Saúde mental quilombola: por que ansiedade e depressão afetam os mais jovens
Preconceito, desigualdades de acesso e insegurança sobre as terras comprometem bem estar de populações no Ceará
Ter saúde mental de qualidade depende de fatores como sexo, idade, histórico familiar e indicadores socioeconômicos. É nesse último quesito que esbarra a população quilombola do Ceará: historicamente invisibilizada, enfrenta uma série de problemas no cotidiano que afetam dos mais velhos aos mais jovens - sobre esses últimos, inclusive, vêm recaindo casos de ansiedade e depressão.
A observação é do psicólogo quilombola Yhago Shallys, integrante da Comunidade Quilombola Sítio Antas, em Aurora. Pós-graduado na área, ele atua buscando integrar os saberes das medicinas da floresta ao bem-estar biopsíquico das comunidades, refletindo sobre ancestralidade e cuidado comunitário.
Segundo o especialista, o debate sobre Saúde Mental Quilombola não pode ser desconectado dos impactos do racismo e das desigualdades sociais sobre os territórios, historicamente ligados à resistência da ancestralidade negra no país.
Pela primeira vez, o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022, contabilizou 23.955 pessoas desse grupo étnico-racial em 68 cidades cearenses. Caucaia e Horizonte concentram a maior parte, com 2,6 mil e 2,2 mil residentes, respectivamente.
Apesar disso, os quilombolas enfrentam incertezas sobre a própria terra. O Estado possui atualmente apenas 15 territórios quilombolas passando por alguma etapa do processo de regularização fundiária, alguns há mais de uma década. Somente em dezembro de 2023, duas terras (Lagoa das Pedras, em Tamboril, e Sítio Arruda, em Salitre) receberam a titulação de posse definitiva pelo Governo Federal.
Além disso, muitos sobrevivem em condições adversas. Ainda segundo o Censo, mais de 6,5 mil quilombolas têm condições precárias de saneamento básico no Ceará, sem infraestrutura adequada de abastecimento de água, coleta de lixo e esgotamento sanitário.
Assim, de acordo com Yhago Shallys, sobreviver nesse cenário é desafiador e uma herança de preconceitos. “A história continua, é permanente. Os quilombos ainda sofrem bastante preconceito por serem formados por pessoas marginalizadas, que têm um conhecimento que não é valorizado pela medicina tradicional”, reflete.
O psicólogo lembra que esse preconceito reverbera na aparelhagem psíquica e no desenvolvimento integral, especialmente da população mais jovem. Ele percebe que muitos são alienados pela padronização de uma vida pautada pela branquitude, reforçada constantemente na mídia e nas redes sociais.
Os jovens - me retenho a eles porque a gente sabe que tem aumentado os índices de suicídio - muitas vezes têm o ego fragilizado, fragmentado, por essas demandas raciais e preconceituosas que a sociedade impõe, dentro de um padrão que muitas vezes não condiz com a realidade deles.
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Adoecimentos mais comuns
Conforme o psicólogo, a depressão e a ansiedade são as patologias mais preocupantes porque estão correlacionadas. Em rodas de conversa e escutas profissionais, o especialista vislumbra o distanciamento dos jovens das raízes em nome de uma globalização de consumo e costumes.
“Isso fragiliza o ego desses jovens, faz com que desenvolvam ansiedade, dificuldades de sociabilidade. Escutei relatos até de crianças que desenvolveram depressão, ou seja, isso não atinge só pessoas de mais idade”, revela.
Para ele, esse movimento ocorre pela perda de conexão com a ancestralidade e a comunidade, “com todo esse saber que reforça a identidade e fortifica o ego perante as adversidades”.
Conexão com a terra
Traçando um panorama histórico, Yhago explica que os europeus se organizaram em sistemas de propriedade privada interconectados. Já os africanos se constituíram com senso comunitário muito forte com o meio ambiente, com os ciclos da natureza e com as medicinas originais.
“Se isso se perder, fica cada vez mais difícil retomar a identidade da população quilombola. Mas as redes sociais fazendo parte do dia a dia quase 24h da realidade fazem com que os jovens esqueçam essas prática e seus rituais. São eles que formam uma identidade mais forte e vigorosa, um reforço positivo para a saúde mental deles”, garante.
Por isso, torna-se essencial incentivar os cuidados com a terra praticados há muito tempo. “Perder esse traço, essa identidade, essa linha temporal, faz com que os jovens sofram com crises de identidade e queiram se encaixar num padrão que não condiz com a realidade. Reforçar a conexão com a natureza e o território é importante porque as demandas da população negra estão muito entrelaçadas com o poder comunitário”.
Necessidades devem ser ouvidas
A professora Marleide Nascimento, especialista em gestão escolar e nascida no quilombo Alto Alegre, na zona rural de Horizonte, endossa a necessidade de escuta das populações quilombolas do Ceará para a tomada de ações, envolvendo os saberes de raizeiras, benzedeiras e parteiras nas práticas de saúde.
Segundo a ativista, o primeiro passo para a fortificação do povo quilombola é o reconhecimento oficial dos títulos de terra, constantemente questionados por interesses empresariais.
“Enquanto nossos territórios não tiverem títulos de terra, não podemos efetivar políticas. Quando falamos de racismo ambiental, falamos de território livre. Quando não temos o título de terra, não conseguimos produzir ervas, plantas medicinais, nem alimentação saudável”, pontua.
Em segundo, explica ela, é relevante garantir a presença de quilombolas em espaços de poder e de educação, especialmente no Ensino Superior.
“Educação abre portas e, com ela, posso voltar e contribuir para o meu território. A continuidade é compreender o direito que essa população tem e continuar lutando para que ele seja garantido”, pensa.
Por fim, Marleide defende a capacitação profissional contínua dos profissionais da saúde que atuam na ponta, entendendo as especificidades dos territórios: “cada povo tem a sua, então não adianta falar de nós sem nós”, conclui.
Yhago Shallys complementa: muitas comunidades quilombolas são afastados das cidades - alguns pacientes chegam a precisar se deslocar 20 km por atendimentos - e têm acesso escasso a políticas públicas, como postos de saúde, CAPS e escolas. Por isso, a mobilização social se torna tão importante.
Em março deste ano, por exemplo, ocorreu o I Encontro Estadual da Saúde Quilombola no Ceará, em Caucaia. Cerca de 170 quilombolas, lideranças, pesquisadores, profissionais e gestores se reuniram para discutir caminhos para que a ancestralidade seja reconhecida como parte fundamental das políticas de cuidado no Estado.
“Quando a gente reforça a coletividade, as gerações seguintes percebem o valor do conhecimento e que tudo isso é promoção de saúde mental. Reforçar os conhecimentos, aquilo que tem de mais potente nas comunidades quilombolas, é uma forma de se afirmar perante todas as intempéries que a sociedade impõe”, finaliza o psicólogo.
O que diz o Governo do Ceará
Em nota, o Governo do Estado afirma que regularmente realiza ações e elabora políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas. Entre elas, estão dois projetos liderados pela Secretaria da Igualdade Racial (Seir).
O primeiro é o “Quilombo Vivo”, que leva assessoramento jurídico para avançar nas titulações de territórios. O outro é o Projeto Meu Afronegócio, que busca fomentar o empreendedorismo negro e de povos tradicionais.
No âmbito da saúde, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) realiza dois cursos de 60 horas cada, com 12 turmas de 60 vagas para gestores e profissionais da Rede de Atenção à Saúde, com foco na Saúde Mental.
“A pasta também está em processo de elaboração de um mapa da Saúde, onde serão sinalizados os serviços de saúde mental de retaguarda nas cinco Regiões de Saúde”, ressalta.
A gestão destaca que busca estabelecer diálogo entre o movimento social e as pastas para que a população negra, povos quilombolas, ciganos e de terreiro tenham acesso a direitos e políticas públicas.