Guia Completo: o que está em jogo no julgamento de Bolsonaro?
Além de Bolsonaro, outros sete réus serão julgados nesta fase do caso
O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no Supremo Tribunal Federal (STF), será um dos mais importantes da história do Brasil. A partir desta terça-feira (2), pela primeira vez, um ex-presidente brasileiro irá enfrentar a decisão dos magistrados da mais alta Corte do País sobre a acusação de tentativa de golpe de Estado.
De acordo com cientistas políticos, seja qual for o desfecho do julgamento, o resultado irá impactar profundamente o cenário político nacional, redesenhar arranjos para as eleições de 2026 e reforçar ou abalar a confiança nas instituições democráticas.
O réu será julgado pela Primeira Turma do STF, que é composta pelos ministros Cristiano Zanin (presidente), Alexandre de Moraes (relator do caso), Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino. Além do ex-presidente, outras sete pessoas serão julgadas nesta etapa.
São eles:
- Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil no Governo Bolsonaro, candidato a vice-presidente em 2022;
- Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente;
- Alexandre Ramagem, deputado federal e ex-presidente da Abin;
- Almir Garnier, almirante de esquadra e comandante da Marinha no Governo Bolsonaro;
- Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro;
- Augusto Heleno, ex-ministro do GSI;
- Paulo Sérgio Nogueira, general e ex-ministro da Defesa de Bolsonaro.
Bolsonaro pode acabar preso?
Bolsonaro e aliados podem ser condenados ou absolvidos da acusação de terem articulado uma trama golpista para impedir a posse do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e manterem o ex-presidente no poder mesmo após a derrota nas urnas em 2022.
Se for condenado, há possibilidade de prisão imediata. Para isso, a Primeira Turma precisa votar pela condenação de forma unânime ou com apenas um voto divergente. Caso dois magistrados votem contra a condenação, os advogados poderão apresentar embargos infringentes, em uma tentativa de reformar a decisão em prol do voto minoritário.
Quais os impactos do julgamento de Bolsonaro?
Não só pelos personagens envolvidos — que também incluem generais da mais alta patente das Forças Armadas do Brasil —, o caso é considerado um divisor de águas na Justiça brasileira e coloca o STF no centro do debate político nacional. A Corte será testada sobre sua capacidade de julgar um ex-presidente sem que isso seja interpretado como perseguição política ou como impunidade.
Além disso, especialistas destacam que, mais do que a punição individual, está em jogo a capacidade das instituições de se defenderem de ataques à ordem democrática.
"Um enquadramento útil é o debate sobre a importância de mecanismos legais para proteger o regime democrático e se as suas instituições estão dispostas a se autodefender. Entendo que é preciso defender eleições como método pacífico de seleção de governantes"
A coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará, Monalisa Soares, ressalta que, dentro do contexto democrático do Brasil, esta é a primeira vez em que um atentado à democracia é julgado sob um processo público, transparente e com provas robustas que sustentam as acusações.
Paralelamente, Monalisa aponta que o desfecho do caso pode intensificar o tensionamento entre as instituições.
"Há iniciativas, especialmente no Legislativo, que buscam tensionar esse resultado e desfazer o resultado do julgamento. Trato aqui especificamente das iniciativas em torno da anistia. Já vínhamos vendo isso acontecer em nome dos núcleos (com pessoas) comuns, e agora temos uma intensificação muito mais expressiva com o andamento do julgamento, que implica o ex-presidente Bolsonaro e generais"
Considerando os impactos políticos-eleitorais, ela acrescenta ainda que, caso haja condenação, deflagra-se uma corrida em busca do espólio político de Bolsonaro, já o ex-presidente precisará recalcular seu papel no pleito de 2026.
A professora Priscila Lapa, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também chama atenção para o impacto político do julgamento e destaca que isso vai muito além da figura de Bolsonaro.
"O caso trata de um ato político contrário à democracia, buscando a extinção ou a anulação de processos democráticos. Não é algo circunscrito apenas ao âmbito judicial, fala muito sobre a robustez e a capacidade de resposta das instituições democráticas a tentativas de violação da democracia", argumenta.
Ela explica que, além das lições aprendidas em processos recentes como a Lava Jato — que evidenciam como falhas no devido processo legal fragilizam a democracia —, o julgamento mostra a capacidade do Estado brasileiro de reagir a ataques institucionais.
"Estamos falando do nosso sistema eleitoral, da capacidade de dar respostas de credibilidade e confiança nas instituições, para que cidadãos e a classe política entendam que esse é um jogo a ser respeitado, um dos pilares da democracia"
Para a pesquisadora, o julgamento coloca em jogo a arquitetura institucional. "Ali estão as instituições historicamente conhecidas por salvaguardar o Estado, como as ligadas às Forças Armadas, e a capacidade de avaliar o quão blindadas estão diante dessas tentativas, mantendo o devido processo legal, ampla defesa e provas robustas. No final de tudo, o que está em jogo efetivamente são as instituições democráticas brasileiras, mais do que a persona de uma liderança política", conclui.
O que colocou Bolsonaro no banco dos réus?
Antes mesmo de ser eleito presidente do Brasil, em 2018, o então deputado federal Jair Bolsonaro já fazia críticas ao STF. Contudo, as falas pontuais deram lugar a ataques mais contundentes e sistemáticos depois que ele virou presidente da República.
O principal alvo do político era — e continua sendo — o ministro Alexandre de Moraes, responsável por comandar as investigações sobre uma suposta rede de disseminação de notícias falsas.
Com a pandemia, os atritos se ampliaram, Bolsonaro passou a atacar decisões do STF sobre isolamento social, vacinas e medidas de saúde pública, e intensificou a retórica contra ministros.
Veja também
Um dos episódios mais marcantes do leque de investidas do ex-presidente ocorreu em 18 de julho de 2022. Ainda como presidente, ele reuniu embaixadores e atacou o sistema eleitoral brasileiro, afirmando — sem provas — que as urnas eletrônicas eram vulneráveis a fraudes. A conduta lhe rendeu um processo na Justiça Eleitoral, que terminou com o político sendo condenado à inelegibilidade por oito anos.
Durante a campanha eleitoral e após ser derrotado em 2022, Bolsonaro repetiu o discurso de contestação das urnas eletrônicas e estimulou dúvidas sobre o processo eleitoral. As falas do então presidente ressoaram entre seus eleitores mais fiéis, que organizaram acampamentos em frente a quartéis e multiplicaram pedidos de intervenção militar.
O estopim dos movimentos antidemocráticos ocorreu em 8 de janeiro de 2023, quando milhares de manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes (o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal).
Mesmo com os prédios vandalizados, as instituições democráticas reagiram à tentativa de golpe. As três sedes foram retomadas, centenas de golpistas foram presos e os trabalhos restabelecidos. O episódio é alvo de investigações conduzidas pela Polícia Federal (PF) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR). É no âmbito dessas apurações que Bolsonaro será julgado a partir desta terça-feira.
Os investigadores já identificaram minutas de decretos golpistas, movimentações financeiras para financiar os atos e planos para impedir a posse de Lula e até assassinar autoridades públicas do País. A investigação também contou com a delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que detalhou a atuação do grupo.
Do que o Bolsonaro é acusado?
Jair Bolsonaro é acusado pela PGR de:
- Organização criminosa armada (art. 2º, caput, §§2º, 3º e 4º, II, da Lei n. 12.850/2013);
- Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal);
- Golpe de Estado (art. 359-M do CP);
- Dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (art.163, parágrafo único, I, III e IV, do CP);
- Deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei n. 9.605/1998).
Cronologia
2021
8/3/2021 — A PGR aponta que, logo após Lula recuperar os direitos políticos, Bolsonaro e aliados passaram a discutir formas de impedir, inclusive por vias ilegais, uma eventual vitória do petista.
29/7/2021 — Bolsonaro participa de “live” em que acusa, sem provas, o processo eleitoral brasileiro de ser fraudulento.
4/8/2021 — TSE instaura procedimento para apurar ataques de Bolsonaro às urnas e encaminha ao STF. Moraes inclui o caso no inquérito das fake news.
7 set 2021 — Bolsonaro faz um dos discursos mais duros contra o STF, ataca as urnas e afirma que não cumprirá decisões de Moraes.
2022
5/7/2022 — Bolsonaro comanda reunião ministerial em que orienta sua equipe a questionar urnas e o Judiciário.
18/7/2022 — Em reunião com embaixadores estrangeiros, Bolsonaro ataca o sistema eleitoral brasileiro. Esse encontro levou o ex-presidente à inelegibilidade por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação.
30/10/2022 — Após a derrota, Bolsonaro entra em reclusão. Parte do seu eleitorado bloqueia rodovias e pede, em frente a quartéis, intervenção militar. Aliados do presidente criam um plano para prender e assassinar adversários.
7/12/2022 — As investigações apontam que Bolsonaro apresentou ao então comandante do Exército, general Freire Gomes, uma documento com alternativas golpistas para impedir a posse de Lula.
12/12/ 2022 — Na diplomação de Lula, em Brasília, bolsonaristas tentam invadir a sede da PF e incendeiam ônibus e carros
30/12/ 2022 — Bolsonaro viaja aos Estados Unidos e não participa da posse de Lula.
2023
8/1/ 2023 — Eleitores bolsonaristas invadem a Praça dos Três Poderes e depredam o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma investida golpista.
30/6/2023 — TSE torna Bolsonaro inelegível por conta dos ataques às urnas durante a reunião com embaixadores.
2024
8/2/2024 — Operação “Tempus Veritatis”, da Polícia Federal, realiza buscas contra Bolsonaro e aliados.
2025
26/3/2025 — STF recebe denúncias oferecidas pela PGR contra Bolsonaro e aliados.
18/7/2025 — Moraes impõe medidas cautelares contra Bolsonaro, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica e a vedação ao uso de redes sociais.
4/8/2025 — Moraes decreta prisão domiciliar de Bolsonaro.
30/8/2025 — STF agenda o julgamento de Bolsonaro para os dias 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro.
2/9/2025 — Início do julgamento.