Bets: caminhos para combater a lenda do dinheiro fácil

Com fácil acesso para a população, as bets vêm se tornando um problema cada vez maior no Brasil

Legenda: A busca pelo dinheiro fácil já esteve presente em diferentes épocas e contextos da civilização
Foto: Marketing/SVM

Desde o início dos tempos, a busca pelo dinheiro fácil parece ser uma característica tão humana quanto respirar. Se o trabalho árduo e a disciplina foram os pilares que construíram civilizações, a preguiça e a busca pela facilidade representaram o lado obscuro, o ímã que atraiu mentes em busca de atalhos — atalhos que, ironicamente, levaram a becos sem saída. A sociedade, em sua essência, se organiza em torno do trabalho produtivo, mas o desejo por ganhos rápidos sempre esteve à espreita, pronto para se infiltrar na psique humana. 

Na psicologia, esse fenômeno é bem documentado. Daniel Kahneman, vencedor do Nobel e especialista em processos decisórios, discorre sobre como a mente humana prefere a ilusão de ganhos rápidos ao invés do caminho gradual e seguro. Em seu livro “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”, ele descreve como tendemos a superestimar nossas chances de sucesso e subestimar os riscos, simplesmente porque o cérebro, diante da promessa de uma recompensa imediata, desativa nossa capacidade crítica. É aí que entra o “vício”. A busca pelo dinheiro fácil age como um reforçador intermitente — uma recompensa aleatória que nos mantém cativados, mesmo diante de perdas constantes. 

De fato, o vício em dinheiro fácil não é apenas um problema psicológico; é um problema social. Karl Marx, apesar de muitas de suas teorias hoje serem objeto de debates, fez uma observação precisa em O Capital: “O dinheiro gera dinheiro, mas também consome a alma”. E assim vemos, ao longo da história, líderes, tiranos e governos que exploraram essa inclinação humana pela facilidade, prometendo riquezas inatingíveis e perpetuando miséria e desigualdade. 

Ouro, tulipas e apostas: a rota histórica do engano 

Desde a Idade Média, o desejo de enriquecimento sem esforço permeou todos os segmentos da sociedade. Governos e nobres se aliaram a promessas que pareciam ouro, mas que muitas vezes eram poeira. No século XVII, a febre das Tulipas na Holanda se tornou um dos primeiros grandes exemplos de especulação desenfreada. Um simples bulbo de tulipa chegou a ser vendido por preços exorbitantes, equivalentes ao salário anual de um artesão qualificado. A promessa de um investimento que multiplicava dinheiro sem esforço atraiu todos — de comerciantes a agricultores — até que, como uma cortina sendo erguida no final de uma peça trágica, a bolha estourou, arruinando milhares. 

O que dizer das inúmeras minas de ouro “fantasmas” que foram anunciadas nas Américas? A famosa corrida do ouro na Califórnia (1848-1855) se transformou em uma marcha de desespero. Muitos largaram famílias e empregos estáveis, atraídos por histórias de fortunas desenterradas com uma simples pá e picareta. A realidade, no entanto, foi outra: apenas alguns sortudos se beneficiaram, enquanto a maioria sucumbiu à pobreza ou à morte. No Brasil, tivemos o buraco da esperança em Serra Pelada, em que muitos largaram tudo em busca da riqueza imediata em troca, muitas vezes, da própria vida.  

Séculos depois, a história se repetiu com a febre das “dot-com” no final dos anos 90, quando qualquer site que terminasse em “.com” parecia ser uma mina de ouro. Milhares de investidores injetaram dinheiro em projetos sem qualquer substância, atraídos pelo hype, pela ilusão de riqueza fácil que a internet prometia. E quando a bolha estourou, como de costume, quem perdeu foi o pequeno investidor, o trabalhador, aquele que acreditou nas promessas encantadas de um futuro próspero. 

Hoje, esse mesmo fenômeno está presente no vício em apostas — o “ganhar dinheiro fácil” do século XXI. A recente explosão das plataformas de apostas, conhecidas como “bets”, é um reflexo desse desejo histórico e recorrente. Na Grécia Antiga, Aristóteles alertava que “a facilidade dos ganhos corrompe a virtude”. Agora, no Brasil, vemos a concretização desse presságio. 

Bets e o colapso de uma nação: a dinâmica das apostas no Brasil 

O vício em apostas esportivas e “bets” no Brasil se transformou em uma epidemia financeira. Segundo dados recentes, a indústria de apostas movimenta aproximadamente R$ 100 bilhões por ano no país. Para colocar isso em perspectiva, é um montante superior ao orçamento anual destinado a programas de saúde pública em muitos estados brasileiros. E mais assustador: o perfil dos apostadores vai de jovens de classe média a trabalhadores que destinam parte significativa de seus rendimentos na esperança de um “grande ganho” que nunca chega. 

Famílias são destroçadas por dívidas acumuladas em cartões de crédito e empréstimos tomados para sustentar o vício. O impacto é duplo: de um lado, o indivíduo perde sua estabilidade financeira; de outro, setores tradicionais da economia enfrentam um êxodo de capital. Em números, estima-se que aproximadamente 1% do PIB brasileiro esteja diretamente afetado pela fuga de dinheiro para empresas de apostas. Dinheiro que poderia estar sendo investido em negócios locais, saúde ou educação acaba nos bolsos de conglomerados internacionais, que exploram a vulnerabilidade humana e retornam pouco ou nada para a sociedade. 

Enquanto isso, setores como a agricultura, pequenas indústrias e comércios de bairros sofrem um colapso silencioso. Se a promessa de enriquecimento imediato atrai, a realidade cobra um preço alto: o declínio das economias familiares, a erosão de valores como o trabalho e a persistência, e a transformação da esperança em desespero. 

A cegueira das lideranças e a moral despedaçada: soluções para combater o vício 

Diante de um cenário que consome vidas e riquezas como um buraco negro, a responsabilidade moral e política das lideranças se torna evidente. É inaceitável que governos e legisladores se mantenham coniventes com uma indústria que dilacera famílias e, em última análise, a própria estrutura social. Contudo, além de apontar os erros, é necessário propor soluções fundamentadas para enfrentar esse desafio complexo. Há esperança — tanto na ciência quanto em exemplos internacionais — para ajudar a sociedade a lidar de forma mais inteligente e humana com o vício em apostas. 

A psicóloga e especialista em comportamento financeiro, Vera Rita de Mello Ferreira, já alertava que o vício em apostas está profundamente enraizado em um desejo humano de controle sobre a incerteza. Em estudos como “Psicologia Econômica”, ela demonstra como o desejo de vencer e a percepção ilusória de controle criam um ciclo de comportamento impulsivo. A solução, segundo ela, passa por um modelo de conscientização e psicoeducação: programas que ajudem os apostadores a entender como funcionam os vieses cognitivos que influenciam suas decisões. “Quando o indivíduo compreende os mecanismos que regem seu comportamento, ele tem mais chances de quebrar o ciclo e buscar novas formas de satisfação que não dependam do azar”, afirma Vera Rita. 

Do ponto de vista sociológico, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “Modernidade Líquida”, já descrevia como a busca por gratificação imediata é uma marca registrada da sociedade contemporânea. Ele argumenta que vivemos em uma era na qual o prazer instantâneo é visto como um direito, e isso é exacerbado por tecnologias que permitem o acesso irrestrito a apostas. Para Bauman, a solução não está apenas na repressão, mas na construção de uma cultura de longo prazo, em que o valor é colocado no processo, não no resultado. Isso pode ser alcançado por meio de uma reestruturação educacional que ensine jovens a valorizarem o esforço contínuo e a paciência. 

No âmbito legislativo, países como Noruega e Suécia implementaram regulamentações exemplares que mostram resultados concretos. Por lá, as apostas são fortemente controladas, com limites rígidos de valores para apostas, controle de identidade digital para impedir que menores de idade acessem as plataformas e, principalmente, mecanismos de autorregulação que permitem aos próprios usuários estabelecerem limites de perdas e acessos.  

A psicóloga norueguesa Ingeborg Hauge explica que o sucesso de tais políticas depende não apenas da legislação em si, mas de um enfoque holístico que envolva tratamento e suporte psicológico. “Você não resolve um vício apenas limitando o acesso; é preciso dar ao indivíduo alternativas para lidar com a pressão social e a dependência psicológica”, observa em estudo publicado na Scandinavian Journal of Psychology. 

Na prática, esses modelos poderiam ser adaptados ao contexto brasileiro, mas com ajustes importantes. Seria necessário não apenas criar regulamentações mais severas para as empresas de apostas — como limites de valores apostados e transparência de odds (probabilidades) —, mas também engajar programas sociais focados no desenvolvimento de competências emocionais nos apostadores. Estudos do psicólogo Robert L. Leahy, autor de The Worry Cure, indicam que o tratamento para transtornos compulsivos deve passar pela terapia cognitivo-comportamental (TCC), aliada a práticas de mindfulness, que ajudam a redirecionar o foco de recompensa para outras áreas da vida. 

Além disso, medidas de “design persuasivo inverso” (um conceito criado pelo cientista comportamental B.J. Fogg) poderiam ser empregadas para tornar as apostas menos atraentes. No livro Tiny Habits, Fogg explica como pequenas mudanças no design de plataformas podem influenciar drasticamente a decisão dos usuários, diminuindo os estímulos visuais que acionam impulsos. Plataformas poderiam ser obrigadas a exibir mensagens de conscientização e reduzir o uso de cores, sons e gráficos que incentivam a euforia e o risco. 

Outra solução, inspirada no Reino Unido, seria a criação de um Banco de Autoexclusão Nacional. Essa iniciativa permitiria aos usuários que se consideram vulneráveis a se registrarem em uma lista nacional, impedindo que qualquer plataforma de apostas no território brasileiro permita seu acesso por um período determinado — uma espécie de “proibição voluntária”. O governo britânico, por meio do GambleAware, relatou que esse método levou a uma redução de 20% nos casos de dependência severa em apenas três anos. Implementar algo semelhante no Brasil poderia oferecer um respiro para aqueles que, sozinhos, não conseguem abandonar o vício. 

Finalmente, do ponto de vista econômico, é fundamental que se ofereçam incentivos para investimentos que valorizem setores tradicionais e produtivos da economia. Imagine se uma fração dos bilhões que hoje são engolidos pela indústria de apostas fosse redirecionada para iniciativas educacionais ou incubadoras de negócios para jovens? Isso não apenas criaria empregos e diversificaria a economia, como também promoveria um valor social mais duradouro. 

O vício em apostas não é uma novidade na história, mas é um problema que ganhou novas proporções com a chegada da era digital. A solução passa pela união de ciência, ética e vontade política. Sem isso, estaremos apenas perpetuando o ciclo de sempre: uma sociedade que fecha os olhos para os gritos de desespero de suas vítimas. 

O desafio está lançado: criar uma sociedade na qual o valor não esteja no ganho imediato, mas na construção gradual de um futuro em que o trabalho e a persistência sejam, novamente, as moedas mais valiosas que possuímos. Me parece que estamos de forma acelerada caminhando exatamente para o lado inverso.