Cearenses participam de projeto nacional com foco na desconstrução do imaginário nordestino

Iniciativa do Itaú Cultural reflete sobre temas como memória, machismo e lugar de fala e de falta, apresentando trabalhos como o de Silvero Pereira, colunista do Diário do Nordeste

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O ator e diretor Silvero Pereira em Mombaça, sua terra natal, para gravação do mini-documentário "Ser tão Nordeste"
Foto: Arquivo pessoal

Falar sobre o Nordeste está em voga, e não é à toa. A obra de ficção mais lida no Brasil atualmente é “Torto Arado”, do baiano Itamar Vieira Junior. Na economia, a região é apontada como uma das responsáveis para alavancar o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro neste ano, conforme projeções da startup 4intelligence. E há o fenômeno Juliette Freire, paraibana vencedora da mais recente edição do Big Brother Brasil, quebrando recordes e mais recordes de acessos e publicidades.

Apesar de toda essa acalorada movimentação, a construção do imaginário nordestino ainda é pautada por valores e representações que pouco dialogam com as verdadeiras realidades do território. Sobram impressões e falta concretude, o que abre margem para a discriminação e o desrespeito. Em um dos mais recentes projetos do Itaú Cultural, é a arte que assume a tarefa de ir na contramão dessa dinâmica, fomentando trabalhos na seara que instigam e inquietam.

Legenda: No mini-documentário "Ser tão Nordeste", Silvero Pereira conduz a narrativa a partir do próprio olhar, da visão dos pais e do sobrinho
Foto: Arquivo pessoal

As criações, no âmbito das Artes Cênicas, serão apresentadas como parte da programação do “Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas” – recorte do projeto Cena Agora, desenvolvido pela instituição. No total, 14 artistas ou grupos de 10 estados brasileiros ocupam o front, incluindo nomes cearenses.

São eles: o ator e diretor Silvero Pereira, colunista do Diário do Nordeste; a atriz, produtora e diretora teatral Jéssica Teixeira; o Grupo Ninho de Teatro; e o diretor Juracy de Oliveira, criador da Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, uma aglomeração on-line de artistas de diversas partes do país, criada durante a quarentena.

A proposta é que os participantes apresentem cenas de, no máximo, 15 minutos, com construções estereotipadas ou colonizadas sobre a região, otimizando reflexões a respeito dos conteúdos. Tudo virá a público no período de 20 a 23 de maio e de 27 a 30 do mesmo mês – sempre de quinta-feira a domingo. 

On-line e gratuita, a ação é realizada de quinta-feira a sábado, às 20h, e, aos domingos, às 19h, pela plataforma Zoom. As curtas apresentações são seguidas por conversas dos elencos com críticos e artistas convidados. Os ingressos devem ser reservados via Sympla

Registro e homenagem

Silvero Pereira integra o projeto a partir do mini-documentário “Ser tão Nordeste”, com exibição no dia 28 de maio, às 20h. É a primeira experiência dele como roteirista e diretor no segmento. Segundo o ator, a proposta para realizar a cena se deu a partir do desejo de que ela fosse um registro e, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua família.

“Decidi abordar minhas origens. Durante o processo criativo, eu estava em Mombaça, minha cidade natal, então aproveitei o momento para fazer registros sobre o lugar – a vegetação, as histórias que mudam de geração para geração”, detalha.
Silvero Pereira
Ator e diretor

O ponto de partida, assim, foi demonstrar a importância do reconhecimento de nossos antepassados, do respeito que precisamos ter com a própria ancestralidade. O assunto, não sem motivo, é um dos que mais tem pautado as vivências do artista atualmente. “A partir disso, desenvolvi um roteiro sobre passado, presente e futuro, conduzido a partir do olhar de três gerações: meus pais, minha visão e a visão de meu sobrinho”.

Conforme Silvero, as cenas buscam desconstruir os estereótipos nordestinos, sobretudo no que diz respeito à relação do povo com a terra, a vegetação, os afetos e as oportunidades. “Na minha cena existe o registro de um sertão chuvoso, verde, produtivo. Essas imagens não são tão exploradas quando se quer falar de nordestino no imaginário coletivo”, percebe.

Legenda: Segundo Silvero Pereira, "Ser tão Nordeste" desponta como um registro de sua família e uma forma de homenageá-la
Foto: Arquivo pessoal

Nordeste é potência e resistência. Gosto de usar nossa vegetação como exemplo. Vivemos no meio da caatinga que, aparentemente, não tem vida, que parece seca ou morta. Entretanto, é uma vegetação que se resguarda, que sabe a hora certa de se preservar e, na primeira oportunidade, nos primeiros pingos de chuva, mostra sua beleza e grandeza. O nordestino é isso. Atualmente falamos muito de ‘cactos’ por conta do BBB , mas isso é real. A gente se preserva, tem espinhos, mas brota uma das flores mais lindas de nossa vegetação”, festeja.

Entre escassez e abundância

A atriz, produtora e diretora teatral Jéssica Teixeira, por sua vez, entra no rol de trabalhos com a cena “Lugar de Falta”, marcada para ser apresentada no dia 27 de maio, às 20h. Ela situa que escolheu abordar a temática de forma a referenciá-la como um lugar insistentemente presente. 

“Afinal, estamos cheios de faltas, né? Há um paradoxo ao perceber isso: a falta e o cheio, a escassez e o muito. O trabalho gira em torno desses paradoxos e amplia as relações entre os corpos que habitam geograficamente o Nordeste e a produção cultural nordestina”, descreve.

Legenda: A atriz, produtora e diretora teatral Jessica Teixeira integra o rol de trabalhos com a cena “Lugar de Falta”
Foto: Igor Melo

A iniciativa nasceu de um texto que Jessica havia feito no início do ano passado, quando começou a pensar no seu segundo solo de teatro. Diante das imprevisibilidades da pandemia de Covid-19, ela começou a decupar os textos teatrais para produzir em audiovisual. Desta feita, fez uma adaptação da narrativa para o “Encruzilhada Nordeste(s)”

“Nesse texto, eu tenho uma conversa bem sincerona com deus sobre o Paraíso, e afirmo que não quero ir se lá não tiver gente faltando coisa – faltando dente, costela, mão, braço, perna e até um dedo mindinho. Porque massa mesmo é com gente faltando alguma coisa”, considera.

“Preciso contextualizar aqui também que eu sou dona e habitante de um corpo estranho e, nos últimos anos, meu corpo foi minha matéria bruta e prima de trabalho, então nesse trabalho não poderia ser diferente. Eu estou completamente absorvida e implicada nele com meu corpo, voz, sotaque, trejeitos e manias”, completa.
Jéssica Teixeira
Atriz, produtora e diretora teatral

Lugar de reflexão

A artista ainda conta que, ao elaborar a cena, pensou bastante se nela iria recortar uma localidade/relato histórico ou se simplesmente traria essa abordagem a partir de seu corpo/voz em cena. 

“Lugar de falta é um lugar de reflexão. Um lugar singular, e de movimento também. Porque, ao perceber a existência da falta, o movimento por reflexão ou por tentativas de preenchimento passam a acontecer. Acho que é também por essa escassez enraizada na nossa história que estamos cheios de tantas outras coisas, principalmente de produção cultural”, diz.

Legenda: O corpo de Jessica Teixeira – com sua voz, sotaque, trejeitos e manias – está completamente imerso no trabalho
Foto: Victor Augusto

Sob sua perspectiva, a representação que traz à tona pode ressoar nas pessoas que sentem um vazio, seja em si ou no entorno. “Talvez não ressoe nas pessoas que se acham muito inteiras, ou acham que têm tudo. Acho que isso é algo que eu realmente gostaria muito de saber depois da exibição: como essa reflexão chega, toca e ressoa em cada um”, questiona-se.

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Quanto a como observa a região onde nasceu e faz morada, Jéssica é enfática: o Nordeste é calor humano e acolhimento, solo onde novidades brotam de todos os lados. “As coisas são muito diferentes umas das outras. As pessoas, as regiões... Fortaleza mesmo é um exemplo disso. Eu saio de um bairro pra outro e parece que eu tô em outra cidade. Muda arquitetura, muda clima, muda modo de falar, muda modo de andar, muda tudo”, reflete. 

“Percebo também que o Nordeste é terra de gente curiosa, que quer saber de tudo, entender de tudo um pouco... Tem até uma música do Tom Zé que eu gosto bastante. É aquela que diz ‘Mas o que salva a humanidade é que não há quem cure a curiosidade’. Acho que é por aí.... o Nordeste tem suas faltas, mas quando o negócio é curiosidade, tem até demais”.
Jéssica Teixeira
Atriz, produtora e diretora teatral

Partes de um todo

Estabelecido há 13 anos no Cariri Cearense, o Grupo Ninho de Teatro igualmente imerge nesse campo de múltiplos saberes e buscas. E faz isso por meio da cena “Fractais”, com apresentação no dia 22 de maio, às 20h. O projeto se configura como fragmentos de uma trilogia que o grupo está pesquisando e montando desde 2018, focada na temática de gênero.

“A trilogia se chama ‘Fractal gêneros’, abraçando essa ideia do que seja um fractal, ou seja, partículas de um todo. Na nossa cena, há fragmentos de cada espetáculo do grupo, que são três. Há um que se chama ‘Descarga’, outro ‘Cabras’, e um terceiro, que não tem título ainda. Todos ainda não estrearam, então é uma espécie de abertura de processo”, contextualiza Edceu Barboza, produtor e pesquisador do grupo e do Coletivo Arruaça Escoamento, além de gestor e produtor no Ponto de Cultura e Espaço Cultural Casa Ninho.

Legenda: Cena realizada pelo Grupo Ninho de Teatro surge a partir de uma escuta de um movimento da sociedade, contemplando os vários femininos e masculinidades
Foto: Francisco Francieudes

De acordo com ele, a necessidade de falar sobre a temática deu-se pelos altos índices de violência na região em que os artistas da agremiação fazem morada, sobretudo no que toca aos corpos femininos. Por outro lado, a cena também abre um generoso espaço para reflexões sobre masculinidades, confrontando a estrutura machista e patriarcal sobre a qual a maioria das sociedades foi alicerçada.

“É assim que essa temática surge, muito a partir de uma escuta de um movimento da sociedade. Nós, enquanto Grupo Ninho, nos nossos processos de criação e pesquisa de linguagem, temos nos voltado há um bom tempo para essa escuta do lugar onde estamos, criando e pensando a partir dele, como uma janela para o mundo”, explica.

Sendo assim, a agremiação assume uma postura política e estético-poética, entremeando assuntos que dizem respeito a território, cultura, e pertencimento ao lugar onde vivem e criam.

Legenda: Com a cena "Fractais", o Grupo Ninho de Teatro assume uma postura política, a partir de um recorte estético-poético
Foto: Francisco Francieudes

“Sempre quando a gente fala de Nordeste, surge a pergunta a respeito do que é essa região – algo que não acontece quando falamos sobre as outras regiões do Brasil. Na verdade, o Nordeste é tudo e é nada. Ele simplesmente é. Como qualquer outra região, ele se faz e refaz a partir daquilo que o compõe. Agora, o projeto que fizeram e que até hoje tentam manter – de um imaginário, de um ideal de Nordeste pobre, seco, da fome, de pessoas embrutecidas – é uma idealização sudestina”, destaca Edceu.

“De todo modo, quem pisa no chão do Nordeste – quem cria, planta, vive, se alimenta desse território – sabe que aqui é tudo e é nada, no sentido da vivência mesmo. Quando o Itaú Cultural nos traz a possibilidade de pensar essas questões, é porque elas estão postas e sempre a gente se depara com elas. O Nordeste tem suas cores, são todas as cores; ele é diverso, plural, político, é resistência. O Nordeste é muito e pouco, tudo e nada. Ele é. Não precisa categorizá-lo porque ele já existe por si só”, conclui.
Edceu Barboza
Produtor e pesquisador do Grupo Ninho de Teatro


Serviço
Cena Agora – Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas
De 20 a 22 de maio, e de 27 a 29 do mesmo mês, às 20h; dias 23 e 30, às 19h. Ingressos devem ser reservados via Sympla. Programação completa, com todas as apresentações e mesas de debate, no site do Itaú Cultural

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