‘Tigrinho’ e ‘Aviãozinho’: como jogos de azar podem gerar dependência, dívidas e perdas na família

Plataformas ganharam repercussão após relatos de pessoas que perderam grandes somas de dinheiro e prisões de influenciadores que divulgam jogo ilegal

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Cores vibrantes e animações rápidas são estratégias para captar a atenção de jogadores
Foto: Theyse Viana

A promessa de uma vida fácil e financeiramente estável surge ali, a um clique de botão no celular. Um tigre risonho e colorido na tela parece incentivar mais lances: tudo depende do apostador. O “Tigrinho”, o “Aviãozinho” e outros jogos de azar na internet vêm formando um número cada vez maior de vítimas presas num labirinto de dívidas, problemas familiares e perda do autocontrole.

⚠️ Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV), por exemplo, oferece apoio através de chat na internet ou pelo telefone 188.

Popularizados no Brasil desde o isolamento social da pandemia, esses jogos ainda carecem de regulamentação. Agindo nas brechas da lei, as plataformas estimulam o investimento de pequenas somas para multiplicá-las por até centenas de vezes. O problema é que isso não acontece e gera uma comunidade cada vez maior de perdedores.

Um deles foi a cearense Ângela Maria, de Missão Velha, na região do Cariri. Atolada em dívidas estimadas em mais de R$300 mil, ela tirou a própria vida. Para conscientizar outros jogadores sobre o alto risco dessas apostas, a irmã dela, Jessica Lobo, decidiu abrir o perfil “A outra face do Tigrinho”. Três grupos online conduzidos pela “ativista contra os jogos”, como se define, reúnem quase mil pessoas de todo o Brasil. 

Entre os membros, estão “a irmã de um rapaz que também perdeu a vida” e “um policial da Bahia que perdeu mais de R$1 milhão e hoje paga até processo”. Hoje, para Jessica, o trabalho voluntário é uma forma de honrar a memória da irmã - que deixou áudios relatando o problema - e de combater “o julgamento de quem não passa por isso”.

“Vejo que ainda tem muita gente que, vez ou outra, acaba recaindo e volta completamente destruído. Isso me doi bastante”, lamenta Jessica. “Infelizmente, esse é um vício como qualquer outro, porém mais prejudicial, pois não dá sinais, não dá alerta e está nas mãos a todo momento”. 

Relatos assim não são incomuns nos dois grupos dos Jogadores Anônimos (JA) em Fortaleza. Por lá, há quem tenha perdido mais de R$200 mil em apostas online e, agora, ajuda outros jogadores viciados em cassinos virtuais e Jogo do Foguete, entre outros. Em paralelo, a reportagem também ouviu relatos de um marido que precisou mudar a senha do aplicativo de banco para que a esposa deixasse de gastar dinheiro nas apostas.

Legenda: Ângela (de azul) deixou pistas para Jessica (de preto) começar a ajudar outras pessoas em sofrimento
Foto: Arquivo pessoal

Entretenimento versus dependência

Segundo a psicóloga Beatriz Austregésilo, pós-graduada em Dependência Química e atuante em uma clínica de tratamento de transtornos psíquicos e vícios em Fortaleza, é possível classificar os jogadores em três tipos:

De forma geral, a especialista lembra que jogos mexem com o sistema límbico, estrutura cerebral relacionada às recompensas. Ganhos e vitórias lançam neurotransmissores ligados à sensação de prazer nas vias dopaminérgicas da mesma forma que uma dependência química: você tem um pico, é recompensado e quer de novo porque a sensação é muito boa - porém, passageira.

“Ou seja, quanto mais rápido o efeito, mais chances eu tenho de dependência. E quando falamos em jogos eletrônicos, não são partidas de 40 minutos para saber se vou ganhar ou perder. Na palma da minha mão, em 5 minutos, eu consigo jogar. É muito prático para dar certo ou para dar errado”, exemplifica.

Vinícius Andrade, médico colaborador do Ambulatório de Transtornos de Impulso da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão das Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), explica que os jogos eletrônicos são uma forma popular de entretenimento, mas podem trazer sérias consequências para a saúde mental e emocional.

A compulsão, alerta, envolve buscar várias vezes o mesmo comportamento, apesar da consciência de prejuízos relacionados a ele. Já a dependência é mais profunda e gera falta de controle, incluindo “sintomas de fissura” que podem levar a taquicardia, sudorese e aumento da velocidade do trânsito gastrointestinal - similares a quadros de dependência de opioides. 

“Na adicção, as outras coisas acabam sendo deixadas de lado em função desse comportamento. Mesmo quando não tem acesso, ou porque a esposa brigou ou porque os pais cortaram o cartão de crédito, ele continua com vontade e fazendo de tudo que está ao alcance para conseguir ter novamente acesso a esse jogo”, aponta Andrade. 

Segundo o psiquiatra, é importante reconhecer os perigos desse vício e como ele pode impactar a vida diária em diversos âmbitos:

  • Saúde mental: o vício tem sido associado à depressão, ansiedade, abuso de álcool e tabaco, baixa autoestima e comportamentos impulsivos;
  • Problemas físicos: pode trazer dores musculares, lesões por esforço repetitivo e problemas de sono;
  • Relações interpessoais: o tempo gasto em jogos pode levar a conflitos familiares, problemas conjugais e dificuldades de comunicação;
  • Desempenho profissional: pode resultar em falta de concentração e baixo rendimento;
  • Desenvolvimento cognitivo: especialmente em crianças e adolescentes, pode dificultar o desenvolvimento de habilidades sociais, emocionais e acadêmicas.

Arquitetura do vício

Desde 1980, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o transtorno de jogo como doença. No Brasil, estima-se que 1% da população possa desenvolver a patologia - e quando essa prevalência fica acima de 1%, “estamos falando em situações de calamidade pública”, explica Vinicius. Logo, “à medida que a gente aumenta a oferta, aumenta a porcentagem da população que pode ser vulnerável”.

Não é incomum se deparar com publicidades de jogos eletrônicos nas redes sociais, e o número parece ser crescente. Nos últimos meses, seguidores denunciaram que milhares de perfis de “tigrinhos” passaram a enviar solicitações de contato. Em pesquisas básicas, também não é difícil encontrar perfis e lives divulgando macetes para multiplicar o dinheiro.  

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Alguns fatores da mecânica dessas plataformas podem ser apontados para contribuir com a compulsão, de acordo com Artur Franco, doutorando em Ciências da Computação e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Crítico delas, o pesquisador acredita ser necessário diferenciar os jogos tradicionais, com suas expressões técnicas e culturais próprias, do que ele chama de “sistemas de aposta”.

Ele aponta que o Tigrinho é apenas o mais conhecido, mas existem coelhos, dragões e outros animais estampando as plataformas. “A indústria de jogos de azar se vende como um jogo. Esse elemento visual do ícone e do mascote é uma forma de enganar. É uma ilusão você apostar, fazer uma escolha e rapidamente ter uma resposta de sim ou não".

"Talvez exista algum mecanismo de atraso, para trazer algum tipo de satisfação, como uma roleta, uma animação. Mesmo numa roleta de cassino físico,  a perda do usuário é quase certa. Quando você vai para um sistema digital, o mecanismo é ainda mais cruel”, aponta.

Embora não conheça a fundo o funcionamento desses sistemas, Franco acredita que os desenvolvedores também podem identificar o perfil do usuário a partir dos metadados de outras redes sociais. Traçando o padrão específico de consumo, o jogo pode se adaptar ao tempo e às preferências do jogador para mantê-lo engajado.

Legenda: Transtorno pode ser silencioso e se arrastar por anos; parentes podem ficar atentos a sinais de alerta
Foto: Camila Lima

População vulnerável

Com a atenção captada, a psicóloga Beatriz Austregésilo lembra que os jogos costumam começar pela Fase da Vitória, com ganhos sucessivos e animadores. A Fase das Perdas vem em seguida, quando é ativado um otimismo não realista: a pessoa percebe que há algo errado, mas decide que conseguirá contornar a situação se jogar mais. O agravamento leva à Fase do Desespero, quando os recursos financeiros acabam e o jogador enfrenta sensação de fracasso, culpa e vergonha. 

De forma racional, você entende que não vai dar certo, mas não consegue ver outra saída que não os jogos. É muito difícil que o paciente perceba o problema sozinho, só quando chega num nível muito extremo ou quando a família não aguenta mais porque são dívidas muito altas que não consegue pagar sozinha.
Beatriz Austregésilo
Psicóloga

O psiquiatra Vinicius Andrade reforça que não é possível definir exatamente quem vai ser mais vulnerável ao transtorno de jogos porque ele depende de uma série de influências, tanto genéticas quanto comportamentais e de desenvolvimento. Por isso, o médico defende treinamentos adequados a profissionais da rede pública de saúde para identificar e lidar com essa condição. 

Além disso, ele é a favor da criação de um conselho interdisciplinar que discuta os aspectos sociais e de saúde do transtorno. “O jogo existe na nossa realidade há muito tempo e não deve ser visto como algo ruim, mas precisamos olhar para o 1% que tem prejuízos", indica.

"A regulação pode ser um caminho para intervenções mais adequadas, como já vimos com o álcool e o tabaco, em que na embalagem mesmo você tem fotos das consequências. São possibilidades para tentar auxiliar as pessoas mais vulneráveis a esse quadro”, finaliza. 

Já o professor Artur Franco é enfático: mesmo que haja regulamentação para esse tipo de jogo, ainda assim eles seriam danosos. “Eles não são necessários, a sociedade não tem uma demanda disso. Não existia um consumo até pouco tempo. Nós vivíamos muito bem sem ter esse tipo de plataforma, que deveria ser proibida mesmo”, defende.

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