Quando se perde um bom pai

Embora diante da perda a sensação possa ser de abandono e tristeza, aos poucos, o diálogo interno ajuda a perceber e agradecer o valor do vivido

Escrito por
Alessandra Xavier producaodiario@svm.com.br
Legenda: O bom pai desconstrói a própria ideia do machismo e a transforma em cuidado e sabedoria
Foto: Pexels

Ser acolhido na vida por uma boa figura paterna, pode nos propiciar a dignidade de uma vida com respeito e afeto. Crescer nesse abraço e nessa parceria, fortalece a esperança na dignidade da vida; é possuir alguém que nos inspire, que cuide, proteja, que nos escute, que esteja por perto, que nos faça sentir a confiança da sua presença e do seu amor.

Quando nossa vida emocional é habitada por um bom pai, isso pode reverberar em memórias e espaços dentro de nós que passam a ser preenchidos pelo que guardamos enquanto identificação. Assim, ao nos tornamos um pouco daquilo que perdemos, guardamos a sua presença em  nós eternamente, movimentando outros investimentos e ações. Ser inspirado pelo cuidado, pela presença, pelo trabalho, pelas ideias, pelos afetos de um bom pai é protetivo e valioso.

Risos, alegrias, suporte para nossas raivas, aprendizagens, impotências e dores, o pai é testemunha do nosso crescer. Guardar circos, férias, viagens, experiências artísticas e estéticas vivenciadas juntos, sutilezas do cotidiano, descobertas sobre a natureza, os ciclos, semelhanças,  diferenças, aprender sobre os absurdos, os mistérios, sobre a beleza em guardar parques de diversão dentro do peito, sobre a força de uma saudade que eleva e cuida mesmo na ausência física, festejar pelo que permanece, pela palavra que marca e impulsiona o viver,por saber que alguém nos contou histórias e se importou.

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Saber que, se seguimos, é porque alguém em algum momento nos colocou nos braços e que esses braços possam continuar seguros no nosso caminhar para termos onde voltar e nos apoiar nos dias difíceis, mesmo que os braços físicos não estejam mais lá. Aprender a ressignificar aquele que muitas vezes vamos descobrindo após o passar do tempo, junto com nossa própria descoberta. O bom pai precisará do nosso perdão e da nossa gratidão.

Quando perdemos alguém especial assim, tristeza, sensação de desamparo, raiva, culpa, medo, incertezas podem emergir. Por isso, os rituais são fundamentais no processo de elaboração do luto e para lidar com as perdas. Neles  podemos experienciar o fortalecimento dos vínculos entre irmãos, família, amigos, colegas, sociedade, Estado,  constituindo suporte  para sentir que diante da perda, existe o muito que fica.

Embora diante da perda a sensação possa ser de abandono e tristeza, aos poucos, o diálogo interno ajuda a perceber e agradecer o valor do vivido. O bom pai é aquele que a criança precisa ter. Ou seja , cada sujeito necessita de um pai próprio. A figura paterna, que não se restringe ao biológico, expande para outras figuras de autoridade, bondade, referência, liderança e proteção os complexos processos psíquicos e afetos ambivalentes vividos em relação a essa figura.

Além disso, reverbera nas nossas relações conosco e com os outros, nos nossos desejos, interdições e criações. Quando um bom líder morre, pode acionar as mesmas dores ou memórias da perda de um bom pai, que se tenha tido ou desejado. O bom pai falha e nos ensina sobre humanidade, emoções, vida, justiça,  lei, trabalho e empatia. Mas principalmente, nos ensina a ser gente, a ir para o mundo e a amar.

O pai precisa se confrontar com as armadilhas do patriarcado, nas quais muitas vezes foi educado e que o distancia da possibilidade da doçura, do respeito à diversidade e diferenças na existência e da equidade entre os seres. O bom pai desconstrói a própria ideia do machismo e a transforma em cuidado e sabedoria. E resgata a transgeracionalidade que fortalece as identidades, oferendo ao nome ao dignidade da pertença.

Nem todos experimentarão  essa benção e esse cuidado. Mas nem por isso, deixam de poder construir na vida, possibilidades de serem acolhidos e construir nessa trajeto existencial a possibilidade de recompor com outros, sejam parentes, seja através de cuidados profissionais, de pessoas estranhas ao ambiente familiar, amigos, nas famílias dos amigos, nas experiências coletivas, nos grupos, ou nos bons encontros da vida, a sensação daquilo que não foi possível ser experimentado antes.

Alguns viverão a experiência da violem vez do cuidado e descobrir como esse pai reverbera dentro de si, empoderando, fortalecendo ou punindo e ameaçando é tarefa valiosa rumo à independência e autoria. As perdas nos ensinam que algo bom foi vivido e que sentimos a partida delas. Entretanto, podemos manter vivo enquanto memória, inspiração,  gestos, o que de bom ficou. Tornando  assim possível, exercer uma boa paternidade junto aos outros e a nós mesmos.

A experiência de ser amado, aceito, visto, reconhecido, apoiado para ser quem se é,  torna-se uma proteção por toda a vida. Um bom pai nos ensina a seguir sem ele.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.