Aprovar reforma tributária só para cumprir agenda pode piorar situação, diz Schubert Machado
Advogado tributarista e diretor do Instituto Cearense de Estudos Tributários detalha quais são os problemas nas atuais propostas de mudança no sistema e pontua o que seria necessário para uma reformulação eficiente
As Propostas de Emenda à Constituição 45 e 110 aventam uma reformulação do sistema tributário brasileiro, mas nenhuma delas toca de maneira eficiente em pontos sensíveis como a regressividade, a desigualdade, a alta carga tributária e a complexidade. A avaliação é do advogado tributarista e diretor do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet), Schubert Machado.
Mas o que obstaculiza mudanças que poderiam resolver problemas ligados ao sistema tributário está além das PECS 45 e 110.
"A falta de confiança entre os próprios entes federados é um dos fatores mais importantes que impedem a concepção de uma boa reforma tributária", pontua o advogado tributarista.
Ele acrescenta que as dificuldades para avançar com um bom projeto de reforma são "de ordem política". "As mudanças precisam ser aceitas pelos governantes de todos os níveis e com os olhos no futuro. Pode parecer utopia, mas é o caminho para uma boa reforma".
Entrevistado desta semana no Diálogo Econômico, Schubert Machado fala sobre o ICMS dentro do contexto de reforma tributária, guerra fiscal e mudanças no sistema diante da pandemia. "Aprovar uma reforma tributária apenas para cumprir agenda pode piorar o que já está insuportável. É o que agora ocorre na Colômbia!", enfatiza.
Além disso, ele acredita que não haverá reforma em um curto prazo. "E isso não é de todo ruim, se imaginarmos que as opções seriam a PEC 110 e a PEC 45", reforça.
Veja também
Confira a entrevista completa:
Diante da situação que o Brasil enfrenta em relação à gravidade da pandemia do coronavírus, o senhor avalia ser um momento adequado para uma mudança no sistema tributário brasileiro?
Lembro que em 1992 o Instituto Cearense de Estudos Tributários – Icet realizou seminário cujo tem foi reforma tributária. O assunto não é novo. Nosso sistema é regressivo, concentrador de renda, excessivamente oneroso, complexo e muito confuso. É, sem dúvida, um dos mais importantes componentes do custo Brasil, desestimulando o investimento empreendedor, externo e interno. É natural que se deseje reformá-lo.
Não há, contudo, consenso na concepção do novo sistema tributário e sim uma ferrenha disputa entre os entes federados por mais arrecadação, em paralelo ao anseio dos contribuintes por simplificação e diminuição da carga tributária. Isso tem dificultado as tratativas políticas necessárias à almejada reforma.
Agora estamos atravessando a grave crise na saúde pública decorrente da pandemia do coronavirus e são necessárias medidas urgentes. Em vista disso, o Congresso flexibilizou as normas de controle dos negócios públicos, conferindo aos governantes ferramentas para agilizar providencias e obter recursos, como é o caso da dispensa de licitação e da permissão de maior endividamento.
Nessa mesma linha, podem ser adotadas medidas de natureza tributária de efeito imediato, diminuindo as exigências que recaem sobre os contribuintes, sobretudo aqueles mais afetados pela queda na atividade econômica, para manter vivas as empresas e os empregos.
A reforma no sistema tributário, todavia, embora muito urgente, não pode ser feita sem reflexão e transparência. É indispensável deixar bem claro quais os pontos que devem ser alterados e a finalidade das mudanças.
A estabilidade do sistema no longo prazo é que deve corrigir os problemas estruturais que provocam regressividade, concentração de renda, onerosidade excessiva e imensa complexidade.
Aprovar uma reforma tributária apenas para cumprir agenda pode piorar o que já está insuportável. É o que agora ocorre na Colômbia!
O senhor já comentou que ambas as PECs (45 e 110) utilizadas na construção do texto da reforma tributária não simplificam o sistema brasileiro e que a proposta do governo de unificar PIS e Cofins por meio de um projeto de lei seria mais interessante. Depois disso, quais seriam os próximos passos mais adequados?
Estudei as duas e digo com segurança: nenhuma delas reduzirá a regressividade, a desigualdade, a carga tributária ou a complexidade que existem hoje.
Fundadas na criação do Imposto sobre Bens e Serviços IBS que viria em substituição de alguns outros existentes hoje (ICMS, ISS, IPI, IOF, PIS/Cofins), as duas propostas mantêm a forte tributação do consumo e não alteram a baixa incidência sobre patrimônio e renda. O sistema continuará regressivo.
A previsão do IBS com múltiplas alíquotas, somada à sistemática da não cumulatividade e ao intrincado funcionamento da entidade que passaria a controlar a distribuição do valor arrecadado entre os entes federados, entre outras coisas, conferem extrema complexidade ao novo sistema.
Haverá um vigoroso aumento na carga com a fixação da alíquota base do IBS em torno de 25%, que recairá pesadamente sobre os prestadores de serviço, que hoje pagam ISS a 5%, e com a criação do Imposto Seletivo - IS, que terá competência federal e incidirá, em conjunto com o IBS, sobre os principais insumos econômicos.
A PEC 110 também não reduz o alto custo tributário do emprego, pois não traz alteração no sentido de desonerar a folha de pagamentos. Destaco que ainda em 1988 o legislador constituinte já demonstrava preocupação com a pesada tributação sobre a folha de pagamentos.
Como forma de viabilizar a sua desoneração, estabeleceu a possibilidade da incidência de contribuições de seguridade sobre o lucro e o faturamento das empresas (CSLL e Cofins), que foram criadas, mas a arrecadação respectiva foi destinada à Fazenda Nacional. A seguridade permaneceu ancorada apenas na contribuição sobre a folha.
Na época, a União ganhou duas vezes, reduzindo o IRPJ na mesma proporção da então nova contribuição sobre o lucro, com o que diminuiu o valor que divide com estados e municípios, sem perder arrecadação. Manter o elevado custo do emprego contribui decisivamente para o desemprego, sobretudo com o crescimento da economia digital, que dispensa cada vez mais o fator humano.
Outra grave distorção no custeio da seguridade social, que não é tocada nas propostas de reforma, é a tributação do trabalhador que ganha um salário mínimo. É um escárnio. Nada justifica tirar 8% do salário de quem não pode custear seu próprio sustento.
Quando a sociedade decidiu conferir aposentadoria aos trabalhadores, municiou a seguridade de recursos desvinculados de cálculos atuariais. Como mostrei acima, a CSLL e o PIS/Cofins geram recursos que podem muito bem financiar a aposentadoria dos mais carentes. Enfim, as propostas de mudança no sistema tributário não diminuem e sim agravam a desigual distribuição da renda em nosso País.
A outra proposta de mudança referida na pergunta parte de um projeto de lei de iniciativa do Governo Federal, que altera o PIS/COFINS. Unifica formalmente as duas contribuições sob o nome de Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços CBS, simplifica a apuração e traz um vigoroso aumento, sobretudo para os prestadores de serviço, cuja alíquota pode passar de 3,65% para 12%.
As mudanças sugeridas também superam alguns litígios em favor da Fazenda Nacional, como é o caso da revogação da norma que confere o direto ao aproveitamento dos créditos, mesmo quando a operação posterior é isenta ou não tributada.
Caberá ao Congresso manter a parte boa que simplifica e negar o pretendido aumento da carga sobre o setor de serviços, o que pode ser feito estendendo-lhe o mesmo tratamento dado aos bancos, para os quais o projeto prevê alíquota específica de 5,8%.
Fazer essa mudança inicial por meio de Projeto de Lei no PIS/Cofins seria fatiar a reforma tributária? E aí surge a questão: fatiada ou em texto único? Algum desses dois modelos é melhor para a mudança no sistema tributário brasileiro?
Não considero essa iniciativa como parte da reforma tributária, ao contrário, deixa evidente que o Governo Federal não acredita na viabilidade de uma reforma ampla. Mudar um de seus próprios tributos é bem mais fácil.
Esses ajustes pontuais, todavia, podem contribuir valiosamente para minimizar os problemas do nosso sistema tributário. A simplificação, por exemplo, não decorre diretamente de mudanças na Constituição. Deriva, na maior parte das vezes, do regramento que pode ser facilmente alterado pelo chefe do Poder Executivo.
Como falei antes, a alteração na lei que regula o PIS/Cofins é apenas um ajuste em um tributo que tem se mostrado alvo de muitos litígios. Seguramente, a maior parte das demandas tributárias no âmbito federal trata de assuntos relativos a PIS/Cofins, devido à sua complexidade e elevado valor. A próxima etapa dos ajustes deve focar o Imposto de Renda.
Sobre o ICMS, digo que é o imposto mais complexo do sistema devido ao comportamento dos Estados, que adotam regulação extremamente casuísta, com regimes especiais e formas diferenciadas de tributação. A lei é pouco lembrada e o que mais vale é a última instrução do secretário da Fazenda.
O ICMS previsto na Constituição Federal não existe mais. A cobrança que os Estados fazem com esse nome dele está muito distante. Mudar isso depende dos governadores ou mesmo de cada um em seu Estado. O novo regulamento do ICMS do Ceará está bem melhor que o anterior.
Em live realizada no ano passado, o economista e ex-deputado federal Luiz Carlos Hauly disse que o Ceará ganharia R$ 1,5 bi em arrecadação com a PEC 110 com a mudança no imposto para quem consome e não para quem produz. Isso seria possível, na sua avaliação?
Muitas coisas são ditas sobre as propostas de reforma tributária. A maioria delas são apenas promessas. O que se pretende ao redigir uma norma na maioria das vezes é bem diferente dos resultados da sua aplicação.
A mudança da tributação da origem para o destino sugere que a maior fatia da arrecadação ficaria com os estados consumidores, que pouco produzem. Ocorre que os estados produtores também são grandes consumidores e a divisão do montante arrecadado com o IBS será feita através de um comitê gestor com regras próprias.
Penso que é muito cedo para se medir em reais os efeitos das mudanças propostas.
Até hoje, o que amenizou a nossa ainda imensa desigualdade regional foram os incentivos fiscais concedidos pelos Estados à revelia do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Existe um modelo em algum país pelo mundo que o Brasil possa usar como referência e que seja de fato muito interessante para essa mudança no nosso sistema tributário?
Copiar um modelo pronto, por melhor que seja para o país onde estiver implantado, não é boa solução para o Brasil. Temos peculiaridades como o nosso tamanho continental, profundas desigualdades regionais, centralização da arrecadação tributária na União Federal, alta complexidade das normas de tributação, tensão na relação fisco contribuinte, que reclamam tratamento próprio e específico.
Um bom começo seria identificar os problemas do sistema e pensar em soluções duradouras, sem se preocupar com modelos.
As dificuldades para avançar com um bom projeto de reforma são de ordem política. As mudanças precisam ser aceitas pelos governantes de todos os níveis e com os olhos no futuro. Pode parecer utopia, mas é o caminho para uma boa reforma.
As propostas que estão em discussão atualmente têm o foco na tributação sobre o consumo, certo? Quais são os problemas dessa lógica?
Sim, tanto a PEC 45 como a 110 mantêm a estrutura do sistema atual, que adota a tributação sobre o consumo como principal fonte de recursos.
Tributar pesadamente o consumo e de forma muito moderada a renda e o patrimônio, como ocorre no Brasil, significa colocar a carga sobre os ombros de quem menos pode pagar. Explico. A tributação do consumo é um elemento indispensável na formação do preço final dos bens e serviços. A lei do ICMS, por exemplo, determina expressamente a inclusão do valor do imposto no preço da mercadoria.
Assim, quanto maior a riqueza de quem compra, menos será sentido o ônus tributário da operação, por outro lado, quanto menor a sua riqueza, maior será o peso do tributo incluído no preço. O problema gerado por essa lógica é o que chamamos de regressividade.
A PEC 110 admite que a tributação no consumo é regressiva e faz uma tímida tentativa para reduzi-la, estabelecendo a possibilidade de lei posterior definir os critérios e a forma pela qual poderá ser realizada a devolução de tributos incidentes sobre bens e serviços adquiridos por famílias de baixa renda.
Lembro que depois de receber dinheiro, o governo costuma não devolvê-lo, sobretudo aos mais carentes. Além disso, essa devolução seria um empréstimo tomado de quem não pode dar. Existem casos de empréstimos compulsórios nunca devolvidos e quando os contribuintes foram a juízo, a Fazenda Nacional alegou que o direito de pedir essa devolução teria prescrito.
Como já disse, um dos tributos mais injustos é a contribuição de seguridade cobrada de quem ganha um salário mínimo. Esse cidadão não tem recursos nem mesmo para se manter bem alimentado.
Seria bem melhor não cobrar tributos dos consumidores de baixa renda, adotando algum critério de isenção específico em relação a eles.
A tributação sobre o patrimônio e a renda, diferente daquela sobre o consumo, incide em relação a cada contribuinte, permitindo arrecadar mais de quem realmente pode pagar. Nesse ponto lembro a histórica falta de atenção do Governo Federal com o imposto territorial rural – ITR, que poderia ganhar enorme importância diante dos ganhos apresentados pelo agronegócio.
O Brasil tem imenso território e grandes proprietários de terra com manifesta capacidade contributiva. Não se justifica a diminuta participação do ITR no financiamento do Estado.
Em outros momentos de discussão acalorada da reforma tributária, muito se falou sobre o impacto dela em relação à guerra fiscal entre os estados e que alguns como o Ceará, por exemplo, poderiam ser prejudicados nesse contexto. A PEC 110 e a 45 falam da criação de uma espécie de fundo de compensação. Como o senhor avalia essa maneira de compensação?
Depois da Constituição de 1988, vários Estados passaram a adotar iniciativas no sentido de atrair empresas para seu território. O instrumento mais usado foi o incentivo fiscal, na maior parte dos casos, uma redução do ICMS.
Essa política atraiu varias empresas para o Nordeste, causando revide dos estados do Sul e Sudeste que se sentiram prejudicados, levando tais movimentos o nome de guerra fiscal.
Na PEC 110 há um grande esforço para conter a guerra fiscal, inclusive com a drástica diminuição da autonomia tributária dos Estados e Municípios. Não vejo, contudo, regras específicas que assegurem o combate às desigualdades regionais.
A política de incentivos da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), iniciativa mais importante da União Federal para deslocar investimentos para o Nordeste, foi abandonada. Tinha muito problemas, é certo, mas teve papel importante e não foi substituída por nada a altura.
Até hoje os Estados aguardam a compensação prometida pela União quando chegou ao fim quando a Lei Kandir aboliu a incidência do ICMS sobre as exportações e o diferencial de alíquotas. A falta de confiança entre os próprios entes federados é um dos fatores mais importantes que impedem a concepção de uma boa reforma tributária.
O preço da gasolina subiu seis vezes este ano em decorrência da política de preços da Petrobras, mas essas altas levaram o consumidor a questionar o ICMS que incide sobre o combustível. Em que medida a reforma tributária poderia atenuar esse peso? Isso é possível?
Falar sobre a tributação da gasolina nos permite trazer uma situação que merece a atenção de todos, até porque mostra o total desapego do fisco para com o Direito.
A Constituição Federal estabelece que o ICMS poderá ser seletivo em razão da essencialidade dos produtos e serviços. Isso quer dizer que o imposto poderá ter alíquota maior quando o produto por ele alcançado não for essencial.
Aproveitando essa permissão, os Estados, que usavam a alíquota de 17% para os produtos em geral, fizeram uma lista dos produtos não essenciais para aplicar a alíquota de 25% e nela incluíram a gasolina, a energia elétrica e os serviços de telecomunicações.
Depois, a Constituição foi alterada e passou a permitir um novo aumento da alíquota de até 2%, mas que somente poderia onerar os produtos supérfluos. Os Estados usaram a mesma lista de produtos e a tributação da gasolina passou a 27%.
Levando em conta que o imposto deve ser incluído no seu próprio preço, o chamado cálculo por dentro, a alíquota real do ICMS sobre a gasolina é de 34,2%. A validade desses aumentos aguarda decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
A tributação da gasolina e energia com tais alíquotas não é nova e não deve ser apontada como motivo para os últimos ajustes de preço. O enorme impacto do ICMS no custo, entretanto, reflete diretamente no preço final desses dois insumos essenciais para a economia.
Os estados não admitem reduzir tais alíquotas argumentando que não podem perder a muito significativa arrecadação de ICMS que proporcionam. Resta concluir que de nada vale o texto constitucional diante da necessidade de recursos por parte dos governantes.
Considerando todo esse cenário, qual é a perspectiva que temos de mudança no sistema tributário nacional e, em resumo, do que precisamos?
No curto prazo não haverá reforma tributária. E isso não é de todo ruim, se imaginarmos que as opções seriam a PEC 110 e a PEC 45.
Os agentes políticos agem sob pressão e os contribuintes precisam reivindicar o que lhes é importante. Sem isso não teremos justiça fiscal!