"Todo mundo se olha no espelho e se sente estranho"; Jéssica Teixeira lança livro sobre o corpo

Em entrevista ao Verso, artista cearense reflete sobre as potências do corpo a partir da condição de pessoa com deficiência. No e-book "E.L.A", Jéssica Teixeira esmiúça inquietações trabalhadas no espetáculo teatral homônimo

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Jéssica Teixeira projeta o próprio corpo a fim de desestabilizar e potencializar outros corpos e olhares
Foto: Raphael Maia

"Será mesmo que tem pessoas que se acostumaram ao próprio corpo e que não o estranham de maneira nenhuma?”. A provocação é feita por Jéssica Teixeira, atriz, produtora e diretora cearense. Pessoa com deficiência, a artista tem se empenhado em conduzir para o debate público, com cada vez mais urgência, questões sobre beleza, saúde, aceitação, política e acessibilidade a partir do próprio cotidiano, ampliando perspectivas.

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Na última quarta-feira (20), Jéssica deu mais um passo nessa empreitada ao lançar, de forma virtual, o e-book “E.L.A”. A publicação é capitaneada pela Aliás Editora e fomentada com recursos da Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor).

Nas páginas, disponíveis gratuitamente no site da Aliás, a atriz parte das inquietações trabalhadas no espetáculo teatral homônimo, idealizado e interpretado por ela. Nele, projeta o próprio corpo – que a artista mesmo define como “estranho” – a fim de desestabilizar e potencializar outros corpos e olhares.

“O corpo é uma estrutura muito poderosa de tomada de consciência”, afirma, ao mesmo tempo que também sublinha uma percepção que carrega consigo. "Acho que não dá para se acostumar com o nosso corpo".

Em entrevista ao Verso, Jéssica mergulha em uma variedade de vivências e memórias para nos convocar a enxergarmos nossa própria estrutura física como palco possível para múltiplos atravessamentos.

 

O espetáculo "E.L.A" parte de uma investigação cênica sobre o seu corpo. Que inquietações e percepções fizeram você se dedicar a esse tema?
Por onde eu começo? (risos). São muitas inquietações. Quando eu convidei o Diego Landin para me dirigir, parti de uma questão que eu achava que era muito minha, que era chegar nos lugares e perceber que as pessoas começavam a conversar com o meu corpo antes mesmo de eu conversar com elas. Eu tinha muito essa inquietação, que ele – “ele”, o meu corpo, inclusive eu o chamo na terceira pessoa mesmo, no masculino – chegava muito antes de mim. Isso acabou virando a dramaturgia do espetáculo, tendo em vista que eu queria ter a oportunidade de dar um “oi” para as pessoas antes do meu corpo.

O espetáculo, inclusive, começa no escuro. É uma das maneiras que eu consigo me apresentar, pela minha voz, antes mesmo dele chegar. Porque ele chega falando muito, é muito expressivo, comunicativo. Então, quando eu convido o Diego (Landim) para me dirigir e levo essa questão para ele, ele fala: “Mas, Jéssica, você sabe que essa é uma questão que não é só sua, né? É uma questão de todo mundo. Todas as pessoas entram em qualquer estabelecimento e os outros olham para os seus corpos, analisando de cima a baixo”.

Quando a gente se manifesta artisticamente, é exatamente para que outras pessoas reflitam, estranhem, inquietem, sobre aquele determinado assunto

Por isso decidi trazer isso para a arte, porque a arte precisa escapar o meu corpo, escapar de mim. O mim, o “eu comigo mesma”, eu trago no divã, na psicanálise – inclusive, a dramaturgia parte de algumas coisas que fui analisando, fruto de divã, e fazendo com que essas coisas chegassem em outras pessoas. A arte tem muito isso. Quando a gente se manifesta artisticamente, é exatamente para que outras pessoas reflitam, estranhem, inquietem, sobre aquele determinado assunto. 

De que modo você trabalha, no e-book "E.L.A", as discussões que integram a montagem? E por que o interesse em registrar tudo em uma publicação virtual?
Acreditei que o e-book seria possível exatamente a partir da perspectiva que eu queria que “E.L.A” escapasse do meu corpo, que outras pessoas pudessem montar o espetáculo. Assim, no texto escrito, tentei investir ao máximo nas rubricas – algo que é tão tradicional no teatro e nos próprios roteiros de cinema, em que as coisas vão sendo descritas, como o ambiente, a iluminação, a movimentação, o figurino… Investi bastante nessas descrições porque as pessoas não vão estar me vendo em cena. Também decidimos colocar várias imagens, de vários momentos do espetáculo, para que as leitoras e leitores tenham dimensão da montagem por meio do e-book. 

Legenda: O espetáculo "E.L.A." começa no escuro, uma das maneiras que Jéssica Teixeira consegue se apresentar antes do corpo físico aparecer
Foto: Raphael Maia

Fico pensando muito numa questão. Eu, como mulher, dona e habitante de um corpo estranho, nordestina, estou aqui fazendo o “E.L.A”. Aí, sei lá, um homem norte-americano, branco, cis, hétero e normativo, lê esse texto que carrega experiências totalmente diferentes das dele e pode adaptá-lo a essas suas vivências ou até mesmo fazer tal e qual a mim. Afinal, o que esse texto desperta em quem assiste ao espetáculo – por exemplo, num homem negro, numa mulher trans?  É uma questão que sempre me faço. E na montagem há questões, de fato, de todo mundo.

Todo mundo se olha no espelho e se sente estranho, ou já se sentiu assim, com o corpo que tem.

Isso é muito comum. Registrar esses pontos num e-book é bem nesse intuito, que isso possa ser montado, performado, encenado por outros corpos além do meu.

Você descreve o seu próprio corpo como estranho. É assim que você o percebe?
Percebo demais, todos os dias, e as pessoas percebem ainda mais (risos). Acho que não dá para se acostumar com o nosso corpo. Eu envelheço também. A minha performance, o meu desempenho, é muito diferente de quando eu tinha 16 anos e ia treinar para entrar em cena. Hoje, estou com 27 anos e esses dez anos entre uma idade e outra fazem muita diferença.  Tem uma gordurinha ali, tem uma resistência física que não vai, tem o cansaço que vem….

Agora, passei um ano dentro de casa, sem estar se exercitando tanto, então quando eu vou ensaiar percebo tudo isso. Tem coisas que não reagem, tem alongamentos que não vão mais. Eu fico pensando, “será mesmo que tem pessoas que se acostumaram ao próprio corpo e que não o estranham de maneira nenhuma?”. Porque os anos vão passando, independentemente de qualquer coisa. 

Essa possibilidade de escolher operar com o corpo é uma das nossas grandes potências enquanto ser humano, o que significa que não podemos fazer somente aquilo que disseram que temos que fazer

Quando eu falo desse “estranho”, existe um conceito de teatro, do Brecht [Bertolt Brecht (1898-1956) dramaturgo alemão] em que ele fala sobre esse estranhamento. Ele está aqui falando de uma cena de opressão, por exemplo, e a pessoa se emociona. Então ele para e diz: “Vamos tirar um pouco de emoção disso e vamos refletir sobre esse assunto?”. Essa atitude de parar e pensar faz a gente se movimentar, mudar, transformar algo. Não adianta estarmos só chorando ou rindo, o estranhamento tem muito isso. Quando eu estranho uma coisa, tomo consciência daquilo e decido fazer algo.

Acho que esse corpo, quando toma consciência de si, não só toma consciência dele, mas vem com um plus de eu poder escolher como eu opero com ele no mundo. Posso fazer isso simplesmente usando um biquíni na praia, tomando água de coco; posso utilizá-lo com toda a potência da nudez artística que ele pode assumir, com as curvas e desvios que ele tem. Essa possibilidade de escolher operar com ele é uma das nossas grandes potências enquanto ser humano, o que significa que não podemos fazer somente aquilo que disseram que temos que fazer. Podemos escolher como operar com ele no mundo a partir dos nossos limites, prazeres, vontades. O corpo é uma estrutura muito poderosa de tomada de consciência.

Nossos corpos são resultado de vários discursos e práticas. Nesse sentido, como o corpo feminino se presentifica perante a sociedade e como a sociedade reage a ele? O que esses movimentos sinalizam?
Eu sou uma mulher que sente mais dificuldade em me assumir enquanto um corpo de mulher do que com um corpo com deficiência. Confesso isso pra você aqui agora. Porque, desde muito adolescente, eu tinha muito contato com o ambiente masculino. Me vestia com roupas frouxas, usava cueca, sempre gostei de sapatos masculinos… Utilizo, então, essas roupas que foram ditas como masculinas – porque, para mim, elas são super estilosas. Tenho muita dificuldade desse certo binarismo, em me assumir mulher dentro das minhas próprias descrições. Por outro lado, não tenho tanta dificuldade em me assumir uma pessoa com deficiência, apesar de que isso também me constitui. Quando eu era criança e me diziam que eu não podia fazer algo – jogar futebol, por exemplo, ou carimba, vôlei, já que sempre gostei muito de esportes radicais, violentos, de contato – ficava pensando por que eu não poderia jogar, por que as pessoas falavam aquilo. Era porque eu era mulher ou porque eu era uma criança com deficiência?

Legenda: Para Jéssica, o corpo é uma estrutura muito poderosa para tomada de consciência
Foto: Raphael Maia

Tinha um plus de dois “nãos” que me chegavam. Então, eu cresci – levando em conta a deficiência, essa parte de mim que me constitui – muito afrontosa. E, no sentido de mulher, eu deixei um pouquinho ali de lado. Até agora eu tenho uma dificuldade de estar assumindo esse lugar. Ao mesmo tempo, penso que uma mulher pode ser uma mulher que não tem certeza do que é em gênero, na sua sexualidade.

A sexualidade é um fator extremamente importante porque envolve exatamente aquilo que a gente não vê à primeira vista, os nossos desejos, nosso inconsciente, o que move a gente por dentro. Ela é um dos lugares mais potentes e políticos que temos pra transformar muita coisa porque não pode estar dita – inclusive, levando em conta um binarismo. Temos que começar a burlar com tudo isso também. Nesse processo, a gente volta de novo para o assunto da estranheza. Essa confusão de quem nós somos pode ser muito válida para que se tire as certezas, as verdades que nos impõem todos os dias.

Você se relaciona com as Artes Cênicas desde criança. Qual a importância de uma consciência corporal logo cedo? Como isso influenciou na maneira de você perceber a si e ao mundo?
Antes de qualquer coisa, me constituo como artista porque, realmente, comecei a estar no meio desde criança. Não lembro quando eu entrei a primeira vez num palco para dançar, porque era muito nova, mas lembro da primeira vez que entrei num palco para atuar. Tinha sete anos. Assim, comecei a captar reações da plateia muito cedo. Olhares, aplausos, as caras e bocas que a plateia faz. E assumi isso para mim numa técnica recente, de alguns anos pra cá: fazer um espetáculo olhando muito para o público, já que eu consigo ter esse termômetro que tive a vida inteira. O tempo do riso, do choro… Cada apresentação é muito única. Cada público responde de uma maneira diferente.

Se Elza Soares diz que a carne mais barata do mercado é a carne negra, eu ouso dizer que a carne mais cobiçada é a carne defi (deficiente). É como se a gente tivesse um mistério, um tabu impregnado que faz as pessoas não saberem como lidar. Então, elas expressam nas suas faces e olhares aquilo que elas veem nelas. Já tive muita plateia que aplaudiu, mandou mensagem depois, as “gatas” se sentiram empoderadas; ao mesmo tempo, houve pessoas que me olharam com pena e aquelas que sequer conseguiram me olhar. Nisso tudo eu percebo um reflexo. Elas não estavam olhando para mim daquela maneira porque eu sou aquilo que elas olhavam; elas olhavam para mim daquela maneira porque elas são daquele jeito.

Se Elza Soares diz que a carne mais barata do mercado é a carne negra, eu ouso dizer que a carne mais cobiçada é a carne deficiente. É como se a gente tivesse um mistério, um tabu impregnado que faz as pessoas não saberem como lidar. Então, elas expressam nas suas faces e olhares aquilo que elas veem nelas

Por isso que eu falo desse lugar da cobiça, desse reflexo. Estar em contato com essas reações da plateia desde criança me faz hoje ter um primeiro percurso de poder falar sobre uma técnica de olhar, de uma expressão que escapa de mim e vira a expressão de uma outra pessoa que não quer dizer que seja eu, mas que reflete muito o que essa pessoa tem de experiências dentro dela mesma. Nesse processo de observação, sempre percebo o quanto estamos mal resolvidos com nós mesmos. 

Agora em e-book, as reflexões sobre "E.L.A" devem alcançar ainda mais públicos. Para você, o que é importante nesse processo de apreciação da obra? Que potências ela visa alavancar e também questionar?
Muitas potências. Mas penso especialmente que alavancar uma tomada de consciência de si. Que a gente pode fazer, ser, estar, do jeito que a gente quiser, tendo o direito de viver uma vida banal e corriqueira como qualquer outra. Tendo o direito de ser despercebida. De ser viva, sexy, atriz, uma líder, talvez. De poder ser muitas. Exercer, inclusive, o direito de ser feia – costumo até brincar com meus amigos sobre isso, que, por vezes, quero chegar em casa apenas para exercer o direito de ser feia, estar do jeito que dá. Ter o direito de ser o que quiser. Eu sei que a gente vive num mundo em que todos prezam muito por isso, em estar sendo vistos o tempo inteiro. Esse lugar é muito bom, e necessário. Mas tem aqueles momentos que a gente não quer ver mais ninguém e nem que ninguém nos veja. 

É poder ser muitas. Ser multifacetado é tudo e é muito importante entendermos que nosso corpo é isso: ele é estranho, político, é desejo – desejado e desejável –, ele é tecnologia, estético, ético. A gente precisa ser multifacetado para dar conta de tudo isso, e nem sabemos se vamos conseguir dar conta, né? Mas temos que tentar operá-lo da maneira que acharmos melhor. E só quem pode dizer o que é melhor para o nosso corpo é a gente mesmo.

E.L.A
Jéssica Teixeira

Aliás Editora
2021, 60 páginas
Disponível apenas em versão e-book; download gratuito pelo site da Aliás Editora

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