Arte, vida e loucura são temas de reflexões de atriz com transtorno bipolar em documentário brasileiro
“As Linhas da Minha Mão”, dirigido por João Dumans e protagonizado por Viviane de Cássia Ferreira, está em cartaz em cidades selecionadas
Uma crise mental, uma transa fortuita em um trem na Itália com um jovem desconhecido, receber como presente de Tom Jobim uma rosa. Essas são algumas das experiências compartilhadas pela atriz Viviane de Cássia Ferreira ao longo do documentário “As Linhas da Minha Mão”, já em cartaz em cidades selecionadas, incluindo Fortaleza, no Cinema do Dragão.
Diagnosticada com transtorno bipolar há 20 anos, a artista é protagonista do filme, que tem direção do cineasta João Dumans e venceu, em 2023, a Mostra de Cinema de Tiradentes. Sem se propor a ser didático ou elucidativo sobre o tema da saúde mental e até sobre a própria retratada, o longa consiste em uma série de cenas nas quais, basicamente, Viviane fala.
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Ora em sequências mais extensas, ora em outras mais curtas, o filme tem como base, principalmente, a voz e o discurso da protagonista. Há poucos elementos de contexto e cada sequência existe quase que de maneira autônoma.
Em todas, a despeito de aparentes desconexões entre si, há elementos de ligação que estabelecem não somente uma espécie de narrativa — ainda que não convencional e fragmentada —, mas também um norte estético e criativo: os planos estão quase sempre interessados no rosto de Viviane ou nas mãos dela enquanto fala.
As experiências elencadas no início deste texto são recontadas pela artista em diferentes sequências da obra, seja para um interlocutor aparente, seja para a câmera — logo, também para o realizador e/ou o público.
Esse jogo de performatividade que depende do espectador complexifica o retrato. De forma peculiar e precisa, a atriz traz elaborações bastante frontais e honestas sobre o ofício, a doença, mas também a criação, a fantasia e as finas fronteiras entre os pretensamente estabelecidos conceitos de “ficção” e “realidade”.
Não há estabelecimento de fronteiras claras entre uma e outra nas histórias contadas e opiniões compartilhadas por Viviane. Buscar quais ocorreram de fato, quais são inventadas para o momento das filmagens e quais são possíveis frutos do transtorno mental da protagonista é tanto infrutífero quanto um cartesianismo negado pelo próprio filme.
Essa negação, inclusive, se dá a partir de uma bem-vinda ênfase no gesto da criação. Nos créditos da obra, Viviane aparece creditada, por exemplo, nas funções de “figurino” e “argumento, roteiro e proposições cênicas”, o que evidencia que o local da artista na produção foi além daquele de “sujeito observado”, mas de criadora.
Este gesto de criar surge como um borrador de definições pretensamente fechadas, tornando não só maleáveis as fronteiras, mas os próprios conceitos. Tal porosidade está contida nas próprias ideias partilhadas por Viviane e pelo filme em si.
Sobre a história da rosa recebida como um presente de Tom Jobim, a protagonista, por exemplo, conta o caso e diz que ele ocorreu no dia anterior àquela conversa. “Vocês podem duvidar quantas vezes quiser, mas (...) em algum mundo isso foi possível”, atesta.
Na narração da experiência, ela explica que saiu de casa para fazer uma coisa e, “do nada”, comprou uma rosa. De volta ao lar, buscou no YouTube o vídeo de um show que o artista fez fora do Brasil e, em uma das canções, ele cantava sobre dar de presente uma flor.
“Entendi isso como se fosse uma realidade perfeita, o céu tava lindo e eu acho que a gente transita, sim, entre os mundos através da arte, através da espiritualidade plena”, defende ela, veemente, seguindo: “Vivo isso com amor e verdade e ninguém há de me tirar essas sensações”.
O discurso termina com um questionamento: “Eu não preciso de choque elétrico pra acabar com isso, preciso? Você se incomoda em dizer que eu ganhei ontem uma flor do Tom Jobim?”. O nível de despojamento com que Viviane argumenta e se abre chega a ser desconcertante.
As defesas e complexidades da artista não funcionam, decerto, como um manifesto que fale sobre a totalidade de pessoas que têm diagnóstico de transtorno bipolar ou que trabalham com arte. “Não me sinto autorizada pra falar mais sobre nada que não seja sobre mim”, avisa a protagonista ainda no início do longa.
Falando de si, no entanto, Viviane convida o coletivo à reflexão. Não é exatamente caso de um “específico” que reflete um “todo”, mas sim de um dispositivo disparador de provocações sobre estruturas e noções sedimentadas.
Em outra sequência, ao listar temas sobre os quais quer se expressar artisticamente, ela cita um “desejo de compartilhar saberes e ideias e transformar, revolucionar o mundo”. “As Linhas da Minha Mão” surge, então, como ferramenta para concretizá-lo.
Confira o trailer
As Linhas da Minha Mão
Quando: sessões dias 14, 16 e 17, sempre às 18 horas
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
Quanto: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia); ingresso promocional na terça-feira a R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia)
Mais informações: @cinemadodragao