Artistas visuais cearenses compartilham obras que dialogam com reflexões em meio ao isolamento

Sentimentos e vivências da quarentena de artistas visuais cearenses são materializados em obras produzidas por eles neste período

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Legenda: Reflexões sobre o isolamento estão presentes na tirinha de Felipe Kehdi
Foto: Ilustração: Felipe Kehdi

Diante do silêncio de fora, o barulho pode ser grande dentro. Isso não é regra, tampouco exceção. Além do mais, esse movimento, em muitos casos, resulta em expressões nítidas do que temos guardado. É bem assim que deve funcionar com os artistas. Em quarentena, como muitos de nós, alguns deles têm dedicado esse período de isolamento à criação. Nos traços e cores partilhados, palpitam a solidão, o autoconhecimento e, ainda, os desejos de liberdade.

Foi tudo ganhar essa proporção que estamos acompanhando, que Raisa Christina voltou-se para o lar dos pais, no sertão de Senador Pompeu. Em seu enclausuramento numa casa secular, surgiu a ideia do projeto #NudesDeQuarentena. “O desenho pra mim sempre foi um lugar de escuta e de percepção do outro, da sua presença. Gosto de fazer retratos ao vivo. Como já não poderia fazer ações nesse sentido, me pareceu interessante fazer uma chamada convidando pessoas a me enviarem ‘nudes’ por e-mail, para que eu desenhasse a partir dessas imagens e publicasse no meu Instagram enquanto houvesse papel craft no meu bloquinho”, conta a artista visual cearense.

Legenda: Raisa Christina ilustrou “Carla” em pastel oleoso sobre papel craft neste mês de março
Foto: Ilustração: Raisa Christina

O retorno foi instantâneo, o que de certa forma alimenta essa produção-resistência, que é, antes de tudo, subjetiva e particular. “Não saberia experimentar a vida de outra maneira”, confessa Raisa. Já os colegas contemplados por seu trabalho admitiram que há tempos não se dedicavam a se olhar de verdade, a perceberem o próprio corpo, suas texturas, cores e volumes. “Foram se gostando mais, foram se percebendo com mais afeto e é esse autocuidado, esse amor próprio que o projeto parece inspirar, além de discussões nos campos da sexualidade, do erotismo, do desejo, do gênero”, pontua.

Diálogos

Esse processo de interação com amigos e seguidores nas redes sociais também motivou os últimos trabalhos do ator e desenhista Peaug. Nesses dias solitários, ele tem optado por dar um descanso ao próprio corpo, focando no desenho, mas sem forçar uma produção, a fim de evitar a ansiedade. Neste sentido, o artista trouxe mais humor para seus traços. “Eu sinto que além de refletir sobre a solidão do isolamento, algo que já era bem presente no que eu fazia, eu preciso rir um pouco mais”, observa.

Legenda: O humor está mais evidente nas obras de quarentena do desenhista Peaug
Foto: Ilustração: Peaug

Nas obras mais recentes, Peaug tenta dizer como vem levando esses dias, inspirado por alguns temas que não saem de sua cabeça e outros que as pessoas mandam. As respostas sensíveis e bem-humoradas lhe são estimulantes. “A potência nisso mora na capacidade que o trabalho tem de comunicar e ajudar a alcançar conhecimentos, a refletir e organizar pensamentos, e dar algum apoio à mente das pessoas. Para além de contar a história e das reverberações no futuro, eu acho maravilhoso o bem que identificar-se com um trabalho artístico pode fazer por alguém agora”.

Produzir sob essa perspectiva é novidade para o ilustrador e animador gráfico cearense Felipe Kehdi. Há pouco tempo ele começou a publicar projetos pessoais no Instagram e algumas pessoas se interessaram, o que o surpreendeu. Uma tirinha autoral mais recente retrata com precisão algumas das ações provocadas pelo isolamento, especialmente no caso do próprio artista, que mora sozinho.

“Como tenho passado bastante tempo em casa, lendo muitas notícias nacionais e do mundo, acho que os sentimentos de preocupação podem acabar se traduzindo um pouco nos desenhos. Ao mesmo tempo, sinto que também há muita autorreflexão nesses dias, o que se traduz em alguns sentimentos bons e outros ruins. A arte nesse momento traz de volta o sentimento humano de coletividade ao relacionar-se com algo do cotidiano em que estamos todos inseridos”, analisa.

Respiros

Apesar de ter pintado bem menos do que gostaria nos últimos dias, a tatuadora e ilustradora Juliana Lousada reconhece a importância destes processos artísticos no contexto de pandemia. “Músicos, ilustradores, artistas em geral... O que seria de nós se não tivéssemos coisas bonitas e inspiradoras para ver e ouvir nos tempos atuais? A arte compartilhada nesse momento está aí para que a gente não definhe somente em notícias ruins, para que a gente abra um sorriso, se inspire, compartilhe também coisas boas”, acredita.

Legenda: Juliana Lousada esboçou ideias de liberdade no primeiro trabalho realizado durante a quarentena. No Instagram, ela compartilhou o timelapse do processo
Foto: Ilustração: Ju Chooo

Recentemente, a artista publicou um vídeo caseiro em timelapse com todo o processo de uma pintura feita em quarentena, acreditando ser isso também uma espécie de terapia. “É uma ilustração que me fez questionar sobre a liberdade e o poder de estar aqui. A liberdade não precisa estar somente fora, pode estar dentro de si. De se descobrir, se conhecer, se renovar para um momento totalmente novo que estamos passando”, defende.

Bombardeio de informações, montanha russa emocional e produtividade, temas que atravessam a criação desses artistas, também ganharam forma nas ilustrações digitais de Gabs Martins, frequentemente compartilhadas nas redes sociais. “Eu sempre tento abordar no meu perfil muito do que eu tô sentindo e o que está acontecendo no momento. Então a temática nesse período realmente se voltou pra esse assunto”, diz ela, com mais de 400 mil seguidores no Instagram.

Legenda: Para a ilustradora Gabs, respeitar nosso ritmo e nossas vontades é importante nesse momento
Foto: Ilustração: Gabs Martins

A cearense reforça uma ideia base a ser transmitida nesse contexto: não existe uma forma certa de lidar com isso. “Algumas pessoas estão fazendo o possível para se manterem ocupadas, outras não estão conseguindo fazer nada. É importante não ter essa cobrança de se sentir pressionado a produzir nesse momento, e sim respeitar o que estamos nos sentindo confortáveis para fazer ou não”, diz. Se a arte te ajudar nessa jornada, aproveite para apreciá-la agora mesmo, então.

Serviço
Acompanhe mais trabalhos dos artistas citados pelo Instagram
Raisa Christina: @raisa.christina
Pedro Augusto: @peaug
Felipe Kehdi: @kehdi
Juliana Lousada: @ju.chooo
Gabs Martins: @ilustragabs

Exposição virtual no Mauc

Nesse contexto de pandemia, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc) realizará a exposição virtual “Arte em Tempos de Covid-19”, a primeira nessa modalidade em sua história.Podem ser inscritos trabalhos artísticos – escultura, fotografia, ilustração, arte digital, bordado, charge e performance – criados a partir de 15 de março deste ano, data em que foi iniciada a quarentena no Estado. Voltadas para cearenses ou residentes no Ceará, as inscrições ficam abertas até o dia 25 de abril, exclusivamente pelo e-mail mauc.inscricoes@gmail.com. Cada artista pode inscrever até três obras. A exposição terá caráter exclusivamente virtual e os conteúdos serão disponibilizados nas redes sociais – Facebook e Instagram – do Mauc (@museudeartedaufc). Além disso, o projeto prevê a disponibilização de todo o conteúdo no site e no Flickr do museu, a organização de um catálogo virtual e a elaboração de um vídeo institucional para o canal do YouTube.

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