40 anos sem Elis Regina: Como a arte da cantora segue fascinando o público

Ao longo das décadas, a memória da artista é reverenciada com livros, filme e o carinho de novas gerações da música brasileira

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Elis Regina na capa do disco
Legenda: Elis Regina na capa do disco "Em Pleno Verão" (1970)

Há exatas quatro décadas, a voz de Elis Regina (1945-1982) encontrava a eternidade. Tinha 36 anos e uma trajetória única nas artes do Brasil. Naquele janeiro, o silêncio ocupou o lugar do sublime, território esse tão comum às atuações da cantora nos palcos e discos.  

Até hoje, a popularidade em torno dessa estrela da MPB ultrapassa as fronteiras da música. Por parte do público, respeito e fascínio tentam decifrar a vida profissional e pessoal da artista. Cantora, mãe, intérprete... Estão lá a coragem, o temperamento à flor da pele e o amor incondicional ao ofício.   

"Cantar para mim é uma coisa séria, um sacerdócio. O resto é resto”, traz relato publicado no Diário do Nordeste em 1982. Na entrevista à jornalista Léa Penteado, originalmente veiculada no O Globo, a gaúcha definiu o significado de sua arte.  

“Dediquei minha vida a cantar e não tem homem, nem pai, nem mãe, que me tire disso. Quem atravessar no meio para dividir ou diminuir, vai ser atropelado, como um trator passando por cima de uma margarida. Nada me segura quando o maestro conta quatro...”. 

Nos últimos anos, biografias, documentários, cinebiografia e o carinho de diferentes gerações da música repercutem a influência dessa entidade brasileira. “Eu brinco que aprendi a cantar imitando Elis Regina”, compartilha a cantora e compositora Lorena Nunes.  

O tom lúdico da declaração acompanha um fato. As interpretações emocionadas de Elis atravessaram a infância da artista. Ao invés de ouvir os discos que o mercado empurrava na criançada do seu tempo, quem lhe acompanhava era uma fita K7 recheada de sucessos da Pimentinha. 

“Cantava na ordem. Não sei se era uma coletânea, mas ouvia ‘Menino das Laranjas’, Fascinação’, ‘Cartomante’, ‘Upa Neguinho’. Todas elas, cantarolava e brincava repetindo diversas vezes”. 

Lorena Nunes e a paixão de infância: uma fita com músicas de Elis
Legenda: Lorena Nunes e a paixão de infância: uma fita com músicas de Elis
Foto: Divulgação

Mulher valente  

Muitos afirmavam que Elis Regina ainda estava em ascensão quando morreu. Cantava desde os 11 anos em programas infantis da rádio Farroupilha. Em 1961, foi até São Paulo gravar o primeiro disco de sua intensa caminhada.  

O álbum “Viva a Brotolândia” era uma forma da então gravadora Continental emplacar uma nova Celly Campello, popular entre os jovens daquele instante. Em janeiro de 1982, um mês antes de partir, a cantora falou sobre o início de carreira ao programa Jogo da Verdade da TV Cultura (SP). 

Ao responder à pergunta do colega Renato Teixeira (de quem gravou "Romaria"), Elis explicou que seu interesse máximo naquele instante era ser original. Nada de se prestar a ser uma “segunda pessoa”.  

"Diz que a perfeição é uma meta, eu estava à cata dela. Continuo à cata. Não sei se vou chegar lá algum dia, mas eu queria morrer sendo eu. Naquela época era muito importante pra mim isso"
Elis Regina
Janeiro de 1982

A mudança para o Rio de Janeiro que fervia com a cristalização da MPB pós-bossa nova foi um passo singular na trajetória da artista. Do lendário Beco das Garrafas advém o contato com bambas como Leny Andrade, Wilson Simonal, Zimbo Trio, Bossa Três e TambaTrio. Sem falar na profunda ligação com Miéle e Ronaldo Bôscoli. É dessa época as aulas de coreografia com o bailarino norte-americano Lennie Dale, marca registrada de seus primeiros anos de fama. 

Atriz Andréia Horta no papel da cantora no filme
Legenda: Atriz Andréia Horta no papel da cantora no filme "Elis" (2016)

1965 foi tempo de virada. O disco “Samba Eu Canto Assim” demarcava outro tipo de sonoridade em seu repertório. Por sua vez, a participação no 10º Festival da Música Popular Brasileira (TV Excelsior) lhe valeu o prêmio máximo com interpretação de “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moraes).  

Na sequência vieram o show “Dois Na Bossa” e o programa televisivo "O Fino da Bossa” (TV Record), ambos ao lado de Jair Rodrigues. A produção revelou toda uma nova geração de cantores e compositores da MPB emergente. Passaram por lá nomes como Nara Leão, Baden Powell, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Caetano Veloso (fase pré-Tropicália). 

Encarou elogiada carreira internacional, onde gravou dois álbuns - um em Londres e outro ao lado do gaitista Toots Thielemans. Durante os anos 1970, Elis se firmou na sua posição de grande intérprete, além de lançar uma série de novos compositores da MPB.  

Além de ser a primeira mulher a gravar Gilberto Gil e Milton Nascimento, desbravou os talentos de Ivan Lins, João Bosco, Lô Borges e Gonzaguinha. Dessas parcerias, constam entre as mais prolíficas o contato com os cearenses Fagner e Belchior.  

Da união com Belchior 

A cantora Vannick Belchior segue o legado musical do pai. À frente do espetáculo “Das Coisas que Aprendi nos Discos”, composto por trabalhos clássicos do poeta, a jovem artista leva essa magia aos palcos de Fortaleza e outras cidades do Nordeste, caso de Natal (RN). 

“Elis para mim é o princípio fundamental de todas as cantoras do Brasil", resume Vannick Belchior. Com mesma alegria e intensidade, ela revela que o encontro da gaúcha com o cearense guarda a característica de unir forças únicas na arte. 

“Achei complementar essa parceria. No passo em que meu pai era compositor, entrava com a genialidade das ideias, Elis era genial na qualidade das interpretações, originalidade, o fazer cênico e o sentir do cantar”, descreve  

Vannick resgata que a oportunidade dada por Elis a Belchior veio em um momento especial do poeta. Justamente quando ele batalhava dando os primeiros passos da carreira na distante São Paulo. Ela gravou duas composições, hinos também na voz dela: “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”.  

União entre duas forças criativas rendeu hinos da música brasileira, aponta Vannick Belchior
Legenda: União entre duas forças criativas rendeu hinos da música brasileira, aponta Vannick Belchior
Foto: Divulgação

“Deram suas contribuições socio culturais e artísticas para o Brasil e Mundo. Tinha um ponto congruente. A verdade da arte é a verdade da vida. Do que sentimos e da sensibilidade. Essa parceria, além de marco cultural, histórico e artístico, foi uma junção de pensamentos e sentimentos similares que tinham sobre a vida e o contexto em que viviam”. 

O brilho de Elis 

A inspiração em Elis, compartilha Vannick, reside na qualidade cênica de suas performances. “Ela cantou o sentimento da mulher como ninguém, como em ‘Me Deixas Louca’. Cantou as mulheres do Brasil, as Marias, as Madalenas. Para mim é uma grande honra, ser mais uma mulher do Brasil dando voz a essas canções interpretadas por essa cantora tão incrível”, conclui. 

Para Lorena Nunes, esse brilho tão intenso se une com a sua história de vida. Um processo que acabou por influenciar algumas das escolhas criativas da cantora. Com dois elogiados discos na carreira, “Ouvi Dizer que Lá Faz Sol” (2014) e “La Mar” (2020), sua voz é realidade em diferentes palcos do Brasil 

“Sempre fui muito ladeada de música brasileira. Elis era essa presença muito forte e cresci assim. Compartilho do lance dela ter sido atenta aos compositores contemporâneos e mais novos. Esse garimpo entre a galera que estava produzindo, estipula Lorena Nunes. 

Outro aspecto inconfundível é a diversidade sonora e as letras que continuam rigorosamente atuais. “Ela chegou a pegar aquele lirismo ainda bem radiofônico, das letras mais rebuscadas, mas uma das coisas que mais amo assim no trabalho de Elis é como ela escolhia músicas que trazem uma coloquialidade, aquela maneira de falar da gente, um lirismo que me identifico demais”, define Lorena Nunes. 

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