Ceará é 3º do NE em casamento de adolescentes: 'não significa que estão prontos para vida conjugal'

São autorizados casamentos a partir dos 16 anos desde que haja autorização de ambos os pais ou representantes legais, ou por decisão judicial

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Casamento de adolescentes são subnotificados no Ceará
Legenda: Apesar de proibida desde 2019, uniões de jovens com menos de 16 anos continuaram ocorrendo
Foto: shutterstock

O Ceará é o 3º estado do Nordeste com maior número de casamentos de adolescentes com menos de 18 anos de idade, no acumulado de 2017 a 2020, de acordo com as Estatísticas do Registro Civil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em todos os anos da série histórica, meninas representam mais de 90% das uniões no Estado.

No Brasil, a Lei 13.811/2019 estabeleceu que “não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil”, ou seja, abaixo de 16 anos.

Porém, são autorizados casamentos a partir dos 16 anos desde que haja autorização de ambos os pais ou representantes legais, ou por decisão judicial, segundo o Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002).

Apesar do terceiro maior montante, o número de uniões desse tipo caiu 47% no Ceará, entre 2017 e 2020, passando de 1.478 registros para 775.

Apesar de proibida desde 2019, uniões de jovens com menos de 16 anos continuaram ocorrendo em 2020: foram 28 casos no Nordeste, sendo oito no Ceará e 10 no Maranhão. Apenas Sergipe e Piauí zeraram os registros.

A assessoria de comunicação da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) informou que os motivos para esses registros só poderiam ser apurados com os nomes dos cartórios envolvidos, mas o IBGE não divulga essa informação.

“Aí tem uma subnotificação porque, na maioria dos casos, não existe casamento, mas ‘ajuntamento’. Aqui é mais camuflado, ainda há muita hipocrisia da sociedade em fingir que está tudo bem”, alerta a presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca), Mônica Sillan.

A representante considera difícil dar um diagnóstico certeiro, fora do contexto de subnotificação geral causado pela pandemia da Covid-19, porque não há pesquisas oficiais que embasem políticas públicas de prevenção. No entanto, reconhece que meninas são mais afetadas.

"A gente não pensa como um casamento"

A impressão é ilustrada pela história de N.T., 19, moradora de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. Ela começou a morar com o namorado, um ano mais velho, aos 16 anos, porque a casa dele ficava mais perto da escola onde estudavam. Com o tempo, foi ficando até se estabelecer totalmente.

“Quando perguntavam: ‘vocês moram juntos?’, eu negava. Tinha vergonha, sempre achei muito estranho ser nova e morar com o namorado. Na minha cabeça, eu não morava. Com 17, aceitei isso”, percebe. 

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A mudança também foi impulsionada pela “falta de privacidade” e por ela “não se dar bem” com alguns familiares com quem morava. Três anos depois, N.T. ainda tem dificuldade em processar o que efetivamente é a relação.

“A gente não pensa como um casamento, somos namorados morando juntos. É difícil, às vezes não concordamos, me estresso e digo que quero ir embora, mas é mais pela coisa do momento. Depois, a gente conversa”, afirma.

A estudante conta que os dois planejam sair da casa da sogra e terem seu próprio espaço. Filhos ainda não estão nos planos: o foco dos dois, conforme combinaram, deve ser a formação acadêmica e a busca por bons empregos. 

Ticiana Santiago, doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), considera que casos assim são exceção porque “dependem muito da rede de apoio da menina”.

“Se ela não tem a quem recorrer, não consegue fugir. Essa conseguiu construir outras perspectivas porque tudo é um processo histórico. Hoje, temos uma ramificação e disseminação maior das discussões, embora não tanto quanto a gente precisa”, nota.

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"Jovens não são mini adultos"

Na percepção de Mônica Sillan, a sociedade ainda promove um “adultocentrismo”, em que características da vida adulta são atribuídas a crianças e adolescentes - desde as vestimentas, a erotização e a incitação a relacionamentos com “namoradinhos/as”.

Contudo, apenas as alterações do corpo e uma aparente maturidade em “dar conta do recado” não significam que os jovens estão prontos para assumir uma vida conjugal.

“As pessoas acham que o adolescente não requer mais proteção integral. Há uma tolerância quanto à idade, acham natural que uma menina esteja com um homem mais velho. Isso passa muito por uma cultura sexista e machista de que elas são objetos que podem ser barganhados e negociados. Depois, romantizam dizendo que foi ‘o amor que chegou’”, indigna-se.

A assistente social cita especialmente os casos de famílias vulneráveis que concordam com esses “ajuntamentos” porque alguém se dispôs a “sustentar suas filhas”, num papel deturpado “do príncipe que vai transformar a vida da gata borralheira”.

Ciclos podem se repetir

Legenda: Especialistas apontam que jovens ainda não têm a devida maturidade cognitiva para assumirem a vida conjugal.
Foto: José Leomar

Para a psicopedagoga Ticiana Santiago, o uso da mulher como moeda de troca cria uma relação prejudicial de submissão doméstica que pode ser reproduzida em novos ciclos de violência por várias gerações.

Isso porque, diante de perspectivas de vida limitadas, avós e mães podem naturalizar os casamentos infantis como única forma de garantir a sobrevivência das filhas e netas.

“A primeira consequência não é só engravidar, mas a imagem que constroem de si mesmas, de serem posse provedor da casa”, explica.

O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) também concorda, em nota técnica, que o casamento infantil é considerado “uma forma de violência” e “uma prática de violação dos direitos de crianças e adolescentes que afeta, sobretudo, a vida de meninas”.

O recorte de gênero traz grandes discrepâncias nos índices gerais de uniões. Em 2017, casamentos infantis representaram 15% do total de registros no Ceará - 11,5% envolvendo meninas. Em 2020, a balança também pesou mais para elas: embora o índice geral tenha caído para 12%, meninas ainda representaram 9,4% do total.

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Um estudo do Banco Mundial, publicado em 2019, aponta que o casamento infantil está associado principalmente à ocorrência de:

  • gravidez precoce e indesejada;
  • a tentativa de controlar a sexualidade das meninas;
  • busca por parte das meninas ou familiares de segurança financeira;
  • o desejo das meninas de saírem de casa em busca de mais liberdade mesmo diante do contexto de oportunidades educacionais e de renda limitadas;
  • o desejo de homens mais velhos de casar com meninas mais novas.

Há falta de estudos locais sobre a temática, mas, nos atendimentos cotidianos, Mônica Sillan nota que os casamentos precoces tendem a não ser duradouros porque “nenhuma criança tem a capacidade de gestão de uma vida adulta”. 

Segundo ela, essas pessoas perdem a oportunidade de cometer erros e corrigi-los, bem como a capacidade de fantasiar e elaborar um projeto de vida que são característicos da fase. 

É uma união que cai na sua cabeça e você tem que cumprir. Elas vão passar por abandono escolar, não vão conseguir passar do fundamental ou médio nem conseguirão acesso à universidade, terão empregos sub-remunerados ou farão bicos. Além disso, haverá crianças que vão nascer de outras crianças, que não terão o mesmo cuidado de um adulto.
Mônica Sillan
Presidente do Cedca-CE

A assistente social também lembra: relacionamentos sexuais ou libidinosos com menores de 14 anos, com ou sem consentimento, configuram estupro de vulnerável. O Código Penal estabelece, como pena, reclusão de oito a 15 anos.

Legenda: Escolas devem estimular discussões sobre futuro e projetos de vida, defende psicopedagoga.
Foto: José Leomar

Resolução do problema

As especialistas e o Cedeca dão a mesma saída para prevenir os casamentos precoces: investimentos em políticas públicas e garantia de direitos de crianças e adolescentes, passando pelas áreas de educação, saúde, assistência social e igualdade de gênero.

“É preciso fazer o empoderamento das famílias para que as crianças tenham uma vida melhor e vivam sua infância protegidamente, além de promover a quebra do adultocentrismo para aceitar que adolescente não é um pequeno adulto”, conclui Mônica Sillan.

A professora Ticiana Santiago defende a necessidade urgente de se ampliar o orçamento voltado para ações de proteção à infância e juventude, que considera “ínfimos” nos últimos anos, contribuindo para uma “omissão assistida”: quando os discursos e a legislação não se concretizam.

“Precisamos de equipes indo para as comunidades, fazendo busca ativa e estudo de caso, porque você não combate aquilo que não conhece. O currículo das escolas também precisa trazer essas discussões para que os jovens problematizem sua realidade e possam reivindicar estratégias de forma mais participativa e dialogada”, indica.

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