Legislativo Judiciário Executivo

Do casamento infantil ao abuso sexual, como a legislação pode proteger as meninas no Brasil

O 11 de outubro é o Dia Internacional da Menina, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas ainda em 2011

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Legenda: As meninas sofrem violências específicas que ainda precisam de olhar atento para garantir a prevenção e a reparação da violação de direitos
Foto: Fabiane de Paula

Em 2024, 56 mil meninas brasileiras com menos de 14 anos foram vítimas de estupro de vulnerável. O número é cinco vezes maior do que o número de vítimas do sexo masculino — foram 11 mil meninos vítimas desse crime no ano passado. O dado é do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. As meninas também tem maior participação no serviço doméstico, considerado trabalho infantil, com quase 60% delas realizando algum afazer doméstico, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua realizada em 2024.

Também são as meninas aquelas que mais casam antes dos 18 anos, o que é considerado casamento infantil segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC). Segundo o IBGE, diariamente 43 casamentos de menores de idade são realizados, dos quais 40 são de adolescentes do sexo feminino — apenas em 2019, foram proibidos todos os casamentos de menores de 16 anos, mas adolescentes entre 16 e 18 anos ainda podem casar, segundo a legislação brasileira.

Neste 11 de outubro, Dia Internacional da Menina, os dados das violências que ameaçam a infância e adolescência de meninas em todo o Brasil reforçam a necessidade, e urgência, na proteção aos direitos dessa população. E a responsabilidade por isso passa diretamente por todas as instâncias do Poder Público. 

Temas como casamento infantil e a violência sexual contra meninas são temas recorrentes de projetos no Congresso Nacional, trazendo avanços e também retrocessos, mas também precisam ser prioritárias na agenda do Poder Executivo — seja ele federal, estadual ou municipal —, principalmente com o investimento de recursos na temática. E, mais do que isso, é necessária a ampliação do conhecimento da sociedade sobre essa temática.  

O Dia Internacional da Menina, que ainda não consta no calendário oficial do Brasil, foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2011 "a fim de reconhecer os direitos das meninas e os desafios únicos que elas enfrentam em todo o mundo".

Ela reforça um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, que estabelece como meta "alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas" até 2030.

O objetivo inclui eliminar todas as formas de violência e discriminações contra meninas, acabar com  práticas nocivas "como os casamentos prematuros", assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva, além de "adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero".

"Esse dia é um marco para reconhecer que as questões de gênero afetam, determinam e estruturam, na verdade, opressões", afirma a coordenadora geral do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará), Marina Araújo. 

"É muito importante localizar o Dia da Menina, situando que dentro da população de crianças e adolescentes, as meninas sofrem a opressão de gênero e essa opressão é dada porque existe uma relação de poder". 
Marina Araújo
Coordenadora geral do Cedeca Ceará

Se a criança e o adolescente sofrem violências específicas, inclusive pela relação de poder exercida por adultos, o recorte de gênero acrescenta uma nova cama de opressão, vivenciada pelas meninas desde novas. Uma construção história em uma sociedade "constituída por valores patriarcais", como define Michelly Antunes, líder das iniciativas de Proteção da Fundação Abrinq. 

Ela reforça que mulheres e meninas são "vistas como cidadãs de segunda classe" e, por isso, "acabam sendo privadas de oportunidades e de direitos". "Isso acaba revelando um histórico sistemático de violações e violências contra a mulher e contra as meninas que são vistas como 'naturais'", aponta. 

Essas violências sofridas por meninas podem ser agravadas ainda por outros fatores, como raça. "É preciso situar que as meninas e, sobretudo no Brasil, as meninas negras, as meninas empobrecidas, as meninas que moram nas periferias da cidade e no interior do estado, sofrem opressões diferentemente e vivenciam as desigualdades de acesso a direitos e de acesso às políticas públicas diferentemente dos meninos", avalia Marina Araújo. 

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Qual a responsabilidade do Poder Público?

Ao falar sobre o olhar necessário para a proteção às meninas, existem diversos temas que precisam de atenção. A violência, principalmente a sexual, aliada a exploração sexual, demanda iniciativas urgentes, mas existem outros problemas para as meninas. 

Entre eles, está o casamento de adolescentes do sexo feminino e a gravidez na adolescência — incluindo, o direito a maternidade, nem sempre respeitado —, aspectos que, muitas vezes, atrapalham a permanência das meninas nas escolas. 

Assim como o trabalho doméstico infantil, "caracterizado como aquele trabalho onde a criança cuida do irmão menor e faz os afazeres domésticos de casa", afirma Michelly Antunes.

Marina Araújo chama atenção ainda para as "infâncias invisibilizadas", que são "tanto as meninas vítimas de violência, não só a sexual, mas também a letal, como as meninas que estão privadas de liberdade no Brasil". 

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Muitos desses temas são pauta de propostas apresentadas no Congresso Nacional. Um deles, o Projeto de Decreto Legislativo 3/2025, por exemplo, busca revogar uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que "dispõe sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e a garantia dos seus direitos". 

Segundo Marina Araújo, a resolução é "emblemática", porque "garante o atendimento humanizado especializado para essas vítimas de violência sexual". O documento oferece, por exemplo, diretrizes para profissionais da saúde, da segurança pública, da assistência social e da educação que irão lidar com meninas e meninos que sofrem com essa violência. 

"Se o Congresso aprova e vai de encontro a essa resolução, a gente está querendo dizer que as meninas vítimas de violência sexual não terão esse atendimento humanizado e conforme estabelece a Constituição e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)", diz. 

Outro tema constantemente abordado em propostas no Congresso Nacional é o casamento infantil. A lei nº 13.811, aprovada em 2019, proibiu o casamento, "em qualquer caso", de crianças e adolescentes menores de 16 anos, a chamada idade núbil. 

Antes disso, os casamentos eram permitidos "desde que autorizado pelos pais, para evitar cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez". Na época da aprovação, a deputada federal Laura Carneiro (PSD-RJ) ressaltou que, até aquele momento, 877 mil crianças se casaram no Brasil até os 15 anos de idade, sendo 88 mil com 10 anos de idade.

Contudo, apesar de revogado o trecho que permitia o casamento de crianças e adolescente antes dos 16 anos, o Código Civil permaneceu com outros artigos que dão brecha a entendimentos que autorizem esse casamento de quem não atingiu a idade núbil. É o caso do artigo 1.151, que diz que "não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez". 

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Também de autoria de Laura Carneiro (PSD-RJ), projeto de lei busca revogar esse artigo e outros similares, além de adicionar ao Código Civil que será nulo o casamento "por quem não atingiu a idade núbil". O projeto, no entanto, continua parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. 

Por outro lado, está em tramitação projeto de lei que busca "flexibilizar" o casamento de adolescentes entre 16 e 18 anos — ainda considerados casamentos infantis. Hoje, é necessária a autorização de ambos os pais, ou responsáveis legais, ou autorização judicial. 

A proposta, de autoria do deputado federal Fernando Máximo (União-RO) quer que seja necessária a autorização de apenas 1 dos pais ou responsáveis legais. Um outro projeto, de autoria de Tabata Amaral (PSB-SP) e Maria do Rosário (PT-RS), proíbe o casamento de menores de 18 anos em qualquer circunstância. Os dois também estão na CCJ da Câmara dos Deputados.

Pressão pública 

Michelly Antunes pontua que o legislativo ainda é "muito desafiante" quando se trata do avanço de projetos de lei para a proteção das meninas. "O avanço dos projetos de leis voltado a questão do casamento infantil é algo que caminha ainda muito lento, porque tem uma mistura, dentro do legislativo, de ideologias religiosas e ideologias partidárias que acabam interferindo no avanço de algumas políticas", exemplifica. 

Ela reforça a importância do parlamento como lugar de avanço de políticas públicas, mas considera que ainda é necessária uma mobilização da população brasileira para que o legislativo entenda a relevância de pautar o tema. 

"Quando está com esse assunto muito aquecido na sociedade, o legislativo acaba entendendo como um assunto importante. A gente tira o caso recente do tema da adultização: explodiu ali na sociedade, ganhou uma dimensão muito grande e o legislativo entendeu como um ponto importante para avançar nas discussões", relembra.

Em agosto, após o youtuber Felca viralizar falando sobre o tema, houve uma sucessão de projetos de lei tratando sobre a adultização de crianças e adolescentes na internet. Em apenas um dia, deputados apresentaram mais de 20 projetos sobre o tema. 

Por isso, para Antunes, existe uma urgência em "conscientizar e sensibilizar" a sociedade sobre a proteção aos direitos das meninas. Ela cita, por exemplo, a necessidade de difundir a própria existência de uma data para o Dia Internacional da Menina. 

"É uma luta ainda muito nichada por grupos de militantes, que envolvem a causa da mulher e da menina. Então, a primeira (demanda) é educar a sociedade, mostrar à sociedade de forma muito pedagógica que existe sim um Dia Internacional da Menina e o porquê dessa data. E mostrar dados e informações do quanto que, historicamente, essas mulheres e essas meninas têm as suas desigualdades".
Michelly Antunes
Líder das iniciativas de Proteção da Fundação Abrinq

A cobrança social por atenção a essa pauta pode fortalecer entidades que trabalham diretamente na luta em defesa ao direito de meninas, e mesmo de todas as crianças e adolescentes, na pressão ao Congresso Nacional para valorizar e priorizar essa proteção. 

Antunes lembra, por exemplo, que além de projetos de lei, os deputados federais e senadores também são responsáveis pela aprovação de emendas parlamentares — e a ausência de investimentos é uma das travas na garantia de direitos de meninas e meninos. 

"O Congresso, e na verdade todos os atores do sistema de garantia de direitos que são responsáveis pelas políticas públicas e pelo acesso a direitos dessa população", acrescenta Marina Araújo. Ela pontua que é necessário avançar no cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 35 anos em 2025, e da Constituição Federal, mais especificamente o artigo 227. 

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
Artigo 227
Constituição Federal

"O Congresso precisa colocar energia no fortalecimento das políticas públicas que são para a infância e que garantam o cumprimento do Estatuto da Crianças e do Adolescente e não contrário a ele e ao que estabelece as normativas internacionais. Mas, infelizmente, o que o Congresso tem feito é andar contrário ao que estabelece os acordos internacionais, dos quais o Brasil é signatário", critica Araújo.

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Obrigação de quem tem 'o poder da caneta'

Marina Araújo reforça ainda que a Constituição Federal garante "prioridade absoluta" para crianças e adolescentes e é necessário que o Poder Público fortaleça o acesso dessa população a direitos e também a garantia de proteção. 

"Criança e adolescente, ele deve ter prioridade, e as meninas são incluídas nisso. Elas devem ter prioridade na prestação de serviços públicos", diz.

Para isso, é preciso ainda de um fortalecimento de ações por parte de quem tem "o poder da caneta", ou seja, o Poder Executivo, seja ele federal, estadual ou municipal, ressalta Michelly Antunes. Ela acrescenta a maior brecha para a efetividade da proteção às meninas: o investimento financeiro. 

"A cobrança principal é investimento financeiro. É ter o recurso financeiro para que possa investir nessa política pública", destaca. 

"São recursos que não estão sendo destinados a essas políticas públicas, particularmente. E quando a gente vai olhar para a execução delas, na sua grande maioria, ali dentro dos municípios, se  identifica equipamentos que deveriam de fato proteger essa criança e não tem profissionais qualificados, não têm profissionais especializados para fazer esse tipo de atendimento a essas crianças", completa.

O investimento, inclusive, precisa focar não só no acolhimento das meninas, e na "reparação de direitos" a quem passou por violências, mas também em impedir que essa violência aconteça. "Atuar para a prevenção e não só para a reparação de direitos", resume Marina Araújo.

A proteção a meninas brasileira envolve diferentes aspectos, sendo a atuação do Poder Público um dos mais determinantes para alcançar as metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, com foco na igualdade de gênero desde o início da vida e, principalmente, a diminuição da violação de direitos que tanto ameaçam a infância e adolescência feminina no País. 

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