando com Alfred Hitchcock, a composição segue com uma alusão cinematográfica aos mortos e desaparecidos nos porões do DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social criado em 1924 e implementado no Regime Militar pós-64 para controlar o cidadão e vigiar as manifestações políticas, bem como as atividades intelectuais, sociais e partidárias associadas ao Comunismo. O que se lê no trecho "(Faca de ponta e meu punhal que corta e o fantasma escondido no porão.)".

Na construção do seu mapa dos tempos da ditadura, Belchior dá continuidade e vai então demarcando locais exatos da presença do medo, que se espalha em todas as regiões do País: "Eu tenho medo. Que belo horizonte! Eu tenho medo. Que minas gerais! Eu tenho medo. Que natal! Vitória! Eu tenho medo goiânia-goiás. Eu tenho medo salvador, bahia. Eu tenho medo bé-lém, bé-lém do pa-rá. Eu tenho medo: São Paulo. Eu tenho medo. Eu tenho medo: um rio, um porto alegre, um recife. Eu tenho medo: Paraíba, um medo paranapá. Eu tenho medo: (Morte é certeza!) medo-fortaleza, medo-ceará".

Com isso, o compositor representa no mapa a circunscrição abrangente e a onipresença do terror no tempo da ditadura, que atingiu e matou brasileiros de Norte a Sul da nação.

Junto à questão espacial, o "medo", protagonista principal da realidade denunciada por Belchior, aparece na canção, em seus 4 minutos e 54 segundos, repetido 38 vezes, o que salienta ao ouvinte a extensão temporal do amedrontamento experenciado pelos brasileiros à época, em uma ditadura que durou intermináveis 21 anos.

Encerrando a letra, entre a tensão de quem já viveu e de quem tem medo de que nunca acabe, Belchior deseja explicitamente o fim do medo no verso "Morre o meu medo! Isto não é segredo.", expressando também as incertezas do que vem depois, como constatamos no trecho: "Eu tenho medo. E já aconteceu! Eu tenho medo. E inda está por vir! O que será de mim?".

*Linguista, pesquisadora da USP com tese de mestrado e doutorado sobre Belchior.

Assuntos Relacionados