Fotos de família 'saltam' dos álbuns e se destacam na arte contemporânea com convite à reflexão

Projetos e pesquisas fotográficas no Ceará e no Brasil usam acervos próprios ou anônimos e reconfiguram funções dos álbuns de família

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 10:28, em 02 de Outubro de 2025)
Imagens de arquivos familiares têm sido objeto de criação e reflexão na arte contemporânea; na foto, registro da obra 'São Benedito é como um rio que me corta por dentro', de Marília Oliveira (2024), em cartaz na exposição 'Bezoar do Tempo', no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Legenda: Imagens de arquivos familiares têm sido objeto de criação e reflexão na arte contemporânea; na foto, registro da obra "São Benedito é como um rio que me corta por dentro", de Marília Oliveira (2024), em cartaz na exposição "Bezoar do Tempo", no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Foto: Beatriz Almeida / Divulgação

Qual foi a última vez que você visitou os álbuns de fotografias da sua família? Em tempos de imagens digitais de fácil acesso e armazenamento em nuvem, os arquivos fotográficos familiares têm despertado atenção de artistas e pesquisadores contemporâneos no Ceará e no Brasil.

Seja como mote para exposições, pesquisas acadêmicas ou publicações, os relicários de memórias importantes e afetivas estão sendo revisitados a partir de diferentes propostas pela arte contemporânea, indo além do espaço íntimo e chegando ao debate coletivo sobre direito à memória, acesso a técnicas e tecnologias e fabulações a partir da imagem.

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Manutenção de memórias subjetivas e físicas

Criada na segunda metade do século 19, a fotografia é uma invenção europeia, bem como a própria ideia dos álbuns de fotos, como contextualiza o pesquisador e artista Rodrigo Lopes, mestre em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) com a dissertação “Álbum de Família na Arte/Educação: Matéria de ficção”.

“Na Europa, os primeiros álbuns datam de 1850 e eram basicamente livros com páginas em branco onde as fotos eram coladas. Isso quer dizer que a invenção do álbum está relacionada ao caráter perecível da foto, particularmente, quando ela passa a ser impressa em papel”, explica. “Tanto que apenas algumas ficavam expostas em porta-retratos, já que a maior parte era guardada em gavetas e caixas”, avança.

Obra 'Bezoar', da artista Dayane Araújo, em cartaz no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Legenda: Obra "Bezoar", da artista Dayane Araújo, em cartaz no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Foto: Dayane Araújo / Divulgação

Enquanto o álbum buscava salvaguardar o próprio material impresso físico, a fotografia em si despontava como forma de “manter” a cena capturada. Tal intenção, reflete a artista e fotógrafa cearense Taís Monteiro, ecoa a tentativa humana de ir além da finitude.

“Desde o momento que temos consciência da existência finita, é inerente o medo do desaparecimento. Antes da fotografia, havia pintura, escritos, máscaras mortuárias, o cuidado de guardar cabelos, dentes e materialidade da memória”, elenca ela, cuja obra tem relação com experimentações visuais com filmes analógicos.

“De certa forma, quando fotografamos, tentamos uma espécie de jogo de permanência de momento, como se, de alguma maneira, a fotografia pudesse tornar permanente entes queridos” 
Taís Monteiro
artista e curadora

É nesse sentido que a técnica da captura de imagens se aproximou, com o tempo, do âmbito das memórias de família. Como define o fotógrafo e gestor cultural Tiago Santana, “a fotografia familiar cumpre uma função de demarcar o tempo, os ritos familiares, deixar guardado para a memória dos que virão, dos mais jovens da família”.

Para Rodrigo, a função de registro de momentos da vida familiar, como aniversários, viagens e cerimônias matrimoniais ou de educação, pode ser apontada como a “principal função” da fotografia. 

O álbum, assim, vira “um tesouro que atravessa gerações” e guarda “momentos felizes da vida”. “Podemos pensar nele como uma herança, uma dádiva insubstituível, um testemunho único e uma maneira fascinante de conhecer as nossas raízes”, aponta. “As fotos de família não foram feitas apenas para serem vistas, mas também escutadas: são imagens que nos convidam a contar histórias”, avança o pesquisador.

Intimidades retratadas nas fotos de família ecoam questões sociais e coletivas

A possibilidade ou impossibilidade desse mergulho nas próprias histórias e raízes por meio de álbuns e fotos estão atreladas, historicamente, a questões financeiras.

"Quando consideramos os custos para comprar filmes e câmeras analógicas, revelar fotos e adquirir álbuns com material mais durável, percebemos que o álbum de fotos não era (e ainda não é) algo acessível a todos os públicos. Isso sinaliza a importância de discutir sobre o acesso desigual às tecnologias de produção e arquivamento de imagens", sublinha Rodrigo.

O pesquisador lembra, por exemplo, que a chegada da técnica da fotografia ao Brasil no século XIX se deu por meio das elites econômicas escravocratas da época. 

Artista, arte/educador, designer e pesquisador cearense Rodrigo Lopes investiga relações entre fotografia e memória a partir de álbuns de família
Legenda: Artista, arte/educador, designer e pesquisador cearense Rodrigo Lopes investiga relações entre fotografia e memória a partir de álbuns de família
Foto: Marília Camelo / Divulgação

“Não é possível falar de álbum sem falar de fotografia… e não é possível falar de fotografia, no contexto brasileiro, sem falar em colonização. Tudo está intimamente conectado”, tece o pesquisador, que define o álbum de família como um “arquivo branco”.

A noção se relaciona com o processo histórico de excluir dos álbuns “pessoas marcadas pela experiência da raça, da pobreza e da desobediência às normas de gênero e sexualidade”.

“Não há tecnologia deslocada do tempo-espaço que foi criada. A fotografia surge num período de industrialização e de expansão capitalista ocidental”, dialoga Taís. “O acesso a ela se dá, a princípio, somente por famílias que conseguiam pagar o preço de sua feitura”, corrobora.

Na realidade da família da artista, vinda do interior cearense, “a muito custo, nós fotografamos”. “Tenho um único álbum de infância e nenhum registro em vídeo. As fotografias eram contadas. As fotografias de avós e avôs são poucas, as que possuo têm marcações claras de ritos de vida: casamento, nascimento de filhos e morte”, descreve.

Trabalho 'Pedra Partida', da artista Tais Monteiro, em cartaz no MIS-CE na exposição 'Bezoar do Tempo'
Legenda: Trabalho "Pedra Partida", da artista Tais Monteiro, em cartaz no MIS-CE na exposição "Bezoar do Tempo"
Foto: Taís Monteiro / Divulgação

Num contexto de pequena ascensão financeira, o acesso à fotografia foi mais facilitado, mas esses arquivos, lembra Taís, eram “guardados em envelopes, álbuns e gavetas de família como joias, justamente porque custavam muito dinheiro além da sua importância sentimental”.

No caso de Rodrigo, cuja mãe veio do município de Varzelândia (MG) e o pai de Várzea Alegre (CE), as fotos nas quais se debruçou para produzir o projeto artístico “Para nunca esquecer” (2018-2020) também apontavam questões da família tanto pelas presenças — como dos fluxos migratórios entre Nordeste e Sudeste — quanto pelas ausências.

“Quanto mais eu procurava, mais eu percebia que não conseguiria montar uma árvore genealógica ‘completa’. De onde vieram meus antepassados? Por que eu não encontrava nenhuma foto de gerações anteriores aos meus avós?”
Rodrigo Lopes
artista, arte/educador e pesquisador

Em consonância, Taís sublinha a ausência de fotos “mais um sintoma da desigualdade e da invisibilidade estrutural”. “Olhar para essa ausência e deslocar as imagens, de forma fabulatória, desenvolve um outro campo de memória pessoal (e por consequência também coletiva) dos rostos que não habitam na superfície da imagem fotográfica”, reflete.

Exposições, publicações e outros projetos artísticos reconfiguram funções dos álbuns de família na arte contemporânea
Legenda: Exposições, publicações e outros projetos artísticos reconfiguram funções dos álbuns de família na arte contemporânea
Foto: Fernanda Siebra / Divulgação

A criação artística a partir da memória pessoal, então, se colocou como forma de elaboração para os dois cearenses. “O álbum foi se tornando um depositário da memória familiar, daquilo que era escolhido para ser lembrado e poderia ser visto decorando a sala de visita de alguma casa. Mas por que não é comum ver fotos pessoais em exposições?”, questiona Rodrigo.

O pesquisador segue: "Por que temos a impressão de que elas 'saltaram' de um lugar para outro? É que as nossas imagens não foram feitas para serem expostas lá. Pelo menos, não inicialmente".

“Elas foram feitas para serem guardadas em casa e não no museu. Elas são importantes para nós, mas talvez não sejam para outras pessoas. O que vemos nessas imagens são pessoas comuns fazendo coisas comuns do dia-a-dia. E é justamente isso que interessa para a arte: partir do cotidiano para discutir questões de interesse público e coletivo”
Rodrigo Lopes
artista, arte/educador e pesquisador

Reconfigurações da foto de família

Como observa Tiago, quando imagens vida pessoal são deslocadas “do campo da intimidade para o das artes”, abrem-se reflexões sobre “a permanência da fotografia e dos álbuns, que contam a história do ser humano e da sociedade”.

“Nesse sentido, a fotografia familiar acaba cumprindo outro papel: de contribuição ao pensamento de um lugar, de um país, de uma sociedade a partir de olhar esses álbuns e fotos”, elabora. “Ela vira objeto de reflexão dos contextos em que foi produzida e ajuda a pensar e a projetar futuros”, segue o artista.

"Muitos artistas têm usado, rearticulado, repensado essa narrativa dos álbuns e das fotografias de família e construindo outras narrativas, mundos e perspectivas"
Tiago Santana
fotógrafo e gestor cultural

Fotolivro 'Reter Tudo ou Quanta Maravilha do Dia a Dia que Passou', de Isabel Santana Terron e Tiago Santana
Legenda: Fotolivro "Reter Tudo ou Quanta Maravilha do Dia a Dia que Passou", de Isabel Santana Terron e Tiago Santana
Foto: Ismael Soares / SVM

Neste ano, o fotógrafo lançou, com a irmã Isabel Santana Terron, o fotolivro “Reter tudo ou Quanta maravilha do dia a dia que passou”, que resgata fotos feitas por Eudoro Santana, pai dos dois, costurando marcos familiares com o contexto da ditadura militar no País e, assim, refletindo sobre o Brasil hoje.

Os usos desse tipo de foto na criação artística, aponta Rodrigo, “não têm limite”: “Fotolivro, filme, colagem, bordado, performance, pintura… qualquer técnica pode ser utilizada!”. 

Na exposição “Se Arar”, que esteve em cartaz na Pinacoteca do Ceará, o artista participou com obras da série “Pai” (2018), em que aproxima a fotografia e o bordado para reelaborar memórias de LGBTfobia no ambiente familiar.

Obra sem título da série 'Pai' (2018), de Rodrigo Lopes
Legenda: Obra sem título da série "Pai" (2018), de Rodrigo Lopes
Foto: Lucas Dilacerda / Divulgação

Entre exemplos de outras formas de elaboração por meio das fotos de família na arte,  cearense destaca a “a intervenção crítica na representação de pessoas negras nos arquivos fotográficos do século 19”, citando obras da brasileira Eliana Amorim — “Reintegração de leite” (2018) — e do estadunidense Titus Kaphar — “Space to forget” [Espaço para esquecer] (2014).

'Reintegração de Leite', de Eliana Amorim, parte de um retrato de 1874 de uma ama-de-leite para refletir sobre maternidade; já a pintura 'Space to forget', de Titus Kaphar, usa foto de 1889 que mostra uma criança branca montada em uma mulher negra
Legenda: "Reintegração de Leite", de Eliana Amorim, parte de um retrato de 1874 de uma ama-de-leite para refletir sobre maternidade; já a pintura "Space to forget", de Titus Kaphar, usa foto de 1889 que mostra uma criança branca montada em uma mulher negra
Foto: Eliana Amorim / Divulgação; Titus Kaphar / Divulgação

Rodrigo lista, ainda, as artistas Aline Motta, Castiel Vitorino Brasileiro e Rosana Paulino como exemplos da multiplicidade de abordagens artísticas a partir dos arquivos. No âmbito nacional, Tiago lembra, ainda, da obra do fotógrafo e químico mineiro Eustáquio Neves e do projeto Retratistas do Morro, também de Minas Gerais.

João Mendes e Afonso Pimenta registraram por décadas aniversários, casamentos, batizados e formaturas da comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. “É um projeto que fala muito do Brasil, do papel da fotografia de família e dos fotógrafos que faziam esse serviço”.

Obra 'Retrato Falado' (2020), do artista mineiro Eustáquio Neves
Legenda: Eustáquio Neves "traz a questão dos ancestrais e trabalha imagens a partir do laboratório, refaz, faz intervenções”, como ressalta Tiago Santana; na foto, obra "Retrato Falado" (2020)
Foto: Eustáquio Neves / Instituto Moreira Salles / Reprodução

Fotografia 'Aniversário de 6 anos da Renatinha' (1988), de Afonso Pimenta, do projeto Retratistas do Morro; imagem compôs exposição 'Negros na Piscina' (2022-2023), da Pinacoteca do Ceará
Legenda: Fotografia "Aniversário de 6 anos da Renatinha" (1988), de Afonso Pimenta, do projeto Retratistas do Morro; imagem compôs exposição "Negros na Piscina" (2022-2023), da Pinacoteca do Ceará
Foto: Afonso Pimenta / Retratistas do Morro / Reprodução

No contexto cearense, Tiago cita o trabalho do fotógrafo Felipe Camilo feito em parceria com famílias da comunidade do Poço da Draga, “no sentido de trazer as fotos para o campo de reflexão sobre o bairro e a luta”, e Rodrigo elenca obras de artistas como Marília Oliveira, Pedra Silva, Jorge Silvestre e David Felício, “que utilizam arquivos pessoais para discutir criticamente o apagamento de memórias negras e indígenas na história do estado”.

Marília, inclusive, é uma das artistas que integra, com Taís Monteiro, Luana Diogo e Dayane Araújo, a exposição coletiva “Bezoar do Tempo”, em cartaz no Museu da Imagem e do Som do Ceará até 16 de novembro.

Artistas Luana Diogo, Marília Oliveira, Taís Monteiro e Dayane Araújo na abertura da exposição Bezoar do Tempo, no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Legenda: Artistas Luana Diogo, Marília Oliveira, Taís Monteiro e Dayane Araújo na abertura da exposição Bezoar do Tempo, no Museu da Imagem e do Som do Ceará
Foto: Beatriz Almeida / Divulgação

“Desenvolvemos uma curadoria coletiva que olhava para os arquivos das artistas”, contextualiza Taís. A partir da fotografia como linguagem central, a mostra traz instalações, colagens, vídeos e outros suportes refletindo sobre presenças e ausências desses álbuns familiares próprios e adquiridos.

Na entrevista, Taís se detém na obra “não esqueço” (2024), na qual uma pequena fotografia antiga e com marcas de tempo ganha camadas simbólicas sobre memória. O trabalho apresenta uma placa de metal onde uma concha abriga a imagem, que mostra duas mulheres em um dique de pedra.

Pequena fotografia de duas mulheres desconhecidas recebida de presente de uma tia-avó inspirou obra 'não esqueço', de Taís Monteiro, onde a imagem é guardada em uma concha
Legenda: Pequena fotografia de duas mulheres desconhecidas recebida de presente de uma tia-avó inspirou obra "não esqueço", de Taís Monteiro, onde a imagem é "guardada" em uma concha
Foto: Beatriz Almeida / Divulgação

Detalhe da obra 'não esqueço', de Taís Monteiro
Legenda: Detalhe da obra "não esqueço", de Taís Monteiro
Foto: Fernanda Siebra / Divulgação

Foto aproximada que compõe a obra 'não esqueço' (2024), de Taís Monteiro
Legenda: Foto aproximada da obra "não esqueço" (2024), de Taís Monteiro
Foto: Acervo Taís Monteiro / Divulgação

“(A foto) estava dentro de um envelope de uma tia-avó, uma mulher analfabeta de Orós (CE) que me entregava fotografias todas as vezes que a visitava, em pequenos envelopes que guardava com muito cuidado em sua melhor caixa. Não sei e ela, por dificuldade de fala, não soube me explicar quem são as duas mulheres”, explica. 

Ainda que “anônimas e sem face”, as retratadas figuram nas paredes de uma importante instituição artística cearense, indicando "um caminho interessante no contemporâneo":

“Essa imagem, antes perdida, se desloca para dentro do museu como um simbólico daquilo que insistimos em não esquecer, mesmo que ninguém mais lembre”, sustenta.

Exposição Bezoar do Tempo

  • Quando: em cartaz até 16 de novembro; visitação às quartas, quintas e domingos, de 10 às 18 horas (acesso até 17h30), e sextas e sábados, das 13 às 20 horas (acesso até 19h30)
  • Onde: Museu da Imagem e do Som do Ceará (Av. Barão de Studart, 410, Meireles)
  • Entrada gratuita. 
  • Mais informações: no site do MIS-CE, no Instagram @mis_ceara e @bezoardotempo

 

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