Castanhão 30 anos: moradores da ‘cidade que açude inundou’ no Ceará sobrevivem entre a saudade e o desapego

Um telefonema recebido há 40 anos repercute até hoje em moradores de uma cidade no interior do Ceará. Naquele 25 de agosto de 1985, com dezenas de fiéis reunidos na Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima, em meio à festa da padroeira, um informe se propagou: a construção do Açude Castanhão - maior barragem do Brasil -, situada no Vale do Jaguaribe, inundaria a sede do município de Jaguaribara e o único distrito da cidade, Poço Comprido. Para o Castanhão nascer, dizia o recado, a cidade precisava desaparecer. Mas, o fato é que ela ressurgiria 50 km adiante. Naquele dia, essa história apenas começou.
“Pense no alvoroço grande. Era gente chorando, lamentando, rezando”, relembra ao Diário do Nordeste o morador de Jaguaribara, aposentado, Jesus Jeso Freitas, e um dos grandes mobilizadores do movimento em prol da resistência dos jaguaribarenses. Naquele tempo, ele tinha pouco mais de 20 anos e se engajou no movimento de resistência à obra iniciada há 30 anos, quando em 1995 a ordem de assinatura foi assinada.
Uma mobilização intensa que segue compondo a memória coletiva daqueles que travaram uma grande batalha diante de uma das maiores obras feitas no Ceará, o açude cuja capacidade de armazenar 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) de água, o que ter o potencial de acumular o equivalente a 30% da água do Estado.
“A mudança da cidade velha foi muito traumática. Antes da construção (da nova cidade) foi pedida muita coisa que lá não tinha. Quando a cidade já estava quase pronta ficamos nas naquelas vindas e idas para ver como estava. Muitas coisas chegaram, mas outras não”, reforça outro morador de Jaguaribara, o professor aposentado, Francisco Isac da Silva.
Após visitar o Vale do Jaguaribe por 4 dias, no fim de janeiro de 2025, o Diário do Nordeste publica nesta semana uma série de reportagens reconstituindo a história que conecta o Castanhão, a maior barragem do Brasil, e Jaguaribara, cidade que deu lugar ao açude. As matérias abordam a mobilização, tensões e memórias dessa relação que, após décadas, guarda um misto de percepções: o êxito de morar na primeira cidade planejada do Ceará e a saudade da antiga sede, típica do interior e margeada pelo Rio Jaguaribe.
A saudade que começou a se desenhar no final da década de 1990 ainda se manifesta de distintas maneiras na nova cidade, entregue em 2001. Em Jaguaribara, conviver e lidar com as lembranças é quase regra, já que quem não vivenciou diretamente o processo de mudança, é filho ou neto de quem sentiu a angústia de “abandonar o território de origem”.
E as memórias estão impregnadas naquilo que submergiu, mas em muitas outras dimensões. A idosa Adelcina Bezerra da Silva, uma das últimas a deixar a velha cidade, bem sabe da força dessa nostalgia.“Na semana santa, a gente fazia Via Sacra e saía nas ruas tudinho. A gente andava e conhecia todas as ruas. Aqui eu não conheço. A gente faz a Via Sacra na Igreja. Lá era de casa em casa. Aqui a gente não faz desse jeito”, conta.
Cícero Vieira Amancio, outro morador, reitera a resistência de partir da velha Jaguaribara. "Eu não queria vim. Eu achava que não dava certo. Eu trabalhava em curral achava que ia ser tudo muito difícil". As incertezas sobre o futuro, que agora, é presente, eram incontáveis, relembra.
Para muitos, as angústias transbordaram justamente nos dias de mudança, ocorridos entre julho e agosto de 2001. Cícero foi um deles. "Eu não assisti derrubarem minha casa porque foi aquela emoção medonha. Eu fiquei passado. Eu nem me lembro. Diz que eu corri, diz que eu fui uma pedra pra dentro d'água. Sei que me levaram e quando cheguei já estava em outro canto. Eu ainda me lembro de lá. Lembro da minha pedrinha que eu me sentava, na beira do Rio”, detalha.
Na transferência de cidade, Cícero correu para o Rio Jaguaribe, onde a sua casa de taipa margeava as águas. Chorou, passou mal e foi levado à nova sede de medicado. Deixou, a contragosto, o velho lugar. Partiu levando seis filhos e a esposa.
No atual cenário, Jaguaribara, tem 10.356 moradores, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Destes, 30% já nasceram na nova cidade. As manifestações de saudade e a tentativa permanente de resgate da memória da cidade velha, cujo um dos principais atributos era o contato com o Rio Jaguaribe, são marcas inegáveis de parte da população de Jaguaribara.
Idealização do Castanhão
Apesar do susto em 1985 (que começaria a se concretizar em 1995), a ideia de construção do Castanhão, àquela altura, não era bem uma novidade. Há muitas décadas, pelo menos desde 1910, a “lenda” de que a barragem seria estruturada no Boqueirão do Cunha - área onde a açude se encontra - atormentava moradores. Pela ideia, represadas, as águas do Jaguaribe inundariam a cidade.
Os registros oficiais do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), órgão do Governo Federal construtor do Castanhão, apontam que desde o início do século passado já havia estudos geológicos e topográficos para a construção da barragem.
Portanto, nos anos de 1980, quando o então prefeito de Jaguaribara, Francini Guedes, comunicou na Igreja aos devotos de Santa Rosa Lima o que ouviu de um gestor de uma das cidades vizinhas, a sensação era de que a “ameaça que sempre atormentou, agora, estava cada vez mais perto”.
Entre agosto e setembro de 1985, a notícia chegou e “foi descartada”. No Ceará, o governador Gonzaga Mota, à época, afirmou que o plano de inundação da cidade seria rejeitado. Nacionalmente, em setembro, o então ministro do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, Flávio Peixoto, que tinha vindo à Fortaleza no início daquele mês para tratar sobre a obra, mandou suspender o estudo de relocalização da cidade.
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Moradores e gestores das cidades do Vale do Jaguaribe afetados pela possível intervenção, especialmente os de Jaguaribara, que nesse intervalo de tempo já haviam iniciado uma intensa mobilização, comemoraram. Mas não durou muito.
Em 1989, a “lenda” do Castanhão foi reativada. O então deputado cearense Paes de Andrade, presidente da Câmara Federal, à época, em uma das vezes que assumiu interinamente a Presidência da República, na ausência do presidente José Sarney, (entre 1989 e 1990 foi presidente em 11 oportunidades) assinou o edital para construção do que seria a maior barragem do Brasil.
Recomeçava ali a saga que, em 1995, teria a ordem de serviço assinada pelo governador do Ceará, Tasso Jereissati, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso. A mudança afetaria cerca de 5 mil pessoas.
Uma década depois, a notícia repassada na Igreja, voltava a afligir quem morava em Jaguaribara, às margens do Rio Jaguaribe. Naquele intervalo de tempo, a população já havia se organizado intensamente para resistir à construção. Mas, a “cidade velha” tal qual eles conheciam estava com os dias contados. Iria desaparecer.
Anúncio da construção
Em maio de 1995, o Governo do Estado anunciou que as obras do Castanhão teriam início no segundo semestre. Uma parceria daria viabilidade ao projeto que durante anos careceu de verba para ser concretizado. A edição de 19 de maio de 1995 do Diário do Nordeste noticiou que a obra sairia do papel “graças à consolidação de uma parceria entre o Governo do Estado e a União, que entram respectivamente com 30% e 70% do montante da obra, com custo estimado em R$ 120 milhões”.
O Castanhão foi incluído entre as obras prioritárias do governo Fernando Henrique Cardoso e a emissão da Ordem de Serviço ocorreu em 16 de novembro de 1995. A previsão de término da obra era 1999.
A intervenção de grande magnitude consiste no barramento do Rio Jaguaribe, gerando um reservatório com capacidade de armazenamento de 6,7 bilhões de metros cúbicos de água e tem múltiplos usos. Desse modo, serve, dentre outros, para o abastecimento humano, a irrigação, a piscicultura e a perenização do Rio Jaguaribe.
Além disso, à época da construção era uma das maiores apostas na garantia de abastecimento de Fortaleza e da Região Metropolitana de forma definitiva. Através da transposição das águas até reservatórios que abastecem esses territórios situados a muitos quilômetros de distância. O plano se concretizou.
De tão grande, o Castanhão perpassa o território de 4 cidades (além de Jaguaribara, banha também Alto Santo, Jaguaretama e Jaguaribe). Mas, embora desde o anúncio da obra já fosse sinalizada essa dimensão, o único município a ter a sede totalmente submersa era Jaguaribara (além de um distrito chamado Poço Comprido). Os demais, tiveram “apenas” áreas rurais inundadas.
A partir dali, o processo se transformava em uma corrida. Dos governos federal e estadual para estruturar as duas obras em paralelo (do açude e da construção da nova cidade) e de forma célere, e a da população para não abandonar as marcas da própria origem, tampouco, ter “sair perdendo mais ainda” nessa grande intervenção.
De maio de 1995 em diante, são incontáveis as vezes que os jaguaribarenses fizeram o percurso de 280 km entre a velha cidade e Fortaleza (com a remoção, essa distância diminuiu, passando a ser de cerca de 220 km entre a nova cidade e a Capital). As viagens tinham como destino a sede do Governo, a Assembleia Legislativa e outros prédios institucionais para realização de protestos, atos, reuniões e encontros.
Uma agitada agenda de manifestações das quais participavam diversos grupos, relata o aposentado, Jesus Jeso Freitas foi montada. Durou intensamente 6 anos entre a assinatura da obra e a entrega das casas. Eram jovens, comerciantes, agricultores, lavadeiras, sindicalistas, políticos e gestores, dentre outros, relembra ele.
A Associação dos Moradores de Jaguaribara havia sido criada. A tentativa era de garantir força na mobilização e também respaldo jurídico. Outro reforço, relatam os habitantes de modo unânime, foi da Igreja Católica, por meio da irmã Bernadete. A religiosa, falecida em 2024, é uma figura representativa nesse movimento.
Definição do novo lugar
No processo, logo começaram a chegar empresas para fazer o levantamento das informações na cidade ainda no final da década de 1990. “E a gente mobilizando as universidades. Muita gente ajudou. A gente entrou com ações na Justiça. Ia para Fortaleza”, aponta Jeso. Mas, não adiantou. Jaguaribara deixaria aquele lugar. E ir para onde?
Diante da constatação de que a obra iria ocorrer, um geólogo aliado da população, explica Jeso, fez os estudos e indicou o atual território da cidade como o melhor espaço para alocar o município. A escolha da nova área passou por votação popular (prática que foi adotada em diversos momentos da remoção da cidade, após pressão dos habitantes).
Mas, o novo local definido não pertencia integralmente ao município de Jaguaribara. Foi preciso que as cidades vizinhas doassem partes de seus territórios para nova cidade nascer. O mapa municipal mudou.
“Aí começamos. A associação fazia esse trabalho. Pegamos um ônibus, colocamos gente nele. E dizíamos: hoje nós vamos discutir sobre educação, aí vinham os professores dizer como a gente queria nossas escolas na cidade nova. A gente vinha direto para cá. Quase todo dia ia e olhava, denunciava, cobrava”.
Um relatório técnico assinado por profissionais da Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) que atuaram na intervenção à época, como o arquiteto Marcelo Colares, a arquiteta Luiza Marillac Cabral e a socióloga Afonsina Braga Barbosa, e repassado ao Diário do Nordeste por eles, aponta a “estreita relação mantida entre os habitantes dos núcleos urbanos e o rio Jaguaribe”. Ouvidos pelo Diário do Nordeste os profissionais informaram que o reassentamento foi planejado inicialmente pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano que no decorrer do tempo passou a ser Seinfra.
Na cidade velha, moradores tanto da sede como do Distrito de Poço Comprido, diz o documento, “habituaram-se a ter no rio seu principal espaço de lazer, e norteador de todas as suas atividades econômicas”. Na nova localização, o rio Jaguaribe já não é um vizinho tão próximo.
A análise das condições topográficas da região, aponta o relatório, a localização considerada ideal para a nova cidade fica a aproximadamente 1km do barramento, que “por seu relevo suave, apresentou-se como excelente para implantação do núcleo inicial da Nova Jaguaribara”.
A área total da cidade nova é de 3.128,95 hectares. Ela fica situada a 60km da cidade velha. O registro diz ainda “esta localização, apresentou-se privilegiada com relação às vistas do lago, do barramento e do rio Jaguaribe; facilitando o acesso da população a estes locais, e o desenvolvimento da atividade turística planejada”.
Construção da nova cidade
O núcleo urbano da nova cidade foi completamente planejado, sendo um território entregue coberto integralmente por rede de água, esgoto e energia. O núcleo inicial foi projetado para abrigar as principais edificações públicas e religiosas, logo, é lá que estão a Prefeitura, a Câmara dos Vereadores, o Fórum, a Casa do Cidadão, o Mercado Público, a rodoviária, além da Igreja Matriz.
A área residencial contorna esse núcleo e a sede do município tem formato oval. Nela estão distribuídas as praças, escolas, creches, e unidades de saúde, incluindo o Hospital Municipal. Dentre os imóveis há também aqueles de uso misto (residencial e comercial). Tudo isso estava no planejamento.
Já o comércio atacadista, postos de combustíveis e oficinas, diz o documento da Seinfra, “foram locados no lado norte da cidade, à margem da via estruturante que liga a rodovia de acesso à cidade – CE 269, procedente da BR 116, com a CE 371”.
Os projetos eram apresentados e a população opinava sobre, após muita mobilização por participação popular nessas definições. No processo foi criado o Grupo Interinstitucional e Multiparticipativo, chamado de “Grupão”, no qual sociedade civil e Governo debatiam os andamento das duas intervenções.
Nas negociações, o processo de “permuta de imóveis” na cidade nova se deu da seguinte forma: famílias residentes em casas próprias com área edificada igual ou inferior a 150 m2, que optaram por ir para a nova cidade, permutaram por lote e casa com áreas equivalentes. Sendo 5 tamanhos: 50,00 m²; 75,00 m²; 100,00 m²; 125,00 m² e 150,00m².
Quem tinha imóvel superior a esse tamanho era oferecido o pagamento de uma indenização pela área excedente. Quem não quis ir para a nova cidade deveria ser indenizado.
No cálculo da Seinfra, foram entregues:
- 815 imóveis residenciais foram entregues na cidade nova a quem tinha casa na sede antiga. Essas residências foram entregues com áreas construídas variando entre 50 e 150m2 , implantadas em lotes com 360, 540 e 720m².
- 215 imóveis residenciais com área de 36m², implantados em lotes com 180m², foram entregues a quem não era proprietário de imóvel, mas morava na cidade antiga.
- 100 imóveis comerciais com área construída variando entre 36 e 360m² entregue para quem tinha edificações do tipo na cidade velha.
Saída da cidade velha
Outro ponto reivindicado foi a manutenção das relações de vizinhança. E isso, relembra o arquiteto Marcelo Colares, não foi uma tarefa tão fácil. Isso porque quem queria manter-se próximo aos mesmos vizinhos, poderia sinalizar essa vontade, assim como não quem não desejasse. Mas o quebra cabeça era justamente garantir a proximidade, equacionando o tamanho das novas propriedades, com o desejo de cada residente.
“Sentávamos em cima do papel com o desenho da cidade e íamos resolvendo cada situação, de um por um, até ajustar os moradores de cada rua, cada quadra”.
Na mudança, os moradores do Distrito de Poço Comprido (área localizada à época mais próxima à parede da barragem do que a cidade velha) fizeram dois deslocamentos. Primeiro em meados de 1999, enquanto a obra do Castanhão seguia, foram morar na velha Jaguaribara e, posteriormente, em 2001, seguiram para a cidade nova.
“A gente organizou umas despedidas por rua. Se planejava e a rua fazia a despedida. Na minha teve um porco, carneiro. Muito bonito. Era um chororô”, relembra o aposentado Jeso Freitas.
Antes de “desaparecer” em 2001, a velha Jaguaribara “paralisou”. Duas determinações materializavam o “congelamento” da estrutura antiga: não se podia construir nenhum novo imóvel e ninguém mais seria enterrado no cemitério localizado na entrada da cidade velha. Isso para não aumentar a quantidade de edificações e para assegurar o cumprimento dos prazos adequados de exumação quando da mudança para a nova sede fosse ocorrer.
Segundo os profissionais que atuavam na Seinfra, na época da mudança, a sede de Jaguaribara tinha 924 famílias e destas 892 seriam transferidas, 8 iriam para outros municípios e 9 encontravam-se sem local definido para moradia naquele momento. A população a ser removida para a nova cidade, apontam os registros, abrangia um total de 3.651 pessoas.A carga total a ser transportada era de 28.641,43 m³ incluindo os pertences que estavam em unidades residenciais, comerciais e institucionais.
A mudança ocorreu entre o final do mês de julho e agosto de 2001. Os primeiros equipamentos mudados foram Igreja Santa Rosa de Lima, a Prefeitura, a Câmara Municipal e o Centro de Saúde. Nos demais dias, partiram as famílias, comerciantes e demais prédios de uso institucional. Nesse movimento, a cidade velha começou a desaparecer.
“Teve um senhor que não queria sair, pegaram ele na carreira”, rememora o morador de Jaguaribara, professor aposentado, Francisco Isac da Silva. Ele relembra ainda que nos dias da mudança o movimento era tão intenso que os moradores “queriam ver tanto a saída como a chegada na nova cidade. Mas não dava tempo porque são 50 km, né?”, relembra.
Outra lembrança que evidencia a revolta inicial dos moradores, conta ele, é que: “no início, aqui (cidade nova) em toda esquina tinha orelhão. Praticamente celular não existia. O que que aconteceu? A população não tinha um sentimento de pertença e quebrou tudo”.
Ricos e pobres “misturados”
A nova cidade tem duas edificações absolutamente iguais (ou quase isso, visto que houve uma ampliação de tamanho em uma delas) a da anterior, as duas Igrejas são réplicas (Igreja de Santa Rosa de Lima, matriz, e a capela de São Vicente Férrer) e um universo de coisas distintas. A cidade absolutamente planejada tem ares de uma "pequena metrópole" em pleno sertão cearense.
“O que é mais importante é que misturou rico e pobre. A cidade como é grande não poderia ser construída que nem a outra. Antes era: você mora onde? E quando a gente dizia, por exemplo, na vila. aí tinha discriminação. Era diferente. Agora a mistura é uma satisfação”.
O tamanho das propriedades que por efeito geram ruas de grandes dimensões, bem como a largura das vias e a grandeza dos prédios geram na cidade nova a aparência de um grande condomínio de casas. As casas foram entregues com muro baixo e espaços para jardim na frente e lateral. Ao menos nesse núcleo central original, as residências planejadas deixaram de ser conjugadas.
Outra particularidade da nova cidade, é a “justiça social provocada” via estruturação dos imóveis e dos serviços. Na cidade nova, pobres e ricos receberam edificações com as mesmas aparências e acesso a serviços como saúde e educação. Eliminando o que em outras cidades é um problema crônico e visível: áreas com população de baixa renda completamente precárias e carentes de infraestrutura e outras ricas e privilegiadas com imóveis abastardos.
Misto de sentimentos
No sertão do Ceará, Jaguaribara segue marcada pelo paradoxo de ser uma cidade modelo, com atributos cobiçados por tantos outros municípios brasileiros, mas habitada por uma população na qual grande parte permanece saudosa do território inundado. Sobre os planos, relatam os habitantes, muito se esperou da prosperidade econômica vislumbrada com o Castanhão. Alguns se concretizaram. Outros aguardam.
Com a barragem do Castanhão se projetou muitas ideias sobre a nova cidade: uma delas que se transformaria em um polo de turismo, outra que teria uma progressão significativa na piscicultura. Parte dessas aspirações se tornaram realidade. Mas ainda estão distantes da envergadura esperada há 30 anos.
“Já chegamos a ter uma grande produção de tilápia. Mas, depois enfraqueceu”, completa o professor Francisco Isac. Antes, a velha Jaguaribara tinha cultura de produção de mel, agricultura e pecuária, contam os residentes. Hoje, apesar do enfraquecimento, a produção do peixe ainda é um destaque no território.
Mas, apontam, falta indústria, universidades públicas, formação para os jovens que estão em idade produtiva. O Diário do Nordeste entrou em contato com a Prefeitura de Jaguaribara quando esteve na cidade. Na ocasião, a gestão optou por não conceder entrevista gravada. Solicitou as perguntas e foram enviadas por whatsapp. Mas, até a publicação desta reportagem não houve resposta.
Para quem sente na pele as marcas desse processo e tem visto o tempo atravessar tanto as próprias memórias como as lembranças coletivas, a história de Jaguaribara é singular e irremediável, aponta Jeso entre a narração de uma recordação e outra. Mas, se do passado “muito se sabe”, o futuro, diz ele, requer: “os filhos de Jaguaribara tem que ter a cidade como sua. Isso aqui é nosso pessoal. Não tem mais como voltar. Não podemos voltar. A gente tem que amar essa cidade como nossa. O município é nosso”.