Filme resgata e discute a luta de mulheres do teatro cearense

Realizado pelo "Coletiva Antonietas", documentário “Doc.Teatro: Mulheres, Cena e Memória” ilumina a cena artística a partir dos depoimentos de quatro atuantes trabalhadoras das artes cênicas

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Herê Aquino,  Hiramisa Serra (atriz),  Kelly Enne Saldanha e Marta Aurélia. Diferentes vivências e perspectivas refletem passado e presente das mulheres no teatro cearense
Legenda: Herê Aquino, Hiramisa Serra (atriz), Kelly Enne Saldanha e Marta Aurélia. Diferentes vivências e perspectivas refletem passado e presente das mulheres no teatro cearense
Foto: Colagem: Letícia Viana

Uma história revelada por quem dedica a vida ao ofício. Em cena, relatos de quem superou adversidades e contribuiu com o crescimento da arte e educação no Ceará. Artistas e pesquisadoras, Edla Maia e Juliana Tavares assumiram o desafio de debater a invisibilidade de mulheres nos registros oficiais da história. Em especial, a jornada destas trabalhadoras no âmbito do teatro cearense.  

Unidas à frente da "Coletiva Antonietas", as diretoras produziram o filme “Doc.Teatro: Mulheres, Cena e Memória”. A obra será exibida na sexta-feira (12), às 21h, na programação virtual do canal de YouTube do Cineteatro São Luiz. Quatro mulheres dividem as dimensões da vida pessoal e profissional, em suas diferentes épocas, idades, e realidades sociais.  

Ouvimos as vozes de Hiramisa Serra (atriz), Herê Aquino (diretora teatral), Kelly Enne Saldanha (atriz e produtora cultural) e Marta Aurélia (atriz e cantora). Estreia do Coletivo Antonietas na cena audiovisual do Estado, o média-metragem (cerca de 60 minutos) costura estas trajetórias a temas complexos. Carreira, família, maternidade (ou não) e o comprometimento com a arte escolhida.  

O documentário é fruto de cinco árduos meses de produção. “É um desejo antigo. Já trabalho com teatro feminista a quase sete anos. Já pesquisava e descobrir várias mulheres que foram importantes e que a história nunca contou. Quando me aproximei de Juliana descobri que ela também tinha essa curiosidade. O mestrado em artes dela trouxe pesquisa em torno das mulheres artistas de Fortaleza”, descreve a diretora Edla Maia.  

Aprendizado em tela 

Construir carreiras exemplares, ao passo em que se enfrenta preconceitos e adversidades. A pergunta impulsora do projeto é: “Quantas e quais outras mulheres tiveram seus trabalhos apagados ao longo da história contada por homens e para homens”? Partindo de tal questionamento, as documentaristas foram traçando a lista de entrevistadas para o projeto. 

“Durante o processo de ouvir e ouvir novamente, fomos aprendendo cada vez mais.  Por mais que já tivéssemos uma dedução de como era para essas mulheres fazer teatro antigamente, todo o olhar julgador da sociedade, a dificuldade de furar a cena... Sabíamos disso. Mas, nunca tínhamos ouvido a história de perto. Parar para ouvir a própria mulher contar essa história, para mim, foi muito revolucionário”, divide a integrante da "Coletiva Antonietas". 

Juliana Tavares, Edla Maia e Hiramisa Serra
Legenda: Juliana Tavares, Edla Maia e Hiramisa Serra
Foto: Daniel Uchoa

Diretora, pesquisadora e professora de teatro, Herê Aquino iniciou a carreira em 1990. O marco que inicia essa jornada é a fundação do Grupo Expressões Humanas. A realizadora é uma das vozes presentes em “Doc.Teatro: Mulheres, Cena e Memória”. 

Em entrevista, Herê situa que iniciativas como a do documentário são relevantes pelo debate promovido a partir de memórias. "Não se constrói nada novo, sem que se olhe para os desafios que foram vencidos antes, no intuito de chegar onde se chegou", descreve.

Atriz e produtora cultural, Kelly Enne também reforça a importância de um filme dedicado a estudar acontecimentos do passado. "O teatro é uma arte efêmera, de contato, de momento. Diante disso, ter um doc falando sobre teatro é muito importante, pois esse tipo de registro constrói memória também", completa. 

Enfrentamento

Se a cena teatral do Ceará é reconhecida nacionalmente, muitos plantaram essa semente, compartilha Herê. No tocante a participação das mulheres, o momento atual reflete a nova onda do movimento feminista. 

"Hoje, no teatro, podemos ver mulheres em locais, quase que impensáveis em 1990, quando comecei na cena teatral. Na época lembro de poucas mulheres nessa função. E estar como diretora, era também, muitas vezes, estar como iluminadora, cenógrafa, figurinista, entre outras funções. Era também sinônimo de enfrentamento de preconceitos dos que trabalhavam no comando dos equipamentos do palco, acostumados a lidar com homens no comando da cena. Outras mulheres vieram antes de mim, mas durante muito tempo isso foi exceção", divide. 

Legenda: "A cena teatral cearense tem uma história pautada no teatro de grupo e na luta dos artistas pela construção de políticas culturais que fomentaram o teatro enquanto categoria artística. Muitos vieram antes de nós e muitos ainda virão depois de nós trazendo, também, novas perspectivas para a cena local", explica Herê Aquino.
Foto: Tatiana Tavares

Na última segunda-feira (8), a atriz Karla Karenina foi empossada como diretora do Teatro São José. A julgar pelos depoimentos das atrizes que participam do filme, algumas décadas atrás, acontecimentos dessa natureza eram raros. O trabalho da "Coletiva Antonietas" pontua-se em adentrar o trajeto de resistência destas profissionais. No entanto, inúmeras artistas deixaram a arte teatral pelo caminho. Um caso notório é o da atriz Gasparina Germano (1918-1998). 

A grande dama

Publicado no Diário do Nordeste de dezembro de 1982, o artigo "O Primeiro Time" levanta as origens das artes cênicas no Ceará. O texto, assinado pelo diretor e ator Marcelo Costa, consolida informações biográficas de Gasparina. 

"Mas a grande estrela do teatro cearense foi Gasparina Germano, a grande diva, a nossa Sarah Bernhardt. Gasparina começou ainda criança, foi partner do 'Pequeno Edson' (Edson Alcântara).  Ambos venceram um concurso de dança no Teatro República de São Paulo, no baile infantil do carnaval de 1927. Gasparina brilhou nos nossos palcos até ser vítima de um casamento desastroso".

Gasparina Germano, brilho precocemente interrompido
Legenda: Gasparina Germano, brilho precocemente interrompido
Foto: Diário do Nordeste, 12 de novembro de 1997

Em novembro de 1997, aos 84 anos, Gasparina foi entrevistada pelo Diário do Nordeste. À época, o Bureau de Artes Cênicas do Ceará, com o apoio dos diretores teatrais Marcelo Costa e Ricardo Guilherme, promoveu "A Noite da Gasparina". O evento beneficente foi realizado com o objetivo de ajudar a atriz. 

"As lembranças teatrais fazem o rosto já enrugado sorrir, mas, ao mesmo tempo, trazem de volta o passado de um casamento infeliz com o artista mambembe Temóteo Holanda Cavalcante, determinante para o fim de sua carreira. O marido, ciumento, impediu a continuação da trajetória ascendente da atriz, confinando-a aos trabalhos caseiros e aos dois filhos. Aos 37 anos encerrava precocemente a vida artística", descreve a reportagem "Lembranças de uma estrela esquecida".

Quatro meses depois, Gasparina Germano morreu. "Sem honrarias ou homenagens oficiais, a atriz saiu de cena sem ter, quando em vida, o reconhecimento de instituições oficiais. Só a comunidade artística a homenageou", afirma a notícia veiculada em março de 1998. 

Fortalecidas 

A "Coletiva Antonietas" atua para que exemplos como o de Gasparina Germano deixem de ser realidade. “Doc.Teatro: Mulheres, Cena e Memória” é o primeiro passo de uma jornada que promete oferecer ainda mais pesquisa e informação em torno do tema.  

Atriz e produtora Kelly Enne Saldanha durante as gravações do documentário
Legenda: Atriz e produtora Kelly Enne Saldanha durante as gravações do documentário
Foto: Tatiana Tavares

Perguntada acerca da cena teatral contemporânea, Kelly Enne pondera o quanto a área precisa evoluir. "Ainda estamos envolvidas em práticas que colocam a mulher em lugares subalternos, principalmente se ela é preta. Pense um pouco, quantas mulheres pretas do teatro você conhece? Isso responde muita coisa...", argumenta a atriz. 

Herê Aquino afirma estar feliz em ter a carreira reconhecida e saber que sua trajetória influenciou outras histórias e outras mulheres. "Mas o que achei mais interessante nessa participação foi perceber que minha presença no documentário estava atrelada não só ao meu trabalho artístico, mas também a minha luta dentro dessa luta maior e coletiva na construção por políticas públicas para o teatro", pontua.

Documentar estas vivências e tecer reflexões entre passado e presente, é uma das forças do filme. "Deixar que elas contem a história delas, deixar isso registrado. Falo por mim e pela Juliana também, saímos transformadas e fortalecidas", finaliza a diretora Edla Maia.