De mágoa a terra prometida: moradora de Orós lembra como família deu novo sentido à memória do açude
Ao conversar com um oroense ou com alguém que vive próximo e é diretamente impactado pelo segundo maior açude do Ceará, é comum ouvir que o Orós é sinônimo de vida. Mas não foi sempre assim na cidade de mesmo nome. Para quem vivia na antiga Conceição do Buraco, vila às margens do rio Jaguaribe que hoje está sob as águas do reservatório, por um tempo essa relação foi de mágoa. Décadas depois, o sentimento foi ressignificado.
“Como o meu pai dizia: ‘Nós saímos sem nada, só com a coragem. Saímos para não morrer afogados’”, conta a professora aposentada Jeanne Pereira Soares, ao relembrar a história dos pais, José Pereira Filho e Joana Soares Pereira. Eles deixaram a terra em que viviam, na antiga vila, e se firmaram em um terreno que recebeu o nome de Guassussê.
Hoje, Guassussê é um distrito do município de Orós, com 2.685 habitantes, e representa uma espécie de terra prometida para a professora Jeanne. A população é abastecida pela água liberada do açude Orós para o açude Lima Campos, em Icó, por um túnel que passa na entrada do distrito.
“Então, o açude Orós tendo água, nós temos água os 365 dias do ano”, diz a professora, feliz por ver o reservatório cheio novamente e ansiosa para vê-lo voltar a sangrar depois de 14 anos sem atingir o volume máximo. A espera acabou no último 26 de abril, quando ele transbordou.
O Diário do Nordeste foi até a cidade de Orós, a cerca de 342 quilômetros de Fortaleza, para acompanhar a expectativa da população à espera da sangria do segundo maior açude do Ceará e entender outros aspectos dessa relação com o reservatório. Esta é a terceira e última reportagem do especial “Orós, tempos d’água”, que fala sobre o vínculo dos moradores com o Açude, construído há mais de 60 anos e o seu impacto na economia, cultura e memória.
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Os pais de Jeanne saíram da região de Conceição do Buraco e chegaram em Guassussê em 1961. Inicialmente, eles ficaram na casa de um familiar e depois José Pereira Filho escolheu um terreno para construir a casa onde a professora sempre morou e onde recebeu o Diário do Nordeste.
“Naquela época era tudo muito difícil, e a prioridade era construir pelo menos dois vãos para eles poderem se abrigar. Meu pai era pedreiro, marceneiro e agricultor, e ele ia investindo as safras que ia tirando ao longo do ano na construção da casa. Depois, veio a aposentadoria dele, da minha mãe e eu comecei a lecionar, em 1990. Aí tudo foi melhorando”, conta ela.
‘A terra que jorra leite e mel’
A forma como ocorreu a saída de Conceição do Buraco teve impacto na relação das pessoas com o açude Orós. No começo, principalmente entre as pessoas mais velhas, Jeanne conta que havia um misto de alegria — por ter um reservatório que acumulava bastante água — com tristeza — porque acabaram perdendo tudo na construção dele.
“Foi algo que durante muito tempo fez com que eles ficassem com um pouco de mágoa, nesse sentido, principalmente por parte do governo não ter indenizado. A grande queixa deles era exatamente essa. Conta-se que alguns receberam, mas foram uma minoria”, diz a professora.
Foi assim com os pais da professora Jeanne Pereira Soares. À época, José vivia no sítio Jurema e Joana, no sítio Cabeça. Recém-casados, saíram sem auxílios ou indenização.
O relato sobre a falta de indenização e de informações sobre a obra também está presente em escritos da médica, professora e jornalista Erotilde Honório, como no artigo “Comunicação, Memória Coletiva e Movimento Popular”, a partir de entrevistas com moradores do distrito.
“Em nenhum momento houve a preocupação com os habitantes e o seu destino, atingidos pelas águas da represa”, escreveu ela, que tem estudos e livros publicados, além de uma peça teatral, em que conta a história de Guassussê e de como as águas do Orós inundaram o território de sua família.
Os moradores se veem diante da ameaça de perderem seu pequeno pedaço de chão, dez hectares cada um em média, a terra que lhes dá o sustento, o resultado do trabalho com o suor do rosto; além de serem destituídos dos seus pertences, correrem risco de vida, e no plano simbólico, perderem a própria identidade.
O historiador Kamillo Karol também aborda a retirada de populações do local onde vivem para a construção de açudes na tese de doutorado intitulada “Um rio entre diversas temporalidades: o Jaguaribe a partir da construção do açude Orós (1958 – 1964)”. “O tema da desapropriação apareceu em detalhes novamente no Relatório do DNOCS de 1964. Referindo-se ao açude Orós, o documento registrava: 2 processos pagos, 476 termos de ajustes aprovados e 597 desenhos feitos”, escreve ele.
Por meio da lei 4.381, de 24 de agosto de 1964, Humberto de Alencar Castelo Branco, cearense que venceu a eleição indireta e se tornou o primeiro presidente da ditadura militar brasileira, autorizou a abertura do crédito especial de 4 bilhões de cruzeiros para despesas com a desapropriação do açude Orós.
O valor deveria ser voltado “inclusive [para] deslocamento e retirada de casas e pagamento de benfeitorias existentes, submersas pelas águas do mencionado reservatório em consequência do fechamento de suas comportas”.
Em 4 de agosto de 2000, em entrevista ao Diário do Nordeste, o historiador Wilson Lima Verde explicou que “havia os direitos de posse, de herança, mas a maioria não tinha o registro, a escritura em cartório dos imóveis” que possuíam na região que foi inundada.
Com o passar do tempo, ao perceber as vantagens proporcionadas pelas águas do reservatório, foi possível perceber uma mudança nessa relação, segundo Jeanne. “Claro, o governo pecou por não ter feito como deveria ter sido feito, indenizando as pessoas que lá residiam, mas a construção do açude foi a salvação para muitas coisas, muitas pessoas.”
Ela conta que as pessoas começaram a ver que “o açude de Orós é que nos ajuda”. No segundo semestre, por exemplo, a colheita do arroz no açude Lima Campos, em Icó, era possível graças à água que vinha do Orós. “Fora outras formas que foram sendo trabalhadas, como a questão do pescado”, complementa.
Eu diria que nós estamos na terra que Deus prometeu a Abraão, a terra que jorra leite e mel. Enquanto, nós tivemos essa tragédia para ter que sair de lá, deixar a terra que para eles era tudo, nós viemos para uma outra terra. Deus prometeu uma outra terra, onde nós temos a possibilidade de trabalhar, ter o nosso sustento, ter a água em grande escala.
Para as novas gerações, de acordo com ela, o sentimento é de alegria e gratidão a Deus. “Porque os homens construíram, mas quem manda a água e a chuva é Deus”, diz Jeanne. Enquanto diversos outros locais sofrem com a falta d’água, o Orós “está sempre segurando as pontas”.
História de quem foi ‘expulso pela água’
Um fato é semelhante para parte dos moradores do Orós: hoje o reservatório é uma espécie de bênção, presente e promessa que, com as águas, leva sustento e esperança. Entretanto, foram preciso muitos anos e também o nascimento de novas gerações para que parte dos sentimentos de dores e perdas se transformassem.
A própria trajetória da família de Jeanne é semelhante a muitas outras do local e recontam um tempo de contradições: para a população de Guassussê, a história foi diferente do que ocorreu com os moradores de Jaguaribara, cidade a cerca de 76 quilômetros de Orós que teve seu território inundado pelo Castanhão.
O açude, que se tornou o maior do Estado, posto até então ocupado pelo Orós, foi entregue pelo Governo Federal em 2002. Na época das obras, uma nova cidade foi construída do zero para abrigar os moradores de Jaguaribara. Isso não foi feito por aqueles que viviam na antiga Conceição do Buraco.
As obras do açude Orós tiveram início em 1958 e, no ano seguinte, algumas pessoas já tinham começado a deixar a vila. Mas Jeanne conta que o grande fluxo ocorreu em 1960, quando um terreno foi doado por Manoel Raimundo Montanha, conhecido como Badeco, dono de muitas terras na região.
Quando uma cheia do rio Jaguaribe em 1960 levou à destruição parcial da parede do Orós, as pessoas que ainda estavam no local foram forçadas a saírem de lá, segundo contextualiza a professora Jeanne.
‘Para onde a santa os guiasse’
A população da vila era devota de Nossa Senhora da Conceição, o “mito de origem” da comunidade, como escreve Erotilde Honório. Relatos dos mais velhos, que passaram de geração em geração, dão conta de que uma imagem foi encontrada na várzea da Fazenda Buraco, perto do Riacho Maniçobas, após uma enchente do rio Jaguaribe. E assim o povoado de Conceição do Buraco surgiu, em 1693, com a santa como padroeira.
Foi por essa devoção que, ao buscarem um novo local para viver, os moradores queriam ir “para onde a santa os guiasse”. “Eles sempre pensavam: ‘Para onde nós formos, a santa tem que ir conosco’. A santa, na verdade, é o fundante, o guia deste povo”, narra Jeanne Pereira Soares.
Assim como a população de Conceição do Buraco, seu Badeco era devoto de Nossa Senhora da Conceição. Em comum acordo com os filhos, ele decidiu doar 100 braças de terra para a santa, suficiente para a construção das quatro ruas principais do povoado que posteriormente passou a ser chamado de Guassussê.
As primeiras casas do distrito começaram a ser construídas no dia 6 de janeiro de 1960, há 65 anos. É nessa data que os moradores celebram o aniversário da localidade, apesar de a criação do distrito ter sido estabelecida oficialmente pela Lei 009, de 14 de agosto de 1990.
No ano seguinte ao início da construção das casas, em 1961, a comunidade já tinha uma pequena capela, onde eram celebrados os cultos religiosos e a festa da Imaculada Conceição, em 8 de dezembro. No começo de 1963, ganhou as primeiras salas de aula. “A professora que veio de Conceição, Eva Gomes, dava aula para os meninos na casa dela”, conta a professora Jeanne.
‘Caminhos diferentes’
No momento em que a população deixou a vila Conceição do Buraco, houve uma divisão entre os migrantes. Parte deles foi para uma área chamada Manuel Pereira, que depois recebeu o nome de Palestina e hoje é outro distrito de Orós, com 2.947 habitantes.
A matéria de 4 de agosto de 2000, do Diário do Nordeste, explica que o terreno de Palestina estava em uma área pertencente à diocese do Crato e que a ideia inicial do bispo da cidade era “formar um grande conglomerado urbano”, o que não ocorreu, uma vez que parte da população foi para Guassussê.
Com a divisão, surgiu uma rivalidade entre os moradores dos dois povoados, marcada por um episódio em que residentes de Guassussê esconderam a imagem da padroeira. “As duas localidades veneram Nossa Senhora da Conceição e a imagem da Palestina foi adquirida posteriormente”, diz a reportagem de agosto de 2000.
Manter a história viva
Em Guassussê, a população não deixa a história de Conceição do Buraco cair no esquecimento. Já foi objeto de estudo, tema de livro, enredo para peças. Sempre é contada nas escolas, em aulas de diferentes disciplinas. “Se os mais novos não tiverem essas informações, como é que eles vão ter conhecimento, poder guardar, poder zelar? Porque a história é o nosso patrimônio”, diz a professora Jeanne Pereira Soares.
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Hoje morando no Piauí, o professor de Espanhol do Instituto Federal do Piauí (IFPI) Emanuel Marques Oliveira viveu em Guassussê e tem contato com essa história desde novo. “Quando a gente nasce em Guassussê, já aprende desde pequeno a história, porque ela tanto é contada nas escolas como nos encontros religiosos. Muita gente faz parte de grupos de igreja, e sempre é contada, recontada. Então, a gente já tem essa memória, essa bagagem, desde muito cedo”, diz.
E ele também trabalha para repassar essa memória. Ele é diretor da Cia da Conceição, companhia de teatro de Guassussê que adaptou a peça “Auto da Terra da Santa”, escrita pela professora Erotilde Honório, para musical. A montagem foi apresentada em outros distritos de Orós e em cidades próximas.
O grupo mescla a história real com personagens místicos para representar determinadas “nuances” da história narradas pela população, como a Rainha das Águas, que conta o momento em que a imagem da santa foi encontrada. “É algo que muitos moradores contam porque a mãe ou a avó contava, porque o tataravô já contava”, diz.
É nessas nuances que a gente encontra a liberdade de criar, de colocar esses personagens místicos, porque Conceição do Buraco, assim como o Guassussê, é um lugar místico, em que as pessoas entendem a fé como algo que movimenta a sua vida. [...] Não à toa aqueles moradores enxergaram em Nossa Senhora da Conceição um papel de segurança, de providência de algo melhor ou algo seguro depois daquela tragédia, um papel que o governo não assumiu.
Segundo a reportagem publicada em 4 de agosto de 2000 pelo Diário do Nordeste, as ruínas de Conceição do Buraco ficaram visíveis em 1993, quando o açude Orós chegou ao nível mais baixo até então. O mesmo ocorreu em 2018. Nesse episódio mais recente, a Escola Livre de Artes e a Cia da Conceição realizaram uma excursão até as ruínas, levando alguns moradores da antiga vila.
“Surgiu um pouco da torre da igreja, algumas ruínas realmente estavam bem aparentes. E foi um momento de muita emoção em que eles relembraram muita coisa. Mesmo com as águas, eles sabiam localizar as duas ruas, largas, bem organizadas. Sabiam localizar onde ficava a casa de parentes ou de pessoas conhecidas. E isso foi muito bacana, contaram histórias impressionantes”, lembra Emanuel.