Quando tratamos os outros feito descartáveis e invisíveis, sacrificamos parte da dignidade de todos
Quanto mais você exclui e discrimina, mais assustado vive, com mais medo, pois não confia no laço social
As relações entre dinheiro, poder, sexualidade são entrelaçadas ao longo da história apresentando diferentes configurações nos jogos políticos e nas relações íntimas e públicas. Essa rede complexa e ampla envolve uma série de dispositivos e elementos que possuem discursos, atos e efeitos sobre todos e cada um, oferecendo no cenário social e subjetivo, lugares, posições e valores, norteando vínculos e exclusões.
A superficialidade das relações, a rapidez e a efemeridade da duração dos vínculos, a inconstância, a fugacidade dos afetos, a vulnerabilidade e a precarização da solidariedade e do cuidado apresentam consequências em cada um e todos.
Tendemos a dar valor aos que apresentam algum tipo de poder ou visibilidade nomeada por alguma conquista econômica, poder de sedução, lugar de influência e sucesso no jogo econômico do mercado.
Tendemos a achar que determinadas pessoas, pelo lugar que ocupam na cadeia produtiva ou de aparência de sucesso ou poder, são mais valiosas, devem ser merecedoras de admiração, respeito, consideração, atenção e cordialidade.
A essas pessoas são distribuídos passes livres para palavras, atitudes e recepções calorosas com portas abertas para transferência de fantasias de submissão, admiração e idolatria.
Para os que não se encontram nessa posição privilegiada de atenção, afeto, dignidade, respeito, consideração e legitimação para existir, ser querida e amada, sobra o olhar do desprezo e da exclusão, muitas vezes beirando à própria desqualificação da humanidade dessas pessoas.
Consideramos, no cotidiano, que algumas pessoas merecem nosso sorriso, nossa palavra, nosso olhar, nosso respeito, nosso amor, nossa cordialidade. Mas você já parou para pensar quem são e por que essas pessoas merecem isso? Aquele que eu digo que não é ninguém, o que acho que existe para me servir, aquele que não me interessa saber, por que essas pessoas ocupam esse lugar?
Por outro lado, como o desejo e a validação sobre mim e sobre os outros são atravessados por esses mecanismos que subjetivam o valor dos afetos? Infelizmente, a resposta óbvia de que é porque você as conhece, elas fazem parte da sua história, não é de todo verdade.
É maior a probabilidade de sermos receptivos e cordiais com determinadas categorias de pessoas, mesmo que desconhecidas e muitas vezes hostis e indiferentes a muitas outras, inclusive com pessoas que vemos todos os dias.
Frequentemente, ao nos considerarmos superiores aos outros ou ao elegermos os que são iguais a nós e merecedores de um lugar digno na mesa social, tendemos a despejar sobre os excluídos aquilo que na verdade também é nosso. Diante de uma exclusão, de uma rejeição ou inferiorização do outro, esquecemos que aquilo que rejeitamos ou excluímos faz parte de algo nosso que rejeitamos.
Assim, a classe social, o gênero, a raça, o valor do outro que diminuo me oferece ilusoriamente um lugar de distanciamento e superioridade, o que escamoteia minha própria fragilidade, vulnerabilidade a que enquanto ser humano estamos todos submetidos.
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Ao excluir o outro, por uma pretensa sensação de superioridade, na verdade revelo o quão frágil é minha segurança e o quão ameaçado está o meu lugar social, que precisa se sustentar na violência e na indiferença, para que não percebam que eu e os outros que discrimino somos parecidos.
Se sou eu a perpetrar a violência, posso tentar aparentar que não somos iguais, porque, ao poder excluir, tenho a ilusão do poder de que não serei o ameaçado, e sim o que ameaça.
Enquanto aquele que discrimina, abandona, manipula e humilha, não me percebo no outro, não me reconheço nas diferenças e me sinto ilusoriamente protegido da violência dos outros iguais a mim. Entretanto, a sensação de solidão, desconfiança e vulnerabilidade não cessam.
Quanto mais você exclui e discrimina, mais assustado vive, com mais medo, pois não confia no laço social e sabe que a qualquer momento o alvo da violência pode ser você, porque existe sempre um outro mais poderoso a quem você tenta se equiparar.
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Respeitar, cuidar, dar visibilidade aos que encontra pela cidade, tratar de forma justa e respeitosa os diferentes, aqueles que considera tão diferentes de você, cuidar dos que lhe respeitam, dos que lhe admiram, dos que lhe amam, dos que lhe tratam bem, dos que não têm lugar para serem ouvidos, é um passo fundamental para perceber o tamanho do que lhe habita, o imenso e amplo da diversidade humana que nos compõe e ser mais tolerante e sábio consigo e com o caminhar da vida.
Os que optam pela violência, pela humilhação, pelo desrespeito, pela manipulação, pela superficialidade dos vínculos, pela banalidade no convívio, pelo embrutecimento ficam muito sós dentro e fora de si, em um pedestal de vidro que não sustenta por muito tempo o peso da arrogância.
Quem você trata mal, quem você humilha, quem você desmerece, quem são os que você não vê, quem são os que você e rejeita? E o que eles possuem de você que lhe faz ignorar, temer ou rejeitar?
Quando não vemos, acolhemos, cuidamos uns dos outros, quando negligenciamos ao outro o lugar de dignidade do nosso respeito e consideração, diminuímos nossa existência e atacamos todo o projeto civilizatório, pois se o outro, humanamente igual a mim, pode ser alvo de desrespeito e inexistência, o que garante que um outro, em algum momento, não fará isso com você?
*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.