Cearense escreve cordel em homenagem a Juliette e à força do povo nordestino

Ao publicar os versos inspirada na vencedora do BBB 21, Ivonete Morais deseja promover maior valorização à região

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Juliette Freire inspirou a cordelista cearense Ivonete Morais a desbravar as diferentes potências e características nordestinas
Foto: Divulgação

Ivonete Morais e Juliette Freire não compartilham apenas a mesma terminologia nominal. Mulheres, nordestinas e com esmerada paixão pela região onde nasceram, elas se sintonizam em vários outros aspectos. As similaridades foram suficientes para que Ivonete – encantada com o jeito de ser da vencedora do Big Brother Brasil 2021 – escrevesse um cordel em homenagem à advogada, suscitando também reflexões acerca da originalidade de nosso povo.

Veja também

“Juliette no BBB 21 – A força e a resistência do Nordeste” é um dos mais recentes títulos publicados pela Rouxinol do Rinaré Edições. O cordel, escrito logo após o término desta edição do reality show, foi resultado de uma intensa torcida de Ivonete para que a conterrânea ganhasse a competição. “Juliette foi a minha preferida no jogo, do começo até o final do programa”, conta a cordelista cearense.

O entusiasmo com que relata, em versos, a trajetória da sister na casa comprova a alegria que acompanhou a artista durante os meses em frente à tela, espiando a casa do BBB. Segundo ela, houve inúmeros momentos de identificação com as boas atitudes de Juliette e o jeito de ser dela, “forte e leal com os brothers”.

Reunidos, todos esses detalhes ganharam uma costura tão leve quanto inteligente na arte da poesia popular. “Para compor os 32 versos de forma a homenagear Juliette, foquei nessa bela nordestina sempre comunicativa, que resistiu às más verbalizações das placas que os brothers lhe ofertavam com a finalidade de desmontá-la no jogo”, explica. “No cordel, comparei-a com os cactos, pela sua resistência e reais superações”.

Revelando alguns trechos da criação, Ivonete destaca as estrofes que iniciam a travessia pelas temáticas abordadas. “Foi no maior reality show/ A Juliette se inscreveu/ E durante os 100 dias/ Muita coisa aconteceu/ Os brothers a ignoravam/ E também a isolavam/ Mas tudo ela venceu”, proclama o poema.

Legenda: Capa do cordel em homenagem à Juliette Freire e o Nordeste
Foto: Divulgação

Atualidade do cordel

A trovadora também comenta sobre uma interessante característica da arte do cordel: a atualidade dos temas trabalhados. Versáteis, eles conseguem beber tanto de premissas ligadas à cultura popular – de onde provém suas origens – quanto de assuntos ocupantes da ordem do dia, a exemplo do Big Brother Brasil e tantos outros em esfera nacional e mundial.

“Geralmente, nós, cordelistas, estamos sempre ligados com os fatos atuais para escrevermos cordéis. Também fazemos pesquisas com diversos temas culturais e socioeducativos. Eu, de forma pessoal, me identifico com assuntos relacionados à mulher empoderada”, situa. 
Ivonete Morais
Cordelista

O modo como traz as questões à tona tornou-se, inclusive, objeto de estudo de pesquisadores. Recentemente, cordéis de Ivonete Morais foram esmiuçados pela professora Liduína Maria do Carmo, do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Ela defendeu a dissertação “Literatura de cordel e o empoderamento feminino: uma proposta para o letramento literário em sala de aula”, conquistando o título de Mestra pela instituição.

De acordo com Rouxinol do Rinaré – cordelista e também editor da casa que publicou o mais recente projeto de Ivonete – não é de hoje que o cordel abraça uma multiplicidade de conteúdos. Está na gênese desse gênero literário. “O cordel sempre falou de tudo, desde as histórias de príncipes e princesas às sagas de vaqueiros e cangaceiros – além de estar atento ao cotidiano, aos grandes e pequenos acontecimentos importantes”, sublinha.

Legenda: Temas atuais e outros com vertente tradicional ocupam as páginas dos cordéis de Ivonete Morais e outros cordelistas
Foto: Camila Lima

Por essas peculiaridades, no passado já foi considerado o “jornal do sertão”. Há quem diga, conforme relata Rouxinol, que muitas pessoas distantes dos grandes centros urbanos só acreditaram na chegada do homem à Lua após ler o fato nos folhetos populares.

“O cordelista sempre está atento aos temas atuais. Aconteceu, virou cordel, a ‘turma’ não perde tempo”, ri. “Quem mergulhar de maneira profunda na pesquisa dessa literatura encontrará suporte para entender melhor nosso País, uma vez que o cordel sempre registrou os principais acontecimentos da História – desde a revolução de Canudos até a morte de Getúlio Vargas (1882-1954), por exemplo”, dimensiona.

Primeiros passos

Para Rouxinol, o cordel sobre Juliette deve despertar no público reflexões sobre o respeito às minorias, ecoando, assim, discussões sobre o preconceito em geral. “Ivonete tem sempre publicado conosco, ela e várias outras mulheres cordelistas atuantes – Nilza Dias, Julie Oliveira, Paola Tôrres, Marta Gama, Vânia Freitas, só pra citar algumas. Ela é uma amiga de longas datas, parceira sempre presente nas Bienais e feiras, onde quer que se abra espaço para nossa literatura de cordel”, contextualiza.

“É sempre um prazer editar nossos colegas. Me sinto feliz com a atuação de nossa Rouxinol do Rinaré Edições que se traduz, sobretudo, em possibilidades para cordelistas novos e veteranos, com opções para todos os ‘bolsos’, uma vez que trabalhamos também com pequenas tiragens – o que não era comum quando comecei a publicar minhas obras, na década de 1990”, recorda.
Rouxinol do Rinaré
Cordelista e editor

A própria história de Ivonete Morais também rende uma vastidão de temáticas para um cordel. Descrevendo a si própria como “cordelista dos temas urgentes”, a poeta popular é filha das canções do Rei do Baião. A lembrança, tão viva na dobra do tempo, se conecta à infância, quando ouvia os versos entoados com vigor pelo mestre Luiz Gonzaga (1912-1989).

Movida por um embalo novo, ela ensaiava um passo de dança, uma aventura corporal que fosse, na improvisada pista de casa. “Acredito que tenha sido isso o que me tornou o que sou hoje”, considera. “Tenho 68 anos e uma das coisas que mais me alegra foi eu ter sido mãe, que é o que queria na minha vida. A outra é a literatura de cordel, que fluiu a partir de uma determinada idade. E uma coisa digo pra você: não existe tempo certo pra crescer na vida”.

Legenda: A predisposição de Ivonete Morais para falar de temas relacionados à mulher nasceu com as atividades realizadas no antigo ofício, em uma repartição pública
Foto: Camila Lima

A artista tem formação em Sociologia e trabalhou durante vários anos numa repartição pública. Mas se orgulha em dizer que sente a real profundidade da existência desde que se tornou cordelista. Tinha 50 anos. À época, numa reunião, conheceu uma poeta popular, Maria Luciene, cujos saberes foram utilizados para escrever um cordel em homenagem ao meio século de vida de Ivonete.

“Ela foi à minha casa e contei a minha história. No meu aniversário, ela leu o texto e todo mundo aplaudiu. Depois, Luciene me convidou para fazer um curso em literatura de cordel porque, segundo ela, eu era cordelista. Tinha visto algumas coisas guardadas minhas e percebeu os versos rimados”, lembra.
Ivonete Morais
Cordelista

Ali iniciava um enlace descrito como eterno.

Superações e reconhecimentos

A formação no gênero literário se deu em 2004, por meio de um curso na Casa do Cantador, localizada no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza. O processo durou um ano, reunindo mais de 30 poetas de vários lugares do Ceará. A artista destaca que os encontros foram muito importantes porque foi a partir deles que ela escreveu o primeiro cordel, “O amor de A a Z”, com o qual venceu um concurso voltado para poetas e funcionários públicos do Estado.

A predisposição para falar de temas relacionados à força da mulher nasceu com as atividades realizadas no ofício público. “Eu trabalhava de segunda a sexta na área social. Além de ministrar oficinas socioeducativas para mães, visitava cada uma delas nas favelas. O cotidiano era pesado e aquilo ficou na minha mente. Por isso que eu valorizo demais as mulheres”, diz.

Legenda: A mala que acompanha a cordelista congrega trabalhos autorais e de colegas
Foto: Camila Lima

Outro componente também merece destaque nesse seara. Há quatro anos, Ivonete enfrentou um câncer de mama. Durante o tratamento no Instituto do Câncer do Ceará (ICC), ela fez um cordel com o título “Sou mastectomizada”, uma vez ter perdido a mama esquerda. “São 40 estrofes ao todo, mas eu sempre seleciono apenas sete e as declamo em todo canto”, ressalta.

A criação abriu portas para que se apresentasse em várias feiras, festivais e programas de televisão, sempre com grande presença de público e amplo reconhecimento. Não sem motivo, a cordelista detém o título de Mulher Poesia, pelo Grupo Chocalho; recebeu o certificado de reconhecimento como cordelista, conferido pelo Governo do Estado do Ceará; certificado da Caixa Cultural, pela IV Feira do Cordel Brasileiro, entre outras condecorações. 

Possui também um livro publicado, “Beleza Poética em Versos Rimados”, e, antes da pandemia de Covid-19, expunha as criações em espaços como o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Theatro José de Alencar, Praça dos Leões, Caixa Cultural e bienais do livro. 

“A literatura de cordel me deu, inclusive, autoestima”, confessa, ao visualizar, na casa em que reside, a cordelteca que montou para si. O espaço teve como inspiração a Cordelteca Maria das Neves Baptista Pimentel, mantida pela Universidade de Fortaleza, e foi inaugurado no ano passado. Além de reunir os cordéis de autoria da artista – mais de 60 deles publicados, sendo 16 enaltecendo as mulheres – também congrega peças artesanais, livros de pesquisa e folhetos de colegas.

Legenda: Ivonete Morais mantém uma cordelteca na própria casa desde fevereiro do ano passado
Foto: Divulgação

Ivonete também tem como marca registrada a mala com a qual anda, repleta de cordéis e histórias. “Foi um amigo que a personalizou e, desde então, sempre estou acompanhada dela”, sublinha. “A dificuldade na literatura de cordel é você fazer a métrica. Isso envolve a rima e a história, que nós chamamos de oração. Ou seja, se você fala sobre mãe num texto como esse, tem que continuar falando até o fim. Isso é a oração de um cordel”, explica.

Sonho

Por vezes criando 24 estrofes de cordel por dia, Ivonete celebra esse movimento de criatividade e inspiração. Depois de já ter escrito sobre rapadura, bonecas abayomi, Frida Khalo, entre outros assuntos, ela agora projeta outros temas, sem perder de vista, claro, a cultura na qual foi moldada e os temas sincronizados com o hoje.

Até lá, torce por algo que deseja muito com o novo trabalho: “Quero que o meu cordel chegue até à Juliette”. A depender do alcance das demais produções da cearense, quem sabe o sonho esteja próximo, à espreita, difundindo em alta voz: “Meus Parabéns, Juliette!/  Representou o Nordeste/ do nosso querido Brasil/ Riqueza do vasto agreste/ com sua desenvoltura/ enalteceu a cultura/ com esmero, tu fizeste”.

Juliette no BBB 21 – A força e a resistência do Nordeste
Ivonete Morais

Rouxinol do Rinaré Edições
2021, 8 páginas
R$ 3 (compra diretamente com a autora, por meio do e-mail ivonete.cordelista@gmail.com

Ana Beatriz Caldas, Diego Barbosa e João Gabriel Tréz
12 de Abril de 2024