Linguagem neutra é discutida por profissionais de Letras; saiba o que é

Proposta de uma língua que rompe com a binariedade de gênero é levantada pelo movimento LGBTQIA+

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Quadro com os dizeres
Legenda: A letra "e" ao final das palavras tem sido utilizada em referência a um gênero neutro pelo movimento LGBTQIA+

Ele/dele, ela/dela, elu/delu/, ile/dile… Quais os seus pronomes? Essa pergunta, que outrora poderia soar estranha em um contexto de apresentação entre pessoas que nunca se falaram, tem se tornado cada vez mais frequente nos diálogos sociais. A proposta inclui a adoção de uma linguagem neutra com quem não reconhece sua identidade de gênero no binarismo feminino e masculino. E como envolve inovações no português, o debate já chegou na sala de aula.

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O professor de Língua Portuguesa e Literatura Joaquim Ferreira, 28 anos, tem feito esse exercício em projetos em que atua nas escolas públicas da Prefeitura de Fortaleza. “Já faz parte do cotidiano desse público adolescente ao qual eu tenho contato em minhas aulas”, afirma. 

Joaquim se identifica como uma pessoa transmasculina não binária, faz uso individual dos pronomes e demarcadores de gênero no masculino, mas, com quem não conhece, adota a neutralidade, geralmente usando a letra "e" ao final das palavras, por uma questão de respeito.

A linguagem neutra propõe a inclusão de várias existências no uso de uma mesma língua. Todes nós fazemos parte dessa sociedade. E é esse ponto que a linguagem neutra quer inserir, é que estejamos todes contemplades na expressão da língua quando ela for de cunho coletivo, e sendo de cunho coletivo, precisamos estar incluses”, defende.
Joaquim Ferreira
Professor de Língua Portuguesa e Literatura

Debates na escola

Assim como Joaquim, o professor João Gomes Luiz, 26, docente de Língua Portuguesa/Literatura na EEM Dr. César Cals desde 2017, tem fomentado esse tipo de discussão com os estudantes.

“Sou um homem trans hétero e, apesar de eu não ser uma pessoa não binária, eu entendo como é ser chamado de um modo com o qual você não se identifica e se sentir desconfortável por isso”, diz.

Em sala de aula, ele costuma manter uma linguagem plural. “Já tive alunas trans e a escola inteira fez o trabalho de reeducação sobre a maneira pela qual elas mereciam ser tratadas. Também já aconteceu de alguns alunos rirem do uso dessa linguagem e eu tive que parar tudo que estava fazendo e começar um debate”, conta.

João Luiz
Legenda: O professor João Luiz com a turma do projeto "POESIE-SE!", em registro de 2019
Foto: Arquivo pessoal

Com o ensino virtual em vigência desde 2020, João tem produzido muito material, a exemplo de slides, TDs, lives etc, e, em todos eles, admite usar bastante a marcação do “e” como um plural: “querides”, “todes”, “alunes”. Outra alternativa encontrada é fazer o possível para trocar a marcação de gênero nos nomes, pondo substantivos que não exijam uma denotação de gênero, como: “estudantes”, “pessoas”. 

A Língua denota ausências e silêncios que gritam fatos violentos e achar que é desnecessário marcar o feminino ou marcar uma possível neutralidade com o uso do ‘e’ significa dizer que você não se importa com uma alteridade que não seja a sua. Não precisa ser uma pessoa não binária para entender que existem pessoas não binárias, que merecem respeito”, enfatiza João.
João Gomes Luiz
Professor de Língua Portuguesa e Literatura

Ainda assim, o professor faz algumas ressalvas de acordo com a situação de comunicação. “Nos exercícios e na escrita de outros gêneros textuais rígidos como o texto dissertativo-argumentativo, eu permito que usem apenas o registro conforme pede a gramática normativa. Mas, em poemas e noutros gêneros textuais mais fluidos, eu incentivo uma maior flexibilidade da linguagem, com o registro oral, por exemplo”, diz ele, que coordena um projeto intitulado “POESIE-SE!”, exatamente com esse propósito.

Do colégio para as universidades

No curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), o debate sobre a linguagem neutra ainda é tímido, como observa a professora da casa, Claudete Lima. Ela mesma teve poucas oportunidades de discutir sobre isso em sala de aula, sendo mais comum em conversas informais com colegas da área. A docente partilha, inclusive, que alguns deles sequer ouviram falar no assunto.

Post
Legenda: Post publicado no Instagram da revista científica que a professora Claudete coordena gerou debate entre colegas da área
Foto: Reprodução

Segundo ela, o uso de linguagem neutra é recente e, como qualquer inovação, encontra resistência nos meios mais conservadores. 

Gramáticos e professores de língua portuguesa de linha mais formalista tendem a rejeitar a linguagem neutra. Os motivos costumam ser técnicos: já há meios de marcar que a referência abrange homens e mulheres (aluno/a); a vogal O não é desinência de gênero e, no plural, já abrange homens e mulheres... Esquecem que a questão da linguagem neutra vai muito além dos aspectos técnicos. Trata-se de uma questão social e cognitiva”, explica.
Claudete Lima
Professora do Curso de Letras da UFC

Claudete reconhece que as mudanças na língua (e na sociedade) levam tempo para serem aceitas. E, nesse sentido, toma como parâmetro outras situações linguísticas para desfazer alguns dos argumentos contrários à linguagem neutra. 

“O uso de ‘a gente’ como pronome de primeira pessoa do plural, por exemplo, demorou a ser incorporado pelos falantes cultos. Até bem pouco tempo, professores cortavam esse uso em redações escolares. Hoje a forma é largamente empregada na escrita em textos menos formais, embora cultos. O mesmo argumento que alguns usam para o uso de formas neutras seria aplicável ao ‘a gente’: desnecessário porque o sistema já dispõe de recursos para expressar essa ideia”, exemplifica.

Para ela, tal ideia é falha por várias razões. Primeiro, o recurso de usar as duas formas como em “amigo (a)” não equivale à linguagem neutra. Segundo, nas línguas, a relação entre forma e conteúdo não é biunívoca. “É perfeitamente possível e comum que uma mesma forma tenha mais de um conteúdo, e o inverso, que um conteúdo possa ser expresso por mais de uma forma”, defende.

Caminhos possíveis

Enquanto o debate inicia na universidade, com pesquisas tão raras que é até difícil perceber uma tendência de aceitação ou não, conforme aponta Claudete, pessoas como Joaquim e João Luiz avançam na outra ponta.

“A comunidade não binária tem se organizado e feito materiais didáticos à parte para suprir e ensinar como o uso pode ser feito. Alguns documentos oficiais de instituições públicas e privadas já trazem o uso da linguagem neutra, o que fez com que a ala conservadora no legislativo produzisse projetos de lei para barrar o uso da linguagem neutra”, relata Joaquim.

Joaquim
Legenda: O professor Joaquim Ferreira identifica-se como pessoa transmasculina não binária
Foto: Caio Erick

Para João, manuais, gramáticas, documentos oficiais e toda a sorte de elementos que constituem uma oficialização da discussão sobre a linguagem neutra e a quebra da preponderância masculina necessitam, principalmente, da existência de pessoas da comunidade LBGTQIA+ envolvidas e também do movimento feminista. 

A expectativa da gente, da comunidade LGBTQIA+, é que possamos quebrar os grilhões da ignorância. Eu, por exemplo, tento ser um professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira que faz da sala de aula este espaço de Bem-Viver para todas as pessoas que estão comigo. A revolução começa(rá) assim: do chão da sala de aula”, acredita.
João Gomes Luiz
Professor de Língua Portuguesa e Literatura

Processos

Para que o uso dos pronomes neutros sejam incorporados à norma culta, ou seja, para que falantes cultos adotem o emprego de um pronome neutro na escrita e na fala, é necessário, segundo Claudete: (1) que a proposta se adapte ao sistema linguístico do português; (2) que seja cada vez mais empregada em meios sociais elevados, por pessoas de prestígio social; (3) que haja conscientização da sua necessidade.

Para a professora, a existência de documentos como o Manifesto para uma comunicação radicalmente inclusiva, publicado pela Diversity Box, mostra que estamos apenas no começo desse debate e que temos ainda muito que aprender e discutir. 

ile dile
Legenda: Bandeira do Manifesto Ile para uma Comunicação Radicalmente Inclusiva
Foto: Reprodução

“O que perpassa tudo isso é tempo. Tempo para que as pessoas tomem consciência da necessidade do emprego de formas neutras; para que os pesquisadores da área da linguagem discutam; para que o povo incorpore o novo uso”, aponta Claudete.

Ela acredita que chegaremos a um consenso. “Já chegamos quanto ao uso do X*, que eu eu mesma usava há bem pouco tempo. Vamos chegar a respeito do E ou U. É questão de tempo”, finaliza.

* A letra “X” e o “@”, que outrora foram adotados na perspectiva de uma linguagem neutra, já foram desconsiderados após críticas por não serem adequados a pessoas dislexas ou com algum tipo de deficiência visual, por exemplo

> Confira alguns artigos acadêmicos sobre o tema recomendados pela professora Claudete Lima:

Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico, por Luiz Carlos Schwindt

A queda do gênero neutro no latim, por Thiago Soares de Oliveira

Êla é muito cobiçado: um pronome neutro que não o é, por  Danniel Carvalho e Ian Jardim da Silva 

Masculino genérico e sexismo gramatical, por Guilherme Ribeiro Colaço Mäder



 

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