O impacto da degradação e demolição do São Pedro para memória e patrimônio de Fortaleza

A ação de demolição do Edifício São Pedro começou na terça-feira (5) e deve durar 90 dias

Escrito por Gabriela Custódio , gabriela.custodio@svm.com.br
Profissional da Defesa Civil de Fortaleza de costas para a foto e de frente para o edifício São Pedro
Legenda: Até a semana passada, o Edifício São Pedro abrigava pelo menos 16 pessoas em situação de rua
Foto: Thiago Gadelha

Após 73 anos desde a inauguração e recente incerteza sobre seu futuro, o Edifício São Pedro — antigo Hotel Iracema Plaza — será demolido. Em quase duas décadas, o imóvel ganhou e perdeu tombamento provisório pela Prefeitura, foi declarado como bem de utilidade pública para fins de desapropriação e recebeu promessa de virar um equipamento cultural. Por fim, a estrutura vai desaparecer da orla de Fortaleza e permanecer apenas na memória coletiva.

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A demolição do primeiro edifício com mais de três pavimentos na Praia de Iracema teve início nessa terça-feira (5). Segundo a previsão do secretário municipal da Infraestrutura, Samuel Dias, ela deve ser concluída em até 90 dias. A ação havia sido anunciada na noite da segunda-feira (4) pelo prefeito José Sarto. Segundo o gestor, há "grande risco de desmoronamento". Até a semana passada, pelo menos 16 pessoas em situação de rua viviam no imóvel, que foi desocupado.

“É a gente perder mais um dos marcos simbólicos, paisagísticos, arquitetônicos da Cidade”, afirma o arquiteto e urbanista Marcelo Capasso, doutor em geografia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará nos temas de patrimônio cultural e planejamento urbano, sobre a demolição do São Pedro, que ele classifica como “um marco do fracasso da política de preservação em Fortaleza”.

“É um fracasso também nesse sentido de criar os mecanismos necessários objetivamente para colocar a preservação como uma pauta central para a gestão”, avalia o arquiteto. Ele explica que, ao longo dos anos, o proprietário deveria ter preservado o edifício e o poder público, por sua vez, deveria ter criado os meios para garantir essa preservação. De acordo com Capasso, diversos instrumentos de financiamento poderiam ter sido aplicados, como ocorre em outras cidades brasileiras. “Mas aqui essa questão não vai para frente”, afirma.

O arquiteto destaca, porém, que esse não é um problema apenas do Edifício São Pedro. Ele cita outros patrimônios de Fortaleza que passam por situação semelhante, como o Farol do Mucuripe, a Casa do Português e a Chácara Salubre, última chácara do período colonial na Cidade. “Seja de propriedade pública, seja de propriedade privada, estamos com esse problema de uma deterioração generalizada em várias edificações”, afirma. Segundo Capasso, o antigo hotel “teve a má sorte de estar em uma área de interesse imediato para desenvolvimento imobiliário”.

UMA NOVA RELAÇÃO COM A CIDADE

O geógrafo, Alexandre Queiroz, professor do Departamento de Geografia da UFC e integrante do Observatório das Metrópoles, aponta que o São Pedro representa um momento de expansão de Fortaleza. Foi com ele que a Cidade começou a ter uma nova relação com a praia. “Ele representou à época uma inovação”, afirma. Antes, tanto o lazer quanto a hospedagem estavam concentrados no centro histórico da Capital, mas o edifício marcou uma “reestruturação urbana”.

Presidente do departamento cearense do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-CE), Jefferson John também destaca o papel do imóvel, enquanto negócio, para mostrar para a Cidade o potencial da hotelaria fora do Centro. “A sua forma icônica (bela, feia, questionável, sim ou não, isso não tem relevância) está no imaginário dos cidadãos de Fortaleza, então há sim afetividade pela sua presença no skyline da cidade.” Ele defende a necessidade de uma revisão da política patrimonial de Fortaleza.

O risco que se corre é que isso vire rotina. Os proprietários de bens tombados não assumirem suas responsabilidades e deixarem por negligência as edificações chegarem em estado de completo arruinamento. Precisa-se urgentemente rever a política patrimonial da cidade, precisa-se de interesse e vontade política para uma real política de preservação do nosso patrimônio histórico.
Jefferson John
Presidente do departamento cearense do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-CE)

Da mesma forma, Eduardo Cabral, professor do Departamento de Engenharia Estrutural e Construção Civil da UFC e coordenador do Grupo de Pesquisa em Materiais de Construção e Estruturas (GPMATE), destaca que o São Pedro é um marco histórico na construção de Fortaleza. Para ele, o imóvel poderia ter sido melhor conservado tanto pelos proprietários quanto pelo poder público, mas isso não ocorreu e o prédio “foi extremamente degradado pelas intempéries”.

Nós mesmos da Universidade fizemos um laudo (em 2018) a pedido do proprietário e constatamos que os últimos pavimentos estão muito degradados. Tem árvores lá em cima, lajes já caídas que oferecem risco muito grande à população do entorno. Se tivesse sido feita uma boa manutenção, não chegaria a isso e o bem seria certamente revitalizado e seria mais uma atração para a nossa Cidade.
Eduardo Cabral
Professor do Departamento de Engenharia Estrutural e Construção Civil da UFC e coordenador do GPMATE

PRESERVAÇÃO: ACORDO SOCIAL

Toda cidade é um mix de construção e destruição, mas em algumas isso ocorre “mais facilmente”. E Fortaleza é uma delas, aponta o geógrafo Alexandre Queiroz. A capital cearense, para ele, tem uma ânsia por modernização que, às vezes, “pode vir a qualquer custo”. E, em relação ao mercado imobiliário, isso parece ser “mais latente”.

Porém, o professor afirma que a manutenção de imóveis importantes é sempre um tema nas sociedades e, para isso, é necessário haver um acordo social. Isso porque envolve custos e priorização. “Geralmente, no nosso País, quem assume esses custos, essa manutenção, é o Estado, seja municipal, federal ou estadual.” No caso do São Pedro, o geógrafo afirma que essa pactuação não ocorreu.

(Assim) como não se deu em muitos outros casos, em muitas outras mansões ou casarões que foram destruídos. Primeiro porque não se pactuou essa forma de manutenção, o estabelecimento de quem seria responsável por esses custos. E os proprietários vão na lógica de mercado, dos seus interesses, de manutenção do seu patrimônio, e transformação dele em novos negócios.
Alexandre Queiroz
Geógrafo, professor do Departamento de Geografia da UFC e integrante do Observatório das Metrópoles

A última reforma realizada no São Pedro data da década de 1980. Enquanto aguardava o desfecho anunciado pela Prefeitura de Fortaleza na última segunda-feira (4), o edifício estava abandonado. Para o geógrafo, a situação do imóvel e a decisão pela demolição fazem parte de uma “nova lógica” das construções à beira-mar, com a criação de superprédios nas regiões do Meireles, da Praia de Iracema e do Mucuripe.

“Não é só com o Edifício São Pedro, mas com outras tantas residências e até hotéis que estão sendo demolidos para o novo processo de incorporação imobiliária mais rentável, milionário, destinado ao luxo”, acrescenta.

O surgimento de superprédios também é citado pelo arquiteto Marcelo Capasso, para quem o abandono do São Pedro foi “estratégico”. Um dos pontos que viabilizam a construção desses arranha-céus é a outorga onerosa, mecanismo regulamentado pela Prefeitura. Por meio dele, por exemplo, construtores que querem alterar legalmente os parâmetros urbanísticos e construir acima da altura estipulada podem fazer uma solicitação e, se autorizados, pagar um valor à gestão municipal para a obra ser executada.

 “Isso é uma das coisas que, inclusive, inviabilizam, que pressionam para que nenhum tipo de construção, pelo menos nessa área mais valorizada da cidade, possa ser mantido”, afirma Capasso. O arquiteto relembra a demolição de outros hotéis na orla de Fortaleza, como o Ponta Mar. “Não estamos falando mais de casas de um, dois andares. Estamos demolindo edifícios de dez, doze andares na Cidade. Então, é outra escala de destruição que a gente já está vivenciando.”

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No geral, Alexandre Queiroz aponta que, apesar de haver “pequenos grupos” que defendem a preservação, a pactuação e a compreensão em toda a sociedade não se efetiva. “Então, me parece muito perigoso, em termos de constituição de uma sociedade amadurecida, que seleciona o que é importante, referência para a sua história coletiva e a sua memória coletiva, como isso tudo é feito sem esse debate, sem um avanço. (…) É uma sociedade que tende a ser permissiva com esse apagamento, e isso é muito ruim, porque você não amadurece os processos, inclusive turisticamente falando”, avalia.

HISTÓRICO DO EDIFÍCIO SÃO PEDRO

Inaugurado em 1951, o imóvel com estrutura semelhante à de um navio foi utilizado como hotel até a década de 1970 e, posteriormente, passou a ter uso residencial e comercial. No térreo, o Edifício São Pedro abrigou o Restaurante Panela, frequentado pela elite econômica da Cidade. A última reforma realizada no imóvel foi na década de 1980.

Ao todo, o imóvel tinha sete andares, cerca de 100 apartamentos de hospedagem, salões de convenções, café, barbearia e cerca de 40 apartamentos residenciais de mais de 200 metros quadrados.

Em 2006, o São Pedro foi tombado provisoriamente pela Prefeitura de Fortaleza, por meio de decreto. Seis anos mais tarde, um laudo técnico pericial da Prefeitura alertou para “risco crítico” estrutural. Dois anos depois, a Defesa Civil de Fortaleza condenou oficialmente a estrutura ao constatar “risco iminente de colapso”. Desde então, foi condenado por pelo menos dois outros órgãos, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE) e o Grupo de Pesquisa em Materiais de Construção e Estruturas (GPMATE), da UFC.

Após anos de espera, o tombamento definitivo foi indeferido por decisão assinada pelo prefeito Sarto Nogueira, em agosto de 2021. Para a Prefeitura, a manutenção da estrutura seria “inviável”. Em 2022, o Governo do Estado decretou a utilidade pública do local para fins de desapropriação. A ideia era recuperar o imóvel e transformá-lo em equipamento cultural. Porém, o Governo revogou o decreto em julho do ano passado, e o prédio voltou a ser de domínio da família Philomeno Gomes.

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