Golpe contra beneficiários do Bolsa Família pode estar por trás das apostas em bets, dizem especialistas
Pesquisadores ainda apontam que nota técnica do Banco Central foi resumida, deixando dúvidas pendentes
Herança da gestão Temer, a 'bomba’ das empresas de apostas esportivas, conhecidas pelo termo em inglês 'bets', estourou neste ano. Para se ter ideia, até agosto último, essas casas online de jogos de azar faturaram entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês no Brasil, segundo nota do Banco Central (BC).
Todavia, ainda não há medidas regulatórias capazes de controlar os danos causados à sociedade nem tributação proporcional a esse mercado, conforme fontes especializadas.
Veja também
Apesar desse cenário, na última semana, o debate acerca do tema concentrou-se nos dados sobre a presença de 5 milhões de apostadores pertencentes ao Bolsa Família, dentro de um total de 24 milhões de pessoas.
A pressão sobre o governo aumentou, especialmente porque o modelo do programa é questionado por alguns polos ideológicos. Em resposta, o presidente Lula (PT) anunciou a intenção de bloquear o serviço a beneficiários do Bolsa Família.
Esse plano, no entanto, gerou críticas de economistas, que consideram o problema mais complexo, exigindo cautela e a implementação de políticas públicas integradas. Abaixo, veja 5 pontos sobre o tema destacados por especialistas.
Dados incipientes e risco de fraudes
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Ferreira, observou que a nota técnica divulgada pelo Banco Central é resumida, deixando dúvidas sobre pontos importantes.
De acordo com o estudo, a mediana das apostas realizadas por beneficiários do programa de transferência de renda é de R$ 100. Ou seja, 50% dos 5 milhões de beneficiários apostadores investiram até R$ 100, enquanto a outra metade aplicou valores superiores a esse montante.
A média das apostas (medida superior à mediana), por sua vez, é de R$ 600, indicando a existência de um grupo menor de beneficiários que realizou apostas mais elevadas.
“Para mim, isso é um indício claro de que pode ser tratar de fraude e/ou lavagem de dinheiro. Explico: o Bolsa Família é bem focalizado, sendo muito suspeito que haja beneficiários podendo gastar muitos milhares de reais em 'bets”, avaliou Ferreira.
“Por isso, é bastante provável que o CPF desses beneficiários esteja sendo usado indevidamente em apostas. Isso já aconteceu anteriormente com o Bolsa Família. Por exemplo, muitos casos de beneficiários que supostamente tinham carros de luxo eram, no fundo, fraudes cometidas por terceiros, que usavam os beneficiários como laranjas”. Portanto, é possível estar acontecendo novamente, comentou.
A economista e professora de MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV), Carla Beni, corrobora com a análise de que a confusão entre média e mediana ocasionou uma interpretação equivocada dos dados, sugerindo que a maioria dos beneficiários apostaria altas quantias.
“Pode haver um desvio de finalidade no uso dos recursos do Bolsa Família, mas o estudo demonstra que há pessoas recebendo uma renda muito maior do que a prevista no programa. Isso significa que fraudes são possíveis; pode-se estar utilizando os CPFs de quem recebe o Bolsa Família”, reiterou.
O Diário do Nordeste solicitou o estudo completo ao Banco Central. Entretanto, segundo o órgão, as "informações disponíveis" são somente as já divulgadas em nota técnica.
Tom alarmista e preconceito contra beneficiários do Bolsa Família
Beni ponderou que o foco nas apostas por parte de pessoas de baixa renda expôs o estigma sofrido pela população mais vulnerável.
“Infelizmente, observamos a utilização de um estudo do Banco Central para alimentar um caldo de preconceito que levou muitas pessoas, incluindo parte da mídia, a rejeitar o programa e até a sugerir seu cancelamento. Assim, durante esta semana, notamos uma manipulação da pesquisa para destilar preconceito e ódio contra os beneficiários do Bolsa Família”, disse.
Veja também
Para o pesquisador Pedro Ferreira, a “repercussão está desproporcional e excessivamente alarmista”. “Os valores reportados pelo BC dizem respeito ao total apostado, mas o próprio estudo estima que cerca de 85% do total é pago de volta aos apostadores. Ou seja, não é como se as famílias brasileiras estivessem tendo um prejuízo de R$ 20 bilhões por mês. A perda real seria cerca de 15% desse valor, segundo os dados”, apontou.
Além disso, de acordo com ele, ainda é necessário se debruçar sobre dimensão do problema.
“Em outros países, há evidências de que apostas esportivas prejudicam mais os mais pobres. É bem provável que isso ocorra no Brasil, mas ainda não temos evidências sólidas. Eu acho perigoso criar um pânico moral em torno do assunto antes de entendermos”, enfatizou.
Tributação adequada para empresas de apostas online
As 'bets' foram legalizadas pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em 2018, mas a regulamentação da atividade só foi estabelecida em 2023, por meio de uma norma específica. Sob o guarda-chuva do Ministério da Fazenda, a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF), criada neste ano, é responsável por definir as regras desse mercado.
A partir de janeiro de 2025, as empresas do setor deverão se adaptar às novas diretrizes estabelecidas. Mas, até lá, serão tributadas como qualquer outro segmento.
Veja também
Conforme a advogada e pós-doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), Jacqueline Mayer, a maioria das empresas de apostas online está sediada em outros países e, por isso, está isenta da tributação brasileira.
"A partir de 2025, para operar no Brasil, essas empresas deverão estar estabelecidas no País, pagar uma taxa de R$ 30 milhões e recolher 12% sobre sua receita líquida. Além disso, estarão sujeitas às seguintes alíquotas: 25% de Imposto de Renda, 9% de CSLL, 9,25% de PIS/COFINS e ISS, que varia de 2% a 5%, dependendo do município", explicou Mayer.
Com a Reforma Tributária, PIS/COFINS e ISS serão substituídos pela CBS e IBS, com uma alíquota projetada de 26,5%. Mayer defende a inclusão das apostas online no imposto seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, que aumenta a carga sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas.
Os dados sobre o perfil dos usuários, o nível de endividamento e os prejuízos ao consumo das famílias, além das questões de saúde mental envolvidas, a meu ver, são absolutamente suficientes para incluir as 'bets' como serviço que traz prejuízos à saúde e, portanto, deve se submeter ao seletivo", considerou a especialista.
Beni acrescentou que uma tributação elevada sobre essa atividade ajudaria a reforçar o Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar pessoas viciadas nesses jogos.
Medidas devem integrar saúde pública e educação financeira
Para a economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, suspender o benefício dessa população não seria eficiente e poderia agravar o quadro de vulnerabilidade social.
Após críticas, na última quinta-feira (3), o governo federal recuou provisoriamente da decisão de bloquear o uso do cartão do Bolsa Família.
Veja também
“As pessoas em situação de vulnerabilidade podem enfrentar desafios de saúde que afetam sua capacidade de trabalhar e gerar renda, agravando ainda mais a escassez de recursos. Investir em serviços de saúde acessíveis e de qualidade pode melhorar a qualidade de vida dessas pessoas”, sublinhou.
Na avaliação dela, o fundamental é priorizar investimentos em saúde pública e educação financeira dos beneficiários, além de estabelecer normas para empresas de apostas. Nesse contexto, uma medida seria criar programas específicos, incluindo a reabilitação de pessoas afetadas.
Proibição de propagandas
Cecília de França defende a necessidade de uma regulamentação rigorosa da publicidade de jogos de azar, propondo a proibição de campanhas que exploram a vulnerabilidade financeira da população. Recentemente, celebridades como o cantor Gusttavo Lima e a influenciadora Deolane Bezerra foram presas por crimes relacionados a essas empresas.
Beni complementa que 'fazer uma fezinha' faz parte do imaginário popular brasileiro de enriquecimento rápido, especialmente entre as classes mais baixas. Para ela, as plataformas online facilitam esse acesso, dispensando a ida a casas lotéricas ou bancas de jogo do bicho. Ademais, o problema é que as 'bets' utilizam estratégias de marketing massivo, com o apoio de influenciadores digitais, para atrair novos apostadores.
“Essas empresas de apostas usam pessoas que são referências, como atletas e artistas, para dizer que, ao jogar, o apostador ficará rico como ele, com a promessa de um dinheiro rápido e fácil para ostentar”, completou.
Uma possível solução, segundo Beni, seria tratar esses jogos como um produto similar ao cigarro, submetendo a restrições publicitárias, como a proibição do patrocínio via plataformas de aposta.
Considerando os cinco pontos mencionados, há um consenso entre os especialistas de que uma análise minuciosa dos dados é necessária para dimensionar o problema e, assim, tomar decisões embasadas. Caso seja necessário, estudos complementares poderão ser realizados. Além disso, é imperativo identificar se as apostas estão sendo utilizadas de forma ilícita, em atividades como fraudes ou lavagem de dinheiro.