Determinada, feliz e orgulhosa de sua trajetória. Assim é possível descrever a agente de cidadania e empreendedora Rosana Almeida, de 51 anos. Mas como muitas outras mulheres cuja vida brotou em condições semelhantes, sua história carrega cicatrizes de quando foi atravessada duas vezes pela violência doméstica em suas mais diversas formas: abuso psicológico, violência física, verbal e patrimonial.

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Dependente financeiramente do companheiro, Rosana se deparou com a possibilidade de uma subsistência um pouco mais digna, sem as humilhações de seu abusador, ao receber uma carta do serviço social no fim dos anos de 1990. Na época, a transferência de renda federal ainda não tinha a formulação ou o nome do Bolsa Família, mas já ganhava os contornos do que seria o programa a partir de 2003.

Bolsa Família
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Eu era casada com um homem que jogava na minha cara até o absorvente que comprava. Dizia que sem ele, eu não era nada e eu acreditava. Foi só quando tive o dinheiro do ‘bolsa’ na minha mão que me vi capaz de deixar essa história e fazer uma minha".
Rosana Almeida
Agente de cidadania e empreendedora

Aos 25 anos e sem filhos até então, Rosana achava que não tinha direito à transferência de renda “por ser uma mulher sem filhos”. “Quando fui fazer o cadastro, não achava que ia receber, mas me chamaram e eu fui. Quando vi, recebi o cartãozinho verde da época e minha primeira renda foi R$ 32".

A ‘multiplicação’ da subsistência

O que pode parecer pouco aos olhos de quem nunca precisou se humilhar para sobreviver era significativo para Rosana, que logo pensou em uma maneira de multiplicar o recurso: fazendo dindim (ou sacolé) para vender. Para isso, comprou matéria-prima para fabricar o produto e como primeira ideia, levou em um isopor para vender na praia.

“E dos R$ 32 eu saltei para R$ 68, o que foi uma grande alavancada para mim. Fui ganhando confiança e pensei que se eu conseguia dobrar o valor, poderia conseguir mais. Foi assim que decidi fazer mais dindim e vender na minha casa. Comecei a comprar todo o tipo de fruta e ver como poderia inovar, sempre usando o recurso do ‘bolsa’ para comprar os materiais e multiplicar”, explica a empreendedora.

Bolsa Família Rosana
Legenda: Rosana recebeu no fim dos anos de 1990 uma carta do serviço social tornando a empreendedora apta a receber do governo um valor inicial de R$ 32
Foto: Thiago Gadelha

Em 2010, Rosana se tornou mãe. Mas o relacionamento do qual esse fruto nasceu também era abusivo. “Essa foi a segunda pessoa abusiva na minha vida e se não fosse a minha filha, com cinco anos, ir atrás de socorro, ele tinha me matado, porque estava me sufocando. Foi ela quem me salvou”.

O homem prendia mãe e filha em casa e, para se manter com alguma renda, Rosana produzia o dindim escondido. Pelo pátio, passava para que uma tia sua pudesse vender a mercadoria. "Aí o que vendia, dividia com ela. Não podia perder a minha clientela que tinha conquistado. E dindim é assim, de cinco em cinco minutos tem alguém querendo. Ele não gostava disso”.

A importância da autonomia

Com toda a sua vivência, a empreendedora e beneficiária do Bolsa Família revela que sempre conversa com sua filha, hoje com 13 anos, sobre a importância de ter uma renda e de ser independente financeiramente, para que relações abusivas não se perpetuem na vida de ninguém. Mãe e filha recebem, atualmente, R$ 650, e Rosana afirma que é dividido meio a meio, para que cada uma possa ter alguma despesa suprida.

"Se eu perder o Bolsa Família hoje, foi porque ele tinha a missão de me ajudar até aqui, mas por enquanto ele ainda é importante. Estou estudando e buscando o meu espaço e, se tudo der certo, um dia vou me sustentar sem ele, se Deus quiser", revela, agradecida ao programa.

Legenda: Rosana Almeida, 51, viu no Bolsa Família a esperança para se libertar de relacionamento abusivo
Foto: Thiago Gadelha

Atualmente, com parte do recurso do benefício, ela também compra os produtos de revenda de sex shop, lingeries e bijuterias, para a sua “loja”, a Rosana Variedades. “Coloquei um banner na minha casa e continuo aumentando, empreendendo e não deixando o meu dindim de lado, não. Agora, tenho até cremosinho”, detalha.

Questionada sobre o que acha que poderia melhorar no Bolsa Família, Rosana reforça que o programa poderia ter ações de qualificação voltadas para “mulheres-solo”, seja com filhos ou não. “Porque o Bolsa Família não é só o dinheiro, entende? Ele é o início da autonomia da vida da pessoa”.

Rosana ainda é assistida pela Associação das Mulheres Empreendedoras do Ceará (AME), uma organização sem fins lucrativos que atua com foco no empoderamento feminino e contribui no enfrentamento das desigualdades de gênero e na promoção da autonomia das mulheres do Estado.

Projeto de Lei n° 3324, de 2023

Um projeto de lei do ano passado jogou luz sobre o Bolsa Família dentro do contexto de violência doméstica. Se trata do PL 3.324/2023, de autoria da senadora Zenaide Maia (PSD-RN). O texto prevê a priorização de mulheres vítimas de violência doméstica e seus dependentes no Bolsa Família, caso precisem.

Além disso, após eventual desligamento do programa, essas mulheres vítimas também têm prioridade para voltar a ter assistência. Em outubro do ano passado, o PL foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, seguindo para análise na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).

A última atualização sobre a matéria no Senado é do dia 14 de novembro do ano passado, quando o PL havia sido encaminhado para a relatoria da senadora Augusta Brito (PT).

Procurada, a assessoria da senadora informou que o Congresso irá retomar os trabalhos no mês de fevereiro juntamente com a Comissão de Assuntos Econômicos. "Estaremos construindo a relatoria junto aos pares e a nossa consultoria técnica para melhor viabilizar a proposição, o nosso mandato tem  grande interesse em continuar contribuindo com ferramentas que reduzam o impacto da violência doméstica na vida das brasileiras e cearenses".

Empoderamento por meio do programa

Maitê Gauto, gerente de Programas e Campanhas da Oxfam Brasil, avalia que a possibilidade que o programa trouxe de independência financeira das beneficiárias, apesar do valor ser baixo, é um importante ponto do Bolsa Família.

“Nós sabemos que muitas mulheres em situação de violência doméstica não têm condições ou demoram a sair do ambiente abusivo por dependência financeira, porque é o marido quem as mantêm e mantêm os filhos. Quando o governo opta por entregar o Bolsa Família majoritariamente às mulheres, ele dá a ela o poder e a segurança de sair da violência doméstica”.

Ela corrobora, entretanto, que o programa precisa ser combinado a estratégias e políticas que permitam à beneficiária ter outras condições e oportunidades, “inclusive de não precisar mais do programa”.

Legenda: "Se eu perder o Bolsa Família hoje, foi porque ele tinha a missão de me ajudar até aqui, mas por enquanto ele ainda é importante. Estou estudando e buscando o meu espaço e, se tudo der certo, um dia vou me sustentar sem ele, se Deus quiser", revela Rosana Almeida
Foto: Thiago Gadelha

“A precariedade do trabalho informal deixa as beneficiárias numa situação de vulnerabilidade. Então acho que é uma combinação de fatores: tem que combinar o programa de transferência de renda, que é emergencial, associado a medidas de desenvolvimento mais amplas que ajudam essas famílias a se recolocarem no mercado, tendo direitos assegurados”.

Além disso, ela destaca a necessidade de olhar para o programa com uma visão mais apurada sobre as mulheres pretas e pardas, que se encontram em uma situação de vulnerabilidade ainda maior. “De 2020 a 2022, as mulheres negras foram as que ficaram em maior situação de vulnerabilidade e de fome e elas precisam estar visibilizadas no programa”.

A gerente de Programas e Campanhas da Oxfam Brasil arremata que o programa tem um papel fundamental no contexto pós-pandêmico.

“Nós tivemos, na pandemia, uma explosão da situação de fome - muito por medidas equivocadas que fizeram com que a situação piorasse. O Brasil voltou ao Mapa da Fome e isso faz com que essas famílias talvez precisem do programa por mais tempo, porque voltamos aos patamares de fome da década de 1990. A pobreza e a pobreza extrema não podem ser admitidas no Brasil”.