Com R$ 600 de Bolsa Família, mãe lida com insegurança alimentar em meio às limitações do CadÚnico
Maria Gerlânia Paula de Lima, 46 anos, está devendo há três meses na mercearia. Mãe solo, ela mora em um cômodo, com três filhos de 12, 8 e 5 anos, no bairro Passaré, em Fortaleza. Ela diz que tem dias que o desespero a acompanha.
- Por que a criança não quer saber de onde vem, tem que ter, né?! Tem dias que acordo, eles pedem e eu já me desespero.
- E eles pedem o quê?
- Comida!
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Nos olhos de Gerlânia, a tristeza apaga o brilho da cor verde e transbordam lágrimas silenciosas. As mãos são nervosas e quase sempre estão entrelaçadas, como se dali saísse uma súplica.
Ela recebe atualmente R$ 600 do Bolsa Família, mas para as suas demandas, não é o suficiente. Beneficiária há 10 anos, ela afirma que o valor é gasto só com alimentação e que, mesmo assim, não chega no final do mês.
O filho mais velho pode ter o Transtorno do Espectro Autista (TEA), o que está sendo investigado. Por conta disso, a mulher diz que não consegue sair para trabalhar e que seria necessário receber o dobro - cerca de R$ 1,2 mil, para suprir suas demandas.
Dificuldades
Gerlânia ainda chama atenção para um fato que pode passar despercebido. Durante o ano letivo, os dois filhos mais velhos frequentam a escola e têm a refeição garantida. Mas no período de férias, esse "reforço" no orçamento não vem. Além disso, ela não conseguiu ser beneficiada com o vale-gás, o que também acaba sendo mais um custo.
Por outros desafios da vida, ela sofre de depressão e afirma que "só levanta da cama todos os dias pelos filhos". Desde o início de janeiro ela está buscando auxílio na Associação das Mulheres Empreendedoras do Jardim União 1 (AME).
“Tenho uma pessoa que me ajuda quando os dias estão muito difíceis e agora estou vindo aqui para poder frequentar os cursos, me qualificar e tentar dar outro rumo na minha vida”, revela Gerlânia.
Pessoas como a Gerlânia poderiam ser beneficiadas com a modernização do Cadastro Único, plataforma que reúne informações sobre famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza.
A maior assertividade do sistema poderia fazer uma atualização automática da renda das famílias, bem como tornar mais eficiente a exclusão de quem, de fato, não precisa mais do benefício, na avaliação do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Osório.
De acordo com ele, desde meados de 2014 o Ipea já vem discutindo com o Cadastro Único a implementação de melhorias no sistema. "No início de 2023 eles conseguiram dar sequência a algo que vinha sendo discutido há décadas. É uma ferramenta muito importante" reforça o pesquisador.
Desafios do CadÚnico
No início deste ano, fontes do governo federal estimaram uma economia de R$ 10 bilhões com a revisão de benefícios do Bolsa Família.
“O próximo desafio é ser inteligente e investir mais no CadÚnico, com a integração de sistemas para atender com maior velocidade. Não digo para tirar as pessoas, mas para colocar as pessoas quando elas precisam”, afirma o pesquisador.
Questionado se ele visualiza alguma necessidade de mudança no formato do benefício para favorecer a população, Osório frisa que o programa já passou por uma "montanha russa" ao longo dos últimos anos. "Por que temos que deixar o Bolsa Família quieto? Abril de 2020, quem foi sacar viu um valor como nunca tinha visto antes. Aí chega janeiro de 2021, acaba tudo, volta o benefício sem reajuste, depois vai para R$ 400. Não dá para fazer política social mudando de seis em seis meses", critica.
Assim, ele reforça que “a agenda de melhoria vai para o CadÚnico". "O Cadastro Único foi deteriorado por falta de investimento na estrutura para tornar a operação mais eficiente. Em cima de toda essa falta de investimento, teve a coisa meio deliberada de colocar pessoas para dentro do programa sem controle”.
Números no Ceará
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Ceará tinha 2,58 milhões de famílias cadastradas no CadÚnico em dezembro de 2023 (dados mais atualizados). Desse total, 59% se encontravam em situação de pobreza, 17% estavam enquadrados como baixa renda e 24% recebiam acima de meio salário mínimo.
Entre dezembro de 2022 e dezembro de 2023, 93,7 mil famílias foram adicionadas à base do CadÚnico no Ceará. Se comparado ao cenário de dezembro de 2019, antes da pandemia de Covid-19, os números do fim do ano passado representam a adição de 724,6 mil famílias à base.
“Realmente, cresceu. Agora que cresceu, para saber de dentro da base o que é uma fraude e o que não é, é difícil. O governo federal devia ter dado mais orçamento para CadÚnico este ano, não pode ter um instrumento de focalizar melhor a política e sem investimento”, pondera Osório.
Ele arremata lembrando que o Plano Plurianual (PPA) prevê atendimento de 21 milhões de famílias por meio do programa até 2027. Diante disso, ele reforça a necessidade de melhorias no Cadastro Único. “Mas não é melhoria para desoneração (da folha de pagamento), mas pra investir esse dinheiro. Se o CadÚnico permite uma economia de R$ 10 bilhões, é direcionar uma parte grande desse dinheiro e injetar no CadÚnico, melhorar escolas, estruturas de creche e melhorar a própria base”.