Saúde mental: acesso a internet e a celular aumentam no CE e alertam para riscos de ‘dependência digital’

Sintomas de abstinência ao ficar longe do celular e necessidade de “dose” cada vez maior no uso do aparelho são sinais de dependência digital

Escrito por
Gabriela Custódio gabriela.custodio@svm.com.br
Homem de camiseta preta mexendo no celular
Legenda: Normalmente, o quadro de dependência de tecnologia aparece em situações em que o paciente tem comorbidade com outros transtornos mentais
Foto: Jonas Leupe/Unsplash

Durante as refeições, em filas de espera, no transporte público, antes de dormir ou assim que acorda. Nesses e em outros momentos, pegar o celular para rolar o feed de redes sociais, enviar mensagens, assistir a vídeos ou jogar tornou-se um hábito para muitas pessoas. Mas, em casos mais extremos, esse costume pode sinalizar um adoecimento, com sintomas semelhantes ao vício em substâncias, acendendo alerta para a saúde mental — foco da campanha Janeiro Branco.

A dependência digital é um diagnóstico novo, mas está cada vez mais comum nos consultórios médicos. Apenas em 2018, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu o vício em jogos eletrônicos como um transtorno. Quando chega a um adoecimento, a pessoa apresenta sinais de abstinência ao ficar longe de aparelhos, como o smartphone, e, com o tempo, passa a apresentar maior tolerância, necessitando de uma “dose” cada vez maior para se sentir satisfeita.

Se você está se sentindo triste, tem pensamentos suicidas ou intenções de ferir o próprio corpo, sente-se sem esperança e pessimista na maior parte do tempo ou conhece alguém que passa por essas ou situações semelhantes, isso pode estar ligado a um problema de saúde mental e há inúmeros tratamentos na rede pública ou privada capaz de oferecer ajuda. Como exemplos de locais que podem ser procurados, está o Centro de Valorização da Vida (CVV), que atende 24h pelo telefone 188 e sem custo de ligação ou via Chat, no cvv.org.br; o Movimento de Saúde Mental, no WhatsApp (85) 9 8106-7178, e o Hospital de Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza, que dispõe de emergência 24 horas.

“Para que eu tenha o prazer oriundo daquele comportamento — por exemplo, o uso do celular ou de algum aplicativo em especial —, eu preciso permanecer cada vez mais tempo, (...) preciso de maior quantidade, de maior velocidade da internet”, conforme explica Luísa Bisol, psiquiatra do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e professora adjunta de psiquiatria da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Porém, ela explica que é mais difícil que um paciente procure ajuda exclusivamente com a dependência tecnológica. Normalmente, esse quadro aparece em situações que têm comorbidade com outros transtornos mentais. “Existem muitos (casos de) pessoas que têm, por exemplo, transtorno bipolar e, em comorbidade, transtorno de dependência de tecnologia”, acrescenta.

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Nação conectada

Os cearenses, assim como a população brasileira como um todo, estão cada vez mais conectados. Enquanto em 2016 a internet estava presente em 57% dos domicílios do Ceará, em 2023 esse percentual chegou a 89%, segundo o módulo de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O mesmo levantamento também mostra que houve aumento da proporção de pessoas com 10 anos ou mais que possuem celular para uso pessoal. Em 2016, esse índice era de 68% e passou para 81% na pesquisa mais recente.

Adolescentes são um segmento particularmente vulnerável no ambiente virtual, segundo a psiquiatra Luísa Bisol. Eles estão potencialmente expostos a grupos nos quais há troca de dicas sobre temas como automutilação e estratégias para burlar a fome, comuns em casos de transtornos alimentares.

“Às vezes, se a gente pensar que os transtornos mentais graves são associados a uma certa solidão, a pessoa sofre um estigma e a conexão com o mundo acaba sendo muito via digital”, comenta a médica.

Uma pesquisa que trata especificamente sobre o uso da internet por crianças e adolescentes é a TIC Kids Online Brasil, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), que investiga o uso da Internet por crianças e adolescentes de 9 a 17 anos no Brasil.

Na edição de 2024, o estudo mostrou que 93% da população brasileira de 9 a 17 anos utiliza a internet e, dessa parcela, 83% têm perfil em redes sociais. As principais plataformas são WhatsApp (69%), Instagram (63%), TikTok (45%) e Youtube (42%).

60% das crianças de 9 a 10 anos têm conta em redes sociais, apesar de todas as que foram investigadas na TIC Kids Online afirmarem que a idade mínima para criar um perfil é 13 anos.

Além disso, a pesquisa aponta para os riscos aos quais esse público está exposto no ambiente digital. Entre os entrevistados, 29% reportaram ter passado por situações ofensivas, que não gostaram ou chatearam na Internet e, destes, 13% afirmaram não ter contado sobre o ocorrido para ninguém.

Impactos da dependência digital

Os transtornos mentais levam a impactos negativos que podem prejudicar as atividades diárias e os relacionamentos interpessoais. No caso da dependência digital, Luísa Bisol explica que os pacientes, muitas vezes, podem “deixar de cumprir com as obrigações que seriam esperadas para a faixa etária”, como prejuízos financeiros e no rendimento escolar.

“Eu posso me abster de atividades analógicas, digamos assim, e acabar tendo aumento do risco de desenvolver obesidade, tendo um estilo de vida mais sedentário. Tudo isso implicando prejuízos para a saúde”, acrescenta a psiquiatra. 

Especificamente em relação ao uso do celular, o transtorno tem um nome: nomofobia. O termo vem na expressão “no mobile phone phobia”, do inglês, e trata de “uma condição mental causada pelo desconforto decorrente da impossibilidade de comunicação por meios virtuais”, segundo o estudo “Nomofobia entre discentes de medicina e sua associação com depressão, ansiedade, estresse e rendimento acadêmico”.

Nessa pesquisa, 292 estudantes do primeiro ao oitavo semestre do curso de Medicina de uma faculdade privada de Fortaleza foram entrevistados e quase todos (99,7%) apresentaram algum grau de nomofobia. O artigo aponta que a condição “pode provavelmente aumentar a ansiedade e, consequentemente, levar a uma baixa do rendimento acadêmico”.

Os sintomas mais comuns apresentados pelos participantes foram:

  • Ficar irritado quando não pode procurar informações no smartphone quando quer fazê-lo (60,6%);
  • Sentir vontade de checar o smartphone após algum tempo sem fazer essa checagem (57,6%);
  • Ficar preocupado ao não estar com o smartphone, por não poder ser contactado por amigos e família (53,3%);
  • Ficar ansioso por não poder se comunicar imediatamente com amigos e família, e se sentir desconfortável sem acesso constante à informação através do smartphone (55%).

Apesar de o estudo ter como foco estudantes de Medicina, os achados dos pesquisadores podem sinalizar para problemas que podem afetar outros grupos populacionais.

“Pessoas mais expostas à nomofobia incluem adolescentes e jovens adultos, devido ao uso intenso de smartphones para socialização e estudo, e profissionais que dependem do celular para trabalho, como freelancers e empreendedores”, apontam o médico e professor universitário Marcos Kubrusly e o estatístico Hermano Rocha, dois dos pesquisadores responsáveis pelo artigo, em entrevista realizada por e-mail.

Pessoas com ansiedade social ou dificuldade em desconectar-se também são grupos de risco, “uma vez que o celular pode funcionar como um mecanismo de fuga ou segurança”. “Essas populações estão mais vulneráveis devido à alta frequência e à dependência emocional que desenvolvem em relação ao dispositivo”, complementam.

Criança usando celular para jogar
Legenda: Desde 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o vício em jogos eletrônicos como um transtorno
Foto: Onur Binay/Unsplash

Estratégias para o dia a dia

A relação do estudante de Medicina Henrique Costa, de 25 anos, com o celular mudou no período de prestar o vestibular. Foi naquela época que ele passou a regular o uso do celular e o tempo que passava no Instagram, para se dedicar mais aos estudos. Hoje, ele conta que utiliza o smartphone com frequência no cotidiano, durante cerca de 2 horas, para trocar mensagens, estudar e ver as redes sociais.

No entanto, ele explica que em outros momentos as redes sociais já causaram ansiedade, por “ocupar muito a cabeça” em momentos que poderiam ser de ócio. “Nesses momentos, eu fico no Instagram vendo novas notícias, novas mensagens e isso ocupa muito a minha mente, me deixando, às vezes, cansado para poder estudar”, diz. Por isso, em determinados períodos do ano, ele chega a apagar o aplicativo.

“Acho que a internet é muito boa, trouxe muitos benefícios, como a comunicação e a facilidade de pesquisar informações, mas acho que o uso excessivo pode me prejudicar”, reflete.

Entre os amigos, ele diz perceber o uso excessivo de redes sociais e, em alguns casos, a adoção de estratégias semelhantes à dele. “Alguns apagam as contas, outros apagam somente os aplicativos e assim vão procurando novas maneiras de lidar melhor com a internet”, finaliza.

Dicas para uma relação saudável com a internet

Estabelecer uma relação equilibrada com a internet e com o celular é “plenamente possível” por meio da adoção de algumas práticas conscientes, defendem Marcos Kubrusly e Hermano Rocha. Definir limites claros para o uso desses dispositivos e reservar momentos específicos para ficar desconectado, por exemplo, é essencial. “Especialmente durante o lazer e as interações familiares”, pontuam.

Também é importante praticar a higiene digital, adotando medidas como silenciar notificações e limitar o tempo dedicado às redes sociais. “É igualmente importante utilizar as tecnologias de forma intencional, priorizando ferramentas que promovam aprendizado, comunicação significativa e bem-estar”, complementam.

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A psiquiatra Luísa Bisol também destaca a importância do exemplo dos pais para os mais jovens. “Também (temos que) entender que tem momentos que nós temos que nos desligar. Vamos nos desligar para comer, por exemplo. Se eu prestar atenção no que estou comendo e não no que eu postei ou no que o coleguinha postou, talvez consiga me alimentar melhor, ter uma vida mais saudável”, aconselha.

Ela destaca, ainda, a importância de conciliar o digital e o analógico, estimulando a alternância do uso de computadores e celulares com atividades como jogar futebol na rua, andar de bicicleta, e tomar banho de mar. “E combinar limites, vamos combinar: ‘tanto tempo’, ‘até tal hora’. De noite, em ‘tal hora’ vamos desligar, porque realmente o excesso de telas interfere com a qualidade do sono”, finaliza.

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Janeiro Branco

A cada início de ano, desde 2014, a campanha Janeiro Branco busca promover debates sobre a saúde mental. Reconhecida em 2023 pelo Governo Federal por meio da Lei nº 14.556, o propósito da iniciativa é sensibilizar indivíduos e instituições sociais sobre  a importância de construir uma “cultura da saúde mental” em todas as relações humanas.

Em 2025, o tema do Janeiro Branco é “O que fazer pela saúde mental agora e sempre?”. Entre cuidados individuais, atitudes institucionais e políticas públicas em prol da saúde mental, a campanha indica:

  • Faça atividades físicas: Movimente-se regularmente para aliviar o estresse,fortalecer o corpo e melhorar o humor;
  • Durma bem e o suficiente: Priorize o sono de qualidade, pois ele é fundamental para o equilíbrio emocional e mental;
  • Alimente-se de forma saudável: Uma alimentação equilibrada nutre corpo e mente, favorecendo uma saúde mental mais estável;
  • Invista em autoconhecimento, autoestima e autonomia: Conheça-se e valorize suas qualidades para desenvolver uma vida mais autônoma e autoconfiante;
  • Tenha hobbies terapêuticos: Envolva-se em atividades que tragam prazer e relaxamento, ajudando a reduzir o estresse;
  • Pratique a gentileza, a paciência, a tolerância e a sensatez: Atitudes positivas e conscientes melhoram a convivência e favorecem o bem-estar coletivo;
  • Conecte-se com a natureza e a proteja: Passar tempo na natureza acalma a mente e promove uma conexão saudável com o ambiente;
  • Procure ajuda pessoal e profissional quando necessário: Buscar apoio é essencial para superar desafios e manter a saúde mental em equilíbrio;
  •  Incentive a conexão humana e o respeito em todos os tipos de relações: Valorize as relações saudáveis e respeitosas para criar laços que apoiem a saúde mental;
  • Exerça os seus direitos e respeite os direitos alheios: Direitos são fundamentais para o bem-estar de todos, precisam ser garantidos e exercidos com liberdade, consciência e responsabilidade;
  • Defenda a sua qualidade de vida e a qualidade de vida de todo mundo: Cuidar do seu bem-estar e contribuir para o bem-estar das outras pessoas fortalece a sociedade;
  • Promova a ampliação e a efetivação de políticas públicas: Apoiar políticas inclusivas fortalece a saúde coletiva e promove uma sociedade mais justa e mais saudável.

SERVIÇO

Confira locais onde é possível buscar atendimento de saúde mental gratuito em Fortaleza nesta matéria do Diário do Nordeste.

Instituto Bia Dote

Grupo de Apoio aos Enlutados Sobreviventes do Suicídio e Clínica Social

Onde: Av. Barão de Studart, 2360, sala 1107
Telefone: (85) 3264-2992 / (85) 99842-0403

Programa de Apoio à Vida

Telefone: (085) 98400-5672
E-mail: contato.pravida@gmail.com

Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)

O serviço do Caps é “porta aberta”, e o usuário pode procurar o atendimento diretamente ou ser encaminhado por meio de outros serviços da rede de saúde. Veja a listagem dos Caps do Ceará.

Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM)

A unidade dispõe de emergência 24 horas para pacientes com transtornos mentais graves que estejam em crise.

Onde: Rua Vicente Nobre Macêdo, S/N — Messejana
Quando: Todos os dias da semana, 24h por dia

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Atendimentos por meio do telefone 188, por chat, e-mail e de forma presencial.

Onde: Rua Ministro Joaquim Bastos, 806 — Bairro de Fátima

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