“Agradeço hoje estar vivo por causa dela”, diz mestre Espedito Seleiro sobre a partida da esposa

Na última quinta-feira (9), o mestre do couro se despediu da amada Francisca, com quem estava casado desde a década de 1960

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Legenda: A família de seleiros, em agosto de 2019
Foto: Foto: Thiago Gadelha

Um amor feito o de seu Espedito e dona Francisca é desses que nascem para florescer na arte, e, no caso deles, se entrelaçar pelo couro. O casal de artesãos, que construiu toda uma vida na pequena cidade de Nova Olinda, no Cariri cearense, precisou desfazer alguns pontos e se separar na noite da última quinta-feira (9), com o falecimento da matriarca da família de seleiros. Logo, o coração do mestre ficou pequenininho, mas profundamente grato por tudo que a eterna companheira fez por ele ao longo de seis décadas de união.

“Agradeço hoje  estar vivo por causa dela”, disse, em entrevista exclusiva ao Verso, na tarde desta Sexta-Feira Santa (10), quando o sono ainda não havia chegado, desde que tudo aconteceu. O mestre da cultura cearense trabalhou esses anos todos no ofício que aprendeu com o pai e o avô, mas que também passou para ela, os seis filhos vivos (três já faleceram) e os cinco netos. Nesse percurso de vida, a parceria da esposa foi fundamental.

Quando ele a conheceu, a jovem tinha apenas 13 anos, um pai super protetor, seu Sebastião Santana de Brito, e uma mãe rezadeira, dona Maria Vicença da Conceição, que sempre a levava para as renovações, uma das festas religiosas mais populares do sertão. Francisca, nascida no sítio Serra do Queimado, no Crato, era a mais nova das seis filhas do casal. Todas se chamavam Maria, menos ela. “Acho que foi promessa da mãe para São Francisco”, aposta seu Espedito.

O artesão, que não se imaginava homem casado, deu o braço a torcer quando pôs os olhos na menina.

Eu tinha umas namoradas, mas não via mulher para casar. A primeira vez que eu vi Francisca, ela passou na frente da bodeguinha, fiquei olhando e pensei: não tem mais jeito não, vou desmanchar a promessa e com essa dali, se der certo, eu caso”, conta
.

Tratou de dar logo um par de sandália de couro para a amada e, um ano depois de um namoro meio às escondidas, Espedito tomou coragem e foi na casa do velho Sebastião pedir a mão da futura companheira. “Ele aceitou e fez uma festa que até hoje o povo fala, a maior do Crato, foi o casamento nosso”, recorda entre risos e saudades.

Amor e companheirismo guiaram a trajetória do casal

Dali para frente, não teve um dia que o artesão não reconhecesse a grandiosidade de sua fiel companheira. “Pra mim foi uma ótima esposa. Apesar de ter casado muito nova, o juízo era de gente adulta, uma pessoa que só trabalhava e gostava muito de passear mais eu. Pra criar os meninos, ela dava a vida todinha dela, por qualquer menino, adorava os filhos”, destaca o mestre. 

Legenda: Espedito Seleiro ao lado da filha Cícera e da esposa Francisca
Foto: Foto: Patricia Araujo

Além de exímia artesã, era também boa vendedora, e colocava o saco cheio de sela na cabeça para ir nas feiras com o marido, alegre e satisfeita, ainda no começo, quando a marca não tinha o reconhecimento internacional que conquistaram hoje. Os clientes a adoravam. “Vinha gente de São Paulo. Ela fazia um café tão bom que dava vontade de engolir até a língua”, brinca o artesão.

Os forrós de Luiz Gonzaga e Dominguinhos costumavam embalar a artesã, em seu rádio, mas dançar mesmo só com Espedito ou os filhos. “Nós nunca se separemo um minuto, a não ser que eu fosse viajar e ela ficasse em casa. Mas negócio de discussão, briga, ciúme...Ah, ela era um pouquinho ciumenta, porque também eu era danado, mas isso é coisa de quem gosta”, detalha o mestre. 

Legenda: Dona Francisca no ateliê da família, em 2009
Foto: Foto: Reprodução/ Patricia Araujo

Nos primeiros anos de casamento, quando ele ia para as feiras ou festas sozinho, dona Francisca não falava nada. Mas, no dia seguinte, lá se vinha o sermão, que seu Espedito não ousava rebater. Cansou de receber menino de recado, dizendo que alguém o esperava para comprar algo na oficina, mas era só dona Francisca com cuidado, querendo saber se ele estava se comportando no meio do mundo.

A era outra característica marcante da artesã. “O que eu admirava mais é que ela rezava a noite quase toda pedindo felicidade para toda a família. Tinha oração que só quem sabia era ela”, recorda o companheiro. Dessa devoção, ele quer lembrar para sempre. Inclusive porque, no último dia de vida da amada, lá estava ela a rezar um pai nosso e uma ave-maria, entre um hospital e outro.

Do meu modo de pensar, acho que só tenho que rezar muito pra ela e pedir a Deus que coloque no bom caminho, no bom lugar. Receba ela com carinho, parecido com o que ela recebia as pessoas, amigas dela, pessoal que gostava. Era essa a mensagem que eu gostaria de deixar”, despede-se, com amor, o mestre Espedito.

Legenda: Homenagem escrita pela neta de dona Francisca e seu Espedito, Rayssa de Souza Carvalho, por ocasião do falecimento da avó

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