Há quase 24 anos, mais precisamente em julho de 2001, a nova sede do município de Jaguaribara, no interior do Ceará, começou a receber a população vinda da velha cidade que, por estar no caminho do Açude Castanhão precisou mudar de lugar. O novo território, completamente planejado, àquela altura, deveria receber cerca de 1.000 famílias. 

Mas, quem acha que os primeiros residentes do “novo lugar” foram transferidos nesse período, engana-se. Os mortos já haviam chegado naquela “terra prometida” em 1999. Depois foi a vez das imagens de santos residentes nas igrejas da velha cidade. Somente após isso a população geral passou a ocupar o lugar. 

Os mortos chegaram primeiro, pois em 1999 a cidade que estava sendo construída desde 1995 já contava com o cemitério. Portanto, um dos movimentos feitos, enquanto os vivos esperavam para inaugurar a cidade com algumas estruturas já prontas, foi definido que, antes mesmo de receber os vivos, já era possível abrigar na nova sede os jaguaribarenses que falecessem. 

Após visitar o Vale do Jaguaribe por 4 dias, no fim de janeiro de 2025, o Diário do Nordeste publica nesta semana uma série de reportagens reconstituindo a história que conecta o Castanhão, a maior barragem do Brasil, e Jaguaribara, cidade que deu lugar ao açude. As matérias abordam a mobilização, tensões e memórias dessa relação que, após mais de 30 anos, guarda um misto de percepções: o êxito de morar na primeira cidade planejada do Ceará e a saudade da antiga sede, típica do interior e margeada pelo Rio Jaguaribe.

Na velha Jaguaribara desde o final de 1995, quando os governos federal e estadual formalizaram o início, em paralelo, da construção do Castanhão - que se tornou a maior barragem do Brasil - e a da nova cidade, algumas medidas começaram a ser tomadas para que o município a ser demolido não sofresse mais nenhuma alteração. Uma delas foi fazer com que o cemitério não recebesse mais mortos para que, dessa forma, fosse possível garantir as exumações no prazo legal de 3 anos. 

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Legenda: Ossário no cemitério novo, procissão dos santos e espaço do cemitério
Foto: Ismael Soares

Portanto, veio a restrição, explica o morador aposentado Francisco Isac da Silva, 69 anos. Com o cemitério antigo lacrado, “quem morria em Jaguaribara era enterrado no desterro (Cemitério Nossa Senhora do Desterro) em Jaguaretama (cidade vizinha)”. E assim o ritual era cumprido. Os  jaguaribarenses que morriam tinham de ser enterrados na cidade vizinha. 

Esse movimento ocorreu até fevereiro de 1999, conta Francisco. Naquele período, um parente do aposentado, também morador da velha Jaguaribara, foi enterrado no território vizinho por haver a restrição de sepultamento na sua cidade natal. “Mas ele foi o último a ser enterrado lá. Depois, já começaram a enterrar no novo cemitério”, completa. 

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“Um ex-prefeito veio e disse que ia enterrar o filho dele na nova cidade (antes da conclusão em 2001) e assim foi feito”, relembra Jesus Jeso Freitas, morador de Jaguaribara. Em junho de 1999, a criança de 10 anos, Francisco Rofson Bezerra do Ceará, conhecido como “Rofinho”, foi a primeira a ser sepultada no novo cemitério. Portanto, o primeiro jaguaribarense que a nova cidade abrigou, ainda que sem vida. 

Conforme informações de documentos da Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) da época, concedidos ao Diário do Nordeste por um dos arquitetos que participou da ação em Jaguaribara, Marcelo Colares, entre junho de 1999 e maio de 2000 (antes dos vivos chegarem à cidade, já que eles só foram recebidos em julho de 2001), 26 corpos foram enterrados no novo cemitério, 14 homens e 12 mulheres. 

Legenda: Fác-símile Diário do Nordeste de julho de 2001

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Procissão para entrega dos santos

Em um ritual simbólico, antes de a nova cidade ser oficialmente inaugurada outros “moradores” foram conduzidos ao local. Dessa vez, as imagens dos santos das igrejas da cidade velha foram levadas para os dois novos templos edificados na nova sede em formato de réplica dos anteriores. 

No dia 27 de julho de 2001, uma sexta-feira, quatro dias antes de ocorrerem as primeiras mudanças dos moradores para as casas, a população organizou uma romaria que conduziu as imagens dos santos à nova cidade. Cerca de 2 mil pessoas participaram. 

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Legenda: Procissão que levou os santos para a nova cidade
Foto: Neysla Rocha/Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc)

Conforme noticiado pelo Diário do Nordeste, à época, "às cinco da manhã daquele dia, a banda do município percorreu as ruas convocando a população para a romaria que levaria os três padroeiros da Igreja de Santa Rosa e Poço Comprido para a nova cidade". 

Duas horas depois, diz o registro, "toda a população já estava reunida em frente à Igreja Matriz, onde foram feitas orações e retiradas as imagens de Santa Rosa de Lima, São Gonçalo e São Vicente Ferrer". Os santos foram levados em um carro do Corpo de Bombeiros, acompanhadas por 46 ônibus e 148 motos, além de veículos de passeio. “No dia da procissão teve muita gente, muito choro”, completa Jeso.

Os registros desse momento constam na Casa da Memória, equipamento iniciado na antiga cidade e também levado para a “nova Jaguaribara”. Fotografias registram a solenidade e os carros. 

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Casa de prostituição foi o primeiro estabelecimento da cidade

Outro mudança antecipada para a cidade nova, mas pouco comentada, foi a de uma casa de prostituição. Uma fonte que participou de todo o processo de transferência dos moradores, ouvida pelo Diário do Nordeste, contou que com o elevado número de trabalhadores homens atuando nas duas obras (Castanhão e nova cidade) essa demanda chegou ao local. 

“Eram cerca de 200 engenheiros e arquitetos e 2.000 operários. Então, foi vista a possibilidade das mulheres (que atuavam com prostituição) irem primeiro para a cidade nova, caso quisessem”, contou. 

A ideia não agradou a muitos setores, relata. Mas a mudança aconteceu, e a casa de prostituição passou a funcionar na cidade. Uma matéria do Diário do Nordeste, de agosto de 2001, reitera a versão e registra que “a cidade já tinha um prostíbulo”. 

Segundo o relato, o estabelecimento de 90 m² ficava situado na entrada da cidade. Na época, foi levantada a possibilidade de desapropriação do local, mas o prefeito Cristiano Maia, diz o texto, “garantiu que não haveria a retirada”. 

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Exumação na cidade velha

O processo de mudança da velha Jaguaribara também teve outro momento complexo, sensível e emocionante: o desmonte do antigo cemitério e o translado dos corpos para a nova cidade. Após a etapa de transporte dos moradores e demolição dos prédios, ao longo de 11 dias foi efetuado o desmonte do cemitério, cuja área era de 1.280,00 m².

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Legenda: Reprodução de fotos guardadas na Casa da Memória sobre o processo de exumação
Foto: Ismael Soares

Na época, todos os túmulos e covas do antigo cemitério, aproximadamente 319, situados fora da cidade velha, conforme documento da Seinfra, "deveriam ser abertos, e os restos mortais sepultados em cada um deles (em torno de 701) condicionados em urnas de zinco, de tamanhos específicos para este fim”. 

Os moradores que já haviam se mudado, caso quisessem podiam participar da exumação dos parentes. A ação teve um amplo processo de identificação individual dos restos mortais que, em seguida, foram transladados e sepultados nos ossários no cemitério da nova cidade. O trabalho contou com equipes de assistente sociais. No novo cemitério, os restos mortais exumados foram colocados em um ossário disposto em paredes verticais. 

"Eu vi meu pai outra vez. Ainda vi a roupinha. Fiquei muito emocionado. Acompanhei de pertinho. Muita gente foi ver. Na minha família fui eu e minha irmã. Os outros não quiseram ir. Colocaram no novo cemitério. O trabalho deles foi muito bem feito".
Jesus Jeso Freitas
Morador de Jaguaribara

A arquiteta Luiza Marillac Cabral que trabalhou no planejamento da nova cidade e na execução das mudanças, explicou que a exumação dos corpos foi um dos processos finais “para evitar tumulto e a curiosidade mórbida de quem não tinha nada a ver com o assunto”. De acordo com ela, todos os dias uma topique saía da nova Jaguaribara com parentes dos mortos que seriam exumados. 

Nessa mudança, no âmbito religioso, foi realizada a dessacralização do antigo cemitério e a sacralização do novo. “O outro (antigo) foi todo escavado em um profundidade grande. A água do Castanhão é para abastecimento humano, por isso precisava de um cuidado extremo. Nele (cemitério) foi colocado cal e realizado o aterramento com areia para deixar adequado”, relata. 

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Créditos

Thatiany Nascimento Repórter
Ismael Soares Produtor Audiovisual
Louise Dutra/Igor Pontes Criação SVM Arte/Animação
Dahiana Araújo Editora de DN Ceará
Karine Zaranza Coordenadora de Jornalismo
G. André Melo Gerente Audiovisual
Ívila Bessa Gerente de Jornalismo
Gustavo Bortoli Diretor de Jornalismo