Última moradora a sair da cidade submersa pelo Açude Castanhão relembra resistência na mudança

Rua Major Diógenes, 707, Jaguaribara. Há mais de 50 anos, o endereço de Adelcina Bezerra da Silva, de 79 anos, tem essa nomenclatura no interior do Ceará. Mas, há 24 anos, a residência, a rua e parte dos seus vizinhos “foram transportados” cerca de 50 km.
Saíram da velha para a nova cidade de mesmo nome no interior do Ceará. Isso porque para construir o Açude Castanhão - maior barragem do Brasil com capacidade de armazenar 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) de água - o município precisou ser inundado. Adelcina foi uma das cerca de 5 mil pessoas afetadas e ficou na cidade velha o máximo que pôde.
A obra da cidade nova teve início em 1995, em paralelo a da construção do Castanhão, e ficou pronta em 2001. Entre julho e agosto daquele ano, os moradores foram retirados da cidade velha. Pouco mais de 920 famílias precisaram deixar o antigo território, Adelcina, conhecida como Delsa, foi uma das últimas residentes a sair.
Após visitar o Vale do Jaguaribe por 4 dias, no fim de janeiro de 2025, o Diário do Nordeste publica nesta semana uma série de reportagens reconstituindo a história que conecta o Castanhão, a maior barragem do Brasil, e Jaguaribara, cidade que deu lugar ao açude. As matérias abordam a mobilização, tensões e memórias dessa relação que, após mais de 30 anos, guarda um misto de percepções: o êxito de morar na primeira cidade planejada do Ceará e a saudade da antiga sede, típica do interior e margeada pelo Rio Jaguaribe.



Depois dela, há relatos de apenas um homem que ainda permaneceu no território até, de fato, a cidade submergir quando as águas do Castanhão chegaram ao local, após a entrega da obra em 2002. Delsa resistiu naquele 2001. Se deslocou “em um triste agosto” quando parte das edificações que frequentou e conhecia bem já tinham virado entulho.
A construção do Castanhão e a da nova cidade ocorreram em paralelo e perduraram, 6 e 7 anos, respectivamente. Mas, o processo de estruturação do maior açude do Brasil, considerando os planos, as decisões, os protestos e as paralisações, durou muito mais. A mudança dos habitantes da velha para a nova cidade veio após décadas de enfrentamento e manifestações.
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“Eu fui a última mudança que veio de Jaguaribara. Eu morava mais meu genro que (hoje) mora em Alto Santo (cidade vizinha) e ele não queria se mudar”, relembra a idosa de 79 anos, pensionista, nascida e criada na antiga Jaguaribara. De acordo com ela, que tem 3 filhos também jaguaribarenses, com o avançar das mudanças, em agosto de 2001, a gestão estadual avisou que o prazo estava se esgotando.
Naquele intervalo de um mês, seis dias por semana, caminhões deixavam a cidade velha pela manhã e à tarde. Carregaram os bens materiais em meio a lágrimas, comoções e a saudade que, recém chegada, já sinaliza seu caráter pouco passageiro. Por dia, partiam também seis ônibus transportando os moradores, três pela manhã e três à tarde.
“Me disseram: Adelsa hoje é o último dia. Se você quiser ir, ainda tem carro hoje. Se você não quiser, vai ter fretar e levar suas coisas”. Pelas contas da idosa, ela saiu nos últimos carros do último dia da mudança em 31 de agosto de 2001.
Nesse momento, relembra, disse para o genro: “vamos fazer o que? É o jeito a gente ir”. Então, segundo ela, partiram da cidade nos últimos dias da mudança. “Nós viemos em agosto e o povo dizia até que não era bom viajar em agosto”, completa. Na nova cidade, os residentes foram morar nas ruas e travessas de mesmo nome da antiga sede.
No processo, conforme informações de documentos da Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) da época, concedidos ao Diário do Nordeste por um dos arquitetos que participou da ação, Marcelo Colares, os trabalhos foram divididos em 5 semanas.

No planejamento, cada família a ser transferida recebeu as chaves da nova casa uma semana antes e na mudança caixas para acondicionar os pertences com etiquetas de identificação. Também foram fornecidos caixas para aves e “coleiras” para outros animais domésticos.
Na transferência, segundo dados repassados ao Diário do Nordeste por um dos arquitetos à época da Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) que atuou diretamente na intervenção, foram utilizados:
- 11 caminhões do tipo baú, sendo 2 de 45m³, 6 de 60m³ e 3 de 85m³;
- 1 caminhão com grades de proteção para transporte de equipamento pesados, botijões de gás e de animais;
- 3 ônibus com capacidade para 46 passageiros sentados;
Os moradores seguiam nos ônibus em cortejo com os caminhões que levavam os pertences. Adelcina relembra que, na época, a mãe mudou-se primeiro para a cidade nova. E ela seguiu na cidade velha. Até ser inevitável a transferência. “Logo no começo tinha ônibus para o povo vim, tinha carro, tinha almoço, tinha tudo. Quando a gente veio já num tinha mais nada disso”, relata.
Foi preciso garantir ainda o abastecimento paralelo das duas cidades. Naquele mês que elas coexistiram um esquema especial foi demandado para garantir mercearias, farmácias, padarias e venda de gás, em funcionamento nas duas cidades.
Outro ponto é que o novo local atualmente ocupado por Jaguaribara sequer pertencia à cidade. Para que fosse possível construir a nova sede do município foi preciso que as cidades vizinhas (Alto Santo, Jaguaretama e Morada Nova) cedessem parte dos seus territórios, alterando os limites entre essas cidades.
Lembranças da resistência
Passados 30 anos desde que o Governo do Ceará anunciou oficialmente que o Castanhão seria construído, os sentimentos de Adelcina sobre todas essas transformações são marcados por saudade e inconformismo.
Na nova casa, que tem 100 m³, recuos na frente e na lateral e grades que permitem ver a rua, que passa justamente atrás da Igreja Matriz, ela ainda reserva espaço para uma guardar uma camisa, usada na mobilização. Na estampa há: “Não ao Castanhão! SOS Jaguaribara”. A materialização de um clamor mobilizou parte dos 10 mil habitantes que hoje residem em Jaguaribara.



Quando teve conhecimento que a inundação aconteceria, Adelcina era tesoureira da Igreja. Se engajou na mobilização.
“Eu participava de todas as reuniões. Teve uma vez que eu vim para uma reunião no Araçá (sítio perto de Jaguaribara) e o rio estava com água nessa altura (sinaliza com as mãos acima da barriga). Na volta não tinha como ir. Já estava preocupada com o que ia fazer. E o Francini Guedes (ex-prefeito de Jaguaribara) ajeitou um helicóptero para tentar resgatar. A gente participarva de tudo".
Ela também conta que participou de inúmeras reuniões em Fortaleza. “A gente levava comida feita, passava o dia. Às vezes, a comida até azedava. Aí a gente tinha que se ajeitar”, recorda. Com o passar do tempo, relembra, o grupo percebeu que “a barragem vinha e fomos lutar por nossos direitos” e completa “toda reunião a gente falava, mas quando eles decidiam, eles faziam do jeito que queriam. A gente não tinha vez”.
Na cidade velha, Adelcina conta que tinha duas casas e dois prédios de comércio. Um deles uma padaria. Outro uma espécie de garagem onde ficava o caminhão do marido, que era caminhoneiro e faleceu aos 44 anos. Na nova cidade, recebeu uma casa e um comércio. Dos demais, as indenizações.
“Eu trouxe as máquinas da padaria. Mas, hoje só tem o prédio. As máquinas já vendi. Passei 30 anos cuidando da padaria e era muito trabalhoso”, relata. Dos três filhos, apenas um mora com ela em Jaguaribara, os demais em Limoeiro do Norte e Alto Santo, cidades vizinhas.
Dentre as memórias mais fortes do processo de mudança, dois dias são mais marcantes para ela: o da exumação dos corpos (Delsa, tinha ao menos 5 parentes enterrados no local) no antigo cemitério e a demolição da igreja. “Eu fiquei dentro da igreja pregada com uma coluna e eles derrubando. Até fizeram fotos na época”, acrescenta.

Na nova cidade, Adelcina perdeu algumas relações de vizinhas e expressa que acha “tudo muito longe para andar”. “Aqui eu não conheço quase nada. A maior parte do povo que eu conhecia eu nem sei onde ficou. Vivo daqui para a igreja. Não tenho nada de outras ocupações”, relata.
Ela reforça que há uma diferença muito grande entre uma cidade e outra e admite que a nova, completamente planejada, tem seus atributos, mas reitera: “toda vida dizia que achava melhor lá do que aqui. Sei que tem uma diferença muito grande. Uma delas é que na Jaguaribara velha a gente fazia procissão, andava e conhecia todas as coisas. Conhecia todas as ruas. Aqui, até hoje não conheço. A via sacra é feita da igreja. É tudo diferente”.



Cidade grande
O novo município que abriga pouco mais de 10 mil habitantes, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mais recente, tem uma aparência de cidade grande, devido à proporção dos prédios.
“Todas as propostas que compunham o complexo Castanhão indicavam uma economia que iria ser mais próspera com a implantação dos projetos de irrigação, com as atração de indústria. Ela (a nova cidade) foi projetada com base nesses projetos complementares. Se esse projetos não foram implementados é outra coisa. Mas nós planejamos essa cidade primeiro para reassentar a população que tinha que ser removida, mas pensando no crescimento demográfico que seria induzido pelo desenvolvimento econômico”.
Profissionais que atuam no processo de planejamento e construção da nova cidade è época na Secretaria de Infraestrutura (Seinfra), os arquitetos Marcelo Colares e Luiza Marillac Cabral; e a socióloga Afonsina Braga Barbosa, apontam que a cidade tem essa características porque, segundo eles, a população reassentada reivindicou que os lotes fossem grandes.
“Acontece que as pessoas do interior uma das coisas que elas mais valorizam é possuir a terra. Então, foi por conta disso que a cidade se tornou maior. Eles pediram, brigaram e pediram lotes bem maiores do que eles tinham na cidade antiga”, relembra a socióloga Afonsina Braga Barbosa.
Além disso, explicam, a cidade foi projetada para que, se houvesse um grande crescimento, como era projetado à época, poderia abrir de forma planejada até 70 mil habitantes.
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Moradores organizaram a Casa da Memória
Para tentar manter essas e outras memórias vivas, ainda na cidade velha, os residentes, organizados na Associação de Moradores junto com o Instituto da Memória do Povo Cearense, em 1998, organizaram a Casa da Memória, um equipamento que guarda, dentre outros, objetos, imagens, matérias de jornais, livros, filmes, documentos de todo o processo de inundação e remoção da cidade. É um acervo vivo.
O patrimônio do equipamento é doado pelos próprios moradores. Portanto, esse acervo tem crescimento contínuo. Hoje, a Casa da Memória funciona na cidade nova em um imóvel localizado na Rua Tertuliano de Melo. Embora tenha nascido da organização popular, hoje é vinculado à Prefeitura de Jaguaribara. Mas, ainda não tem sede própria.
“O intuito foi preservar a memória do povo jaguaribarense e nós guardamos através de material catalogado pela própria população”, reitera a coordenadora do espaço, Eva Parente.
Dentre os bens, estão as placas das ruas da cidade antiga, números das casas, roupas, chapéus, televisores, rádios, oratórios, instrumentos musicais, além de um amplo rol de fotografias que retratam o cotidiano de anônimos na velha Jaguaribara e ações pré-mudança. Expressões dos costumes, dos hábitos, da aparência, de momentos históricos distintos, do dia a dia na cidade do interior que hoje vive submersa.
>> Serviço
Casa da Memória - Jaguaribara
Rua Tertuliano de Melo, Jaguaribara
Aberto para visitação: para agendar (88) 99726-6969