Cearense Cainã Cavalcante reúne de Belchior a Beatles em disco dedicado ao afeto

“Coração de Melodia” está disponível nas plataformas digitais e traz o violonista em ritmo de intimidade com as canções que marcaram a própria vida e têm potencial de marcar outras

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: "Coração de Melodia" nasceu em 2022 e conta com parcerias no repertório
Foto: Divulgação

Antes de se entender como gente, Cainã Cavalcante se entendeu como músico. Sozinho no próprio quarto da casa localizada no Conjunto Ceará, o até então menino colocava o rádio para tocar e se encantava. As canções iam de Djavan a Fagner, passando por Beatles e Belchior, num circuito muito amoroso de referências. Formavam o artista que viria a ser.

Décadas depois desses instantes, chega ao público “Coração de Melodia”, no qual o cearense retorna a essa afetividade da infância para entregar, com todo o talento que lhe é caro, versões instrumentais das músicas definidoras de uma vida. No total, oito faixas passeiam pelas memórias do violonista, produtor e compositor, e impressionam pelo que têm a dizer.

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“O repertório nasceu de melodias que eu tocava na minha intimidade – em casa, entre amigos, pegando o violão e simplesmente tocando. A canção brasileira fala muito com a gente, seja qual for o segmento. Logo, essas canções dialogam bastante com todos, e a ideia era realmente fazer um disco com elas”, divide.

“Pedacinhos do Céu”, de Waldir Azevedo; “Beijar a arte”, de Tarcísio Sardinha; “Mucuripe”, de Fagner e Belchior”; e “Blackbird”, de John Lennon e Paul McCartney, são alguns dos títulos integrantes do projeto. Engana-se quem pensa que ouvirá mais do mesmo. O trato de Cainã é suave e inventivo, com grande atenção à re-harmonização das canções originais.

O detalhe confere um peso diferente à empreitada, que se vale da originalidade do intérprete para ir além. Convida, inclusive, a refletir sobre a ligeireza dos dias e a ir no contrafluxo disso. “Quando definimos o repertório, eu estava em um momento de muita ansiedade na vida, e essas músicas me traziam um lugar de relaxamento, de paz, de tranquilidade”, conta.

“Ia tocando e sentindo isso no meu corpo. Ele reagia. Daí entendi que a coisa mais maravilhosa da música é esse lugar de sublimação”. Soma-se a isso as parcerias que o artista faz no trajeto e tudo se torna ainda mais único. Cainã une-se à Tallinn Studio Orchestra, da Estônia, em três faixas do disco, e à cantora Rosa Passos na faixa que encerra a viagem.

Esta, inclusive, faz a única inserção de voz em todo o álbum a partir de “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, selando com maestria um conjunto generoso de influências e afetos. Cainã celebra: “Não tenho dúvida de que é uma gravação histórica da Rosa Passos, uma coisa que ficou muito bonita”.

Para ouvir e se reconhecer

Produzido pela renomada Biscoito Fino – mesma gravadora de nomes como Maria Bethânia, Jards Macalé, Angela Ro Ro, entre outros gigantes da música – “Coração de Melodia” foi lançado no último 21 de fevereiro e, segundo Cainã, tem conquistado o público. A boa recepção acontece dentro e fora do Brasil, para onde o artista tem viajado com frequência.

Essa chegada com tanta propriedade no estrangeiro tem refletido sobretudo a ideia pouco cultivada em solo nacional de que música instrumental também é música, e não uma categoria à parte. Não à toa, o que Cainã faz com o disco é, por meio somente de acordes, levar a audiência a imprimir a própria voz ali – afinal, cantar também é um instrumento.

“A palavra chega no coração e no ouvido de quem escuta fazendo isso: a pessoa é quem vai cantar a música dentro da cabeça. Assim, a canção passa a ser como qualquer outra, e sai desse nicho da ‘música instrumental’. Em meu trabalho, o que faço é colocar o violão em diálogo com essa forma de se comunicar”.

O pensamento vai ao encontro da recorrente tentativa do compositor de se distanciar do elitismo cultural. A própria trajetória dele sinaliza o ímpeto. Cresceu na quarta etapa do Conjunto Ceará, periferia de Fortaleza. Por lá, fez amigos, ocupou o banco de escolas e entendeu que a música era meio de conexão com o mundo.

Legenda: “Existe um carinho em todo o processo do disco", partilha o artista
Foto: Divulgação

Por isso a incursão por esse universo, mas, principalmente, pelo desejo de transbordar. Ainda quer fazer uma “transa” do violão, por exemplo, com trap ou algo parecido. “Gosto de música e de me conectar. A coisa do meu esmero é que sempre fui um cara muito atento e sempre ouvia esses sons”, partilha.

Fala também que o novo trabalho pode ser um prato cheio tanto para quem gosta de se deleitar no som quanto por profissionais especializados em violão. Não é que, com o disco, invente a roda. Mas propõe outra forma de comunicação baseada em releituras carinhosas e repletas de autenticidade. “Existe um carinho em todo o processo”.

Próximas praças

Cainã quer circular com o disco de forma que as apresentações sejam acessíveis para as pessoas. São Paulo já é cidade confirmada, assim como Fortaleza – apesar de ainda não ter datas fechadas. De todo modo, recentemente o músico esteve na última edição do Festival Jazz & Blues e já conseguiu sentir ali o quanto o próprio talento chega junto à plateia.

“Foi muito especial, um público muito lindo”, vibra, ao mesmo tempo que situa estar num período frutífero, dividindo dois projetos ao mesmo tempo. Antes de “Coração de Melodia”, lançou “Beira-Mar” no fim do ano passado, em colaboração com o músico português Tiago Nacarato. Neste momento, leva ambos para os palcos.

“Neste mês de março, Tiago e eu passaremos um mês em turnê pela Europa, se apresentando em quatro países – Portugal, Espanha, Inglaterra e Itália. Na volta, temos as coisas do ‘Coração de Melodia’ no Brasil, com certeza vamos fazer uma turnê nas principais cidades. Em julho, voltamos para a Europa novamente”.

Sempre ciente de que a música transformou a própria jornada, Cainã é todo alegria por colocar mais um coração no mundo. E esse, tão afeito ao que a lembrança cultiva, tem potencial para tocar e acalentar a alma. “A possibilidade de fazer música, de realizar um trabalho com excelência, é porque quando saio do meu Estado não saio sozinho. É aquela coisa de ‘eu sou porque nós somos’”.

 

Coração de Melodia
Cainã Cavalcante

Biscoito Fino
2025, 8 faixas
Disponível nas plataformas digitais

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