Linguagem neutra já é utilizada na produção artística brasileira; conheça trabalhos
Representantes da música e do teatro partilham experiências iniciais
“Elu é grandone e não fica parade”, diz o trecho final da música “Se o grave bate”, lançada em novembro de 2020. A composição do Rap Plus Size, duo paulista formado por Jupi77er e Sara Donato, evidencia o uso da linguagem neutra na produção artística nacional, uma introdução ainda recente, mas que vem ganhando cada vez mais espaço, não só aqui como também lá fora.
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Basta lembrar Demi Lovato, que se identificou publicamente como uma pessoa não binária, no último dia 19 de maio, e afirmou que, a partir de agora, fará uso dos pronomes neutros em inglês “they e them” para se referir a si. É provável que isso também seja percebido em seus trabalhos daqui para frente.
Como em toda mudança de estrutura, há quem logo absorva a inovação, mas também quem custe a aceitar - ou, em alguns casos, respeitar.
“No lançamento da música, fiz um vídeo pro Tik Tok e muita gente que usa pronomes neutros se identificou, mas o hate foi correspondente também com o alcance da publicação”, conta Jupi77er, que se identifica como trans não binário e faz uso uso dos pronomes e demarcadores de gênero no masculino.
Segundo ele, foi Sara Donato quem primeiro provocou a inserção da linguagem neutra na canção.
Estávamos fazendo o refrão e eu trouxe ele no feminino, pra me referir às minas que são gordas e que sempre tiveram um alvo maior pela gordofobia, por conta da misoginia também, mas Sara levantou a questão de incluir o neutro no refrão e eu com certeza acolhi essa ideia”, partilha.
Para o rapper, as pessoas que mais estão produzindo conteúdo com linguagem neutra são as não binárias e trans. E, neste sentido, cita, por exemplo, a musicista, poeta e produtora carioca Nega Preto.
(Des)construção no Ceará
Em Fortaleza, a afirmação da linguagem neutra pela classe artística começa desde o nome, como é o caso de Jeffe e Renate, que adotaram este “e” para apresentar de imediato suas identificações com a não binariedade.
“Cantore, compositore & performer” é como Jeffe se apresenta em suas redes sociais. Já Renate, que trabalha com teatro, maquiagem, fotografia e música, usa em seu perfil o termo “Garote do fim do mundo”. Mas as artistas também utilizam os pronomes e demarcadores de gênero no feminino.
“Dentro das outras siglas e das outras possibilidades de gênero, eu me identifico dentro da não binaridade, e na figura da travesti, que é exatamente este corpo feminino, essa energia feminina que prevalece, mas que não sente a necessidade de se afirmar ou ficar presa no binário; quando eu entendi que tava tudo bem em fluir entre estes dois polos e que existiam pessoas assim como eu, em diversas partes do mundo, eu parei de sofrer e parei de lutar comigo mesma”, expõe Jeffe, que chegou a essa conclusão há pouco mais de seis meses.
Exatamente por fazer pouco tempo, esse processo ainda não está visível em suas composições públicas, mas a multiartista admite já estar trabalhando nisso.
"Eu tô num momento muito específico desde o final do ano passado e eu tenho buscado colocar sim nos meus trabalhos a linguagem neutra. Não é uma tarefa fácil, sendo uma artista autoral de primeira viagem e tendo um processo identitário tão recente, mas já estou compondo sobre esse presente”, admite Jeffe.
Renate, por sua vez, conta que o não-binarismo “brilhou” para ela quando cursou teatro.
A arte me ajudou muito no processo de autoconhecimento, a sala de ensaio sempre foi um local onde eu podia me reinventar, onde meus demônios eram anjos, onde meu gênero era tudo e tudo muitas vezes era sensibilidade, memória”, conta.
Agora, ela está em processo de criação de uma série de vídeos explorando a maquiagem e o diálogo sobre vivência trans. “Junte de mim tem Levi Banida que é outre trans não binária professora e performer. Nesse doc iremos falar sobre como existir em Fortaleza sendo quem somos”, diz.
Arte e educação
O diálogo entre o fazer artístico e o conhecimento são apostas da comunidade LGBTQIA+ para difundir a linguagem neutra. O rapper Jupi77er, por exemplo, vai oferecer um curso virtual sobre o tema no dia 27 de maio, das 19h30 às 22h. A aula será gravada e ficará disponível pelo YouTube por meio de um link de acesso exclusivo para os inscritos.
“É a primeira vez que eu realizo um curso, na verdade é básico, mas fornece bastante informação para quem não entende nada e quer aprender mais sobre não binaridade e linguagem neutra”, destaca. A taxa de inscrição é R$35, com bolsa de 50% para pessoas trans, pretas, indígenas e mães solos.
Além disso, Jupi77er continua apostando nessa linguagem em suas composições e poesias. “Acredito que o conteúdo que eu tenho criado pra internet, Instagram e Tik Tok, também fortalece muito nosso debate. Fazendo o uso de linguagem neutra, ela já passa a existir e ser cada vez mais válida, junto com as identidades não binárias e a pauta trans num geral”, defende.
Para a cearense Jeffe, a arte ajuda muito a “desenhar” aquilo que só no discurso “não adianta”. E essa, inclusive, tem sido uma de suas apostas.
Eu tenho descoberto essa linguagem. Deixar com que a arte fale por si só, deixar com que a minha performance diga coisas que só eu falando não chega ou não é o bastante”, conclui.