Preço de desodorante provocou confusão nas Lojas Americanas do Centro há 36 anos; entenda

A briga de uma dona de casa se transformou na fúria de uma multidão, que apedrejou as vidraças e tentou invadir a loja

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Portas do estabelecimento comercial foram quebradas e, as vidraças, apedrejadas
Foto: Everton Lemos/Diário do Nordeste

Preços diferentes em dois tubos de desodorante Pinho, de 90 ml, foram suficientes para quase promover um quebra-quebra nas Lojas Americanas do Centro de Fortaleza, no início de março de 1986, há quase 36 anos. A confusão foi um reflexo da política econômica adotada pelo Governo Federal, à época.

Após discussão entre uma cliente e o gerente da loja e a chegada de uma multidão raivosa, a Polícia Militar precisou intervir e o caso foi parar em uma delegacia da Polícia Federal. A situação foi recuperada pelo Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc).

Assista:

Tudo começou quando, em 11 de março daquele ano, a dona de casa Regina Melo Leandro, de 35 anos, encontrou dois desodorantes com os preços diferentes, na seção de perfumaria da loja, na Rua Barão do Rio Branco: um marcava CZ$ 4,80 e o outro CZ$ 5,40. 

Pouco tempo antes, em 28 de fevereiro, o governo do presidente José Sarney implantou o Plano Cruzado, numa tentativa de combater a inflação. Naquele período, o cruzado substituiu o cruzeiro como a nova moeda brasileira. 

Uma das medidas do Plano foi o congelamento de preços, tabelados pela Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços (Sunab).

Durante as compras, qualquer pessoa poderia atuar como fiscalizadora e verificar se o estabelecimento estava cumprindo a lei - à época, elas ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”. 

Por isso, dona Regina reclamou com uma vendedora, que chamou o gerente, Juvenal Eudes. Sem se entenderem, o bate-boca próximo à porta de entrada atraiu dezenas de pessoas que queriam saber o que estava acontecendo. 

Legenda: Multidão toma a Rua Barão do Rio Branco contra mudança de preço na loja
Foto: Everton Lemos/Diário do Nordeste

Um dos funcionários da loja tomou partido do gerente e chamou Dona Regina de “fedorenta”. Depois, chegou a agredi-la com um cacetete. Ainda segurando os produtos, ela foi ao telefone público, na calçada da loja, e chamou a Sunab. 

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Depredação da loja

Enquanto a mulher, o gerente e duas testemunhas eram levadas para depor na delegacia da Polícia Federal, a multidão foi crescendo perto do estabelecimento, que baixou as portas. Indignados com a história, a massa avançou e quebrou duas portas, além de apedrejar as vidraças.

Legenda: Agentes da Polícia Militar precisaram conter os ânimos dos manifestantes
Foto: Everton Lemos/Diário do Nordeste

A Polícia Militar demorou a chegar ao local pela grande movimentação da Barão do Rio Branco. A via ficou interditada entre 12h30 e 15h, e a multidão foi afastada do prédio. Apesar do protesto, ninguém ficou ferido e nem houve prisão.

Os manifestantes só se dispersaram depois que os policiais narraram, em megafones, que o gerente havia sido preso.

Contra a loja, foi aberto um auto de infração, pela Sunab, e um inquérito policial pela Polícia Federal. Dona Regina fez um exame de corpo delito e abriu processo por lesão corporal.

Preços congelados

O Plano Cruzado foi uma tentativa de desfazer a hiperinflação da época. Munidos das tabelas da Sunab, os “fiscais do Sarney” chegavam a dar voz de prisão a comerciantes que fraudavam o plano.

O órgão fiscalizador dos preços autuou 6 mil casas comerciais em 30 dias por violação do congelamento, de acordo com o Arquivo da Câmara dos Deputados. Contudo, a demanda era muito maior.

“A taxa de inflação anual de 1983 estava em torno de 200% ao ano. Isso quer dizer que um produto que, no início do ano, custava 1 cruzeiro, podia chegar a 3 no fim do ano, e 9 cruzeiros ou mais ao fim do próximo ano. Então, existia uma remarcação constante dos preços”, explica a economista e consultora empresarial Ana Alves, colunista do Diário do Nordeste.

Com a hiperinflação, os empresários percebiam a perda do valor dos bens e da moeda brasileira, promovendo uma corrida para o ajuste dos preços. “De manhã estava um preço, ao meio dia estava outro, e à noite já era outro”, lembra Ana.

Fracasso do Plano Cruzado

Apesar do sucesso nos meses iniciais, a economista complementa que o plano não durou muito: o congelamento dos preços estimulou o consumo, mas a “festa” de compras logo se tornou uma crise de abastecimento.

Isso porque, com preços congelados, os empresários, “teoricamente”, não tiveram condições de investir em maiores produções. O descontrole econômico ainda precisou atravessar os planos Cruzado 2, Bresser, Verão e Collor. Só em 1994, com o Plano Real, se conseguiu uma estabilização da inflação. 

“A economia, por não ser uma ciência exata, é bastante complexa. A inflação não pode ser 0, senão ocorre exatamente o que aconteceu: a economia vai aquecer demais e gerar um desequilíbrio econômico. Por isso, trabalhamos com metas de inflação”, finaliza Ana Alves.

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