Editora UFC retorna com missão de resgatar clássicos literários cearenses e publicar mais mulheres
De Antônio Sales a Patativa do Assaré, passando por escritoras e escritores contemporâneos, casa editorial pretende ampliar raio de alcance para chegar a mais pessoas
Se você prestou vestibular no Ceará antes do Enem, certamente recorda de títulos como “Aves de Arribação” e “Cordéis e Outros Poemas”. Eram leituras obrigatórias para a prova de admissão na Universidade Federal. Agora, esses e outros títulos chegam renovados às mãos do público – num misto de nostalgia e convite a outras gerações para que mergulhem fundo nas histórias.
A iniciativa é da Editora UFC, cuja recente reestruturação aponta para projetos de ainda maior valorização da literatura e da produção intelectual do Estado em várias frentes da palavra. Resgatar obras literárias clássicas cearenses é apenas parte de algo maior. O foco mesmo é um diálogo frontal com amplas esferas.
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“Nosso objetivo é criar um catálogo que represente a sociedade brasileira e cearense com seus personagens: indígenas, mulheres, negros, PcDs e todos aqueles que, em geral, são deixados de fora dos livros”, situa o professor Cavalcante Junior, diretor da Editora UFC e Presidente do Conselho Editorial da universidade.
Os primeiros passos já foram dados e outros acenam inquietos no horizonte. No último mês de fevereiro, por exemplo, foi lançada a edição comemorativa de “Aves de Arribação”, do escritor Antônio Sales. Por sua vez, em março, houve a reedição de “Cordéis”, de Patativa do Assaré, resultado do trabalho de pesquisa de Gilmar de Carvalho.
“O Banquete”, de Platão, será a próxima publicação da editora, cujo lançamento acontecerá no dia 21 de outubro no auditório da reitoria da UFC durante o Seminário Magistral, apresentado pelo Reitor, Prof. Custódio Almeida. “A Editora UFC publica livros nos campos artísticos, científicos e filosóficos, de autores nacionais e estrangeiros”, situa Cavalcante.
“Desejamos trazer para o mercado editorial brasileiro, por meio de traduções, escritoras e escritores ainda inéditos no país. Para esse fim, contaremos com a coedição de uma grande editora brasileira, que já aceitou nosso convite para embarcar no desafio de internacionalização do nosso catálogo”, anuncia.
Trabalho minucioso
Juliana Diniz complementa a ideia. Segundo ela – professora adjunta do curso de Direito da Universidade Federal e vice-diretora da Editora UFC – a reedição de um livro consagrado sempre envolve o minucioso trabalho de pesquisa às fontes históricas a fim de que o texto original seja resguardado.
“Fazemos a revisão cuidadosa do texto para adaptá-lo às novas regras ortográficas, sem alterar a originalidade da publicação. Ao mesmo tempo, sempre buscamos enriquecer as novas edições com textos de apoio que oferecem ao leitor informações e interpretações sobre a obra e a relevância do trabalho do autor”, dimensiona.
Para ela, é grande a alegria de possuir no acervo histórico da casa algo como a coletânea de contos “Dizem que os cães veem coisas”, de Moreira Campos, considerado um de nossos maiores contistas. Não à toa, a torcida para que, muito em breve, uma nova edição possa ser apresentada à comunidade acadêmica e à sociedade de forma geral.
“Acredito que a Editora UFC cumpra um papel importante de preservação e divulgação dos clássicos da literatura cearense, que não costumam receber tanta atenção das casas editoriais mais comerciais sediadas na região sudeste do país. Assim, os cearenses têm chance de se reconhecer nas criações literárias, no sentido de um pertencimento geográfico, cultural e simbólico, ao mesmo tempo em que mantém sempre viva a força desses trabalhos”.
Por outro lado, em conversa com a contemporaneidade, Cavalcante Júnior reconhece que o catálogo da editora ainda concentra grande quantidade de escritores homens. Mulheres de relevância de nossa literatura, a exemplo de Angela Gutiérrez, Glória Martins, Hilda Gouveia de Oliveira, Lúcia Fernandes Martins, Regine Limaverde, Sandra Maia, Vera Lucia de Moraes e Tércia Montenegro, já foram publicadas pela Editora, mas ainda são minoria.
“Elas ganharão prioridade na atual gestão”, adianta. O feito é celebrado por leitores como Allan Ratts de Sousa. O psicólogo e psicanalista de 35 anos foi um dos que vivenciaram o período do vestibular da UFC, creditando a essa época a descoberta de títulos como “Três peças escolhidas”, de Eduardo Campos; “Dos valores do inimigo”, de Pedro Salgueiro; e “A vinha dos esquecidos”, de João Clímaco Bezerra, dentre outros.
Algumas histórias, porém, o acompanham até hoje. São elas:
- “O mundo de Flora”, de Angela Gutiérrez
- “A Casa”, de Natércia Campos
- “Dias & Dias”, de Ana Miranda
- “Três peças escolhidas”, de Eduardo Campos
- “O Guarani”, de José de Alencar
“Reli todos eles pelo menos mais de uma vez. Achava fascinante que aquele tipo de literatura fosse escrita por autores cearenses, era uma forma de descoberta da minha própria cultura”.
Ao mesmo tempo, defende: “Acho importante essa preocupação no resgate de autoras mulheres. Se nossa literatura já costuma não ser tão valorizada, quando um autor cearense é reconhecido nacionalmente, geralmente é um homem. E os autores que hoje lembro com mais admiração nessa lista de indicados da UFC, por exemplo, são mulheres. Logo, eu não as teria lido se não fosse o resgate que a editora da UFC fez dessas escritoras”.
Baratinhos e poderosos
Outra boa memória de Allan diz respeito à própria preparação para o vestibular, em meados de 2006. Ele achava fascinante acessar a literatura do Ceará por meio de obras vendidas a preço camarada. “Amava ter essa ‘desculpa’ para comprá-las”, ri. “Cheguei a ir ao lançamento de algumas, peguei dedicatórias e conheci alguns dos escritores. Ter uma editora nossa, que proporciona tudo isso, é de uma riqueza indescritível”.
Mesma opinião tem Elayne Castro. A professora tentou o vestibular da UFC em 2009, quando ainda havia a lista de livros para o exame. Foi uma grata surpresa a leitura, sobretudo de autores cearenses, a exemplo de Antônio Sales, Ana Miranda e Caio Porfírio Carneiro.
“Havia aquela pressão para ler os textos, sem muito espaço para fruição, como parte da preparação para qualquer concurso, mas, quando se trata de literatura, sempre há brechas para o deleite e a imaginação”, contextualiza.
Por sinal, “Trapiá”, do já citado Caio Porfírio Carneiro, foi um dos motivos pelos quais ela escolheu Letras. No Ensino Médio, teve um professor que falava sobre o livro de contos com muita paixão. “Depois virou meu objeto de estudo no TCC. Desde então, as pequenas ‘estórias’ dos cafundós do sertão me acompanham de forma muito carinhosa”.
Por isso mesmo, Elayne acredita que a Editora UFC, sobretudo durante o período do saudoso vestibular convencional, teve um papel fundamental como uma das promotoras da cultura cearense ao relançar, em formato mais acessível, obras de autores tão importantes de nossa história. Foi como, de acordo com ela, criou-se um circuito cultural bem interessante, com apresentações, conversas, debates etc. sobre os livros em vários espaços.
“Com a extinção do vestibular, isso foi se perdendo, mas penso que o desejo da narração por autores e leitores cearenses segue vivo e se reacende nos últimos tempos. Por isso a necessidade de se reinventar, resgatando os clássicos, mas também dar mais visibilidade às novas literaturas que têm surgido”.
O que vem por aí
A Editora UFC adotou a política editorial de chamadas públicas para a submissão de propostas de livros. A primeira, de 2024, foi o Edital Flecha, que selecionará cinco obras de introdução às seguintes temáticas: Democracia e liberdade, Desafios da cultura digital, Emergência climática, Relações raciais e de gênero e Tiranias contemporâneas.
Por sua vez, no Edital Fluxo – o segundo publicado neste ano – a chamada pública tem por objetivo receber propostas de livros de autores nacionais ou estrangeiros, dos diferentes campos do conhecimento artístico, científico ou filosófico, vinculados às universidades ou à sociedade civil, sobre temas de interesse regional, nacional ou estrangeiros.
As chamadas podem ser acompanhadas pelo site da casa. Já o processo de avaliação das obras a serem publicadas é feito pelo Conselho Editorial da Universidade Federal do Ceará, órgão composto por especialistas nos mais diversos campos do saber.
Clássicos cearenses não serão esquecidos. “Nossa atenção com eles é enorme, não só com os já publicados pela Editora UFC, mas com algumas joias ainda não publicadas que gostaríamos de editar. Um dos títulos que temos em mente, em avaliação, é o romance de Oliveira Paiva, ‘Dona Guidinha do Poço’, além de ‘A normalista’, de Adolfo Caminha”, aponta Juliana Diniz.
Ao mesmo tempo, ressalta: “O desafio de cuidar dos clássicos do passado sem descuidar do frescor das letras do presente foi assumido por nós na refundação da Editora UFC pela gestão do reitor Custódio Almeida”. Não sem motivo, as novidades.
Encerrando o ano de 2024, integrando as festividades dos 70 anos, a Editora UFC lançará o livro “Biografia da UFC”, de autoria do jornalista Lira Neto, e os cinco livros selecionados pelo Edital Flecha.
Em 2025, além dos livros artísticos, científicos e filosóficos selecionados pelo Edital Fluxo, a casa terá como foco editorial os 300 anos da cidade de Fortaleza, comemorados em 2026. Para fomentar o pensamento sobre a Capital dos tempos atuais, lançará, em abril de 2025, a antologia Fortaleza, poéticas do passado, reunindo ensaios, contos, crônicas e poemas de autores que conheceram a cidade dos séculos passados.
Também no próximo ano, passará a publicar mais mulheres cearenses, começando por uma antologia de contos e crônicas de Margarida Sabóia de Carvalho. Na sequência, editará o Dicionário Amoroso de Fortaleza, coletânea de crônicas da escritora Tércia Montenegro.
“Muitas outras publicações estão previstas para 2025 e 2026, dentre elas uma chamada pública para a submissão de crônicas sobre a cidade de Fortaleza dos tempos atuais. O Edital Fortaleza 300 anos será publicado no início de 2025 e pode ser acompanhado pelo site”, ressalta o professor Cavalcante Júnior.
“A Editora UFC é um equipamento vinculado à universidade, composto por uma zelosa equipe com servidores de longa experiência editorial, alguns deles remontando à década de 1980. A gestão tem buscado cultivar uma nova política de gestão mais horizontalizada e humanizada, reconhecendo o potencial criativo de cada integrante da casa, sempre estimulando o reconhecimento da importância da cultura do livro”, arremata Juliana Diniz.