'Nunca vamos repor um sono perdido': especialista explica os impactos da privação de sono no corpo
Dormir pouco leva a uma série de efeitos negativos para o organismo e um dos desfechos possíveis é o adoecimento mental
Se algumas décadas atrás havia poucas opções de programas de televisão e outras atividades para ficar acordado até tarde da noite, atualmente há cada vez mais estímulos. Muitas vezes, são os dispositivos eletrônicos, como o smartphone, que nos deixam em alerta antes de dormir — seja para assistir a filmes e séries, conferir as atualizações nas redes sociais ou resolver questões pessoais e de trabalho —, atrapalhando o sono.
Basta uma busca na internet para dar início a um ciclo de expectativa pelos resultados e gratificação ao obtê-los. “Cada vez que faço uma pergunta, eu tenho uma resposta. Isso é satisfação para o cérebro que nem droga de abuso”, explica a biomédica Monica Levy Andersen, diretora de Ensino e Pesquisa do Instituto do Sono e professora do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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Com essa rotina, é cada vez mais comum as pessoas estarem privadas de sono, uma condição que leva a prejuízos em todo o corpo: de fadiga e problemas cardiovasculares a disfunções sexuais. O tema foi tratado por Andersen em entrevista coletiva concedida a jornalistas de diversos veículos de comunicação durante o congresso Cérebro, Comportamento e Emoções 2024, que ocorreu em junho no Rio de Janeiro.
A biomédica explica que o tempo ideal de sono varia para cada pessoa e, por isso, não é possível cravar um mínimo de horas para todos. “Para saber quantas horas de sono, você tem que acordar sem despertador. Ou seja, acordar com sono acabado. Mas há quanto tempo a gente não faz isso por cinco dias seguidos?”, afirma. Mas uma coisa é certa: dormir menos do que o necessário leva a diversos danos para o organismo.
Você vai quebrar mais fibra de colágeno, vai ter mais problemas de pele — o maior órgão do corpo humano —, mais caspa, mais afta, mais cândida, mais dor, mais irritabilidade, mais ansiedade — que faz você dormir menos, e menos sono faz você ter mais ansiedade —, compulsão alimentar.
Com esse efeito cascata, pode haver diversos desfechos negativos, como adoecimento mental. “Há pessoas que não têm depressão com privação de sono, mas tem diabetes, arritmia, hipertensão”, complementa.
Outro tema abordado foi o “jet lag social”, o desalinhamento que ocorre quando alguém dorme pouco de segunda a sexta e tenta repor o sono aos fins de semana. O ideal, de acordo com ela, é que esse desequilíbrio não exista. Porém, caso tenha que ocorrer, ela aponta que os impactos da privação de sono são maiores em quem dorme pouco ao longo dos sete dias. Mas alerta: “nunca vamos repor um sono perdido.”
Andersen cita uma pesquisa que, hoje, não poderia ser replicada por questões éticas. Em 1964, Randy Gardner, de 17 anos, quis entrar para o Guiness Book por quebrar o recorde de mais tempo sem dormir. Acompanhado por William Dement — o “pai da medicina do sono” —, o jovem ficou acordado por 264 horas seguidas (o equivalente a 11 dias e 25 minutos).
A biomédica aponta que Gardner dormiu quase 15 horas seguidas no fim do experimento, sem “pagar” o débito de mais de 11 dias sem dormir. “(Se) eu preciso de oito (horas de sono), mas durmo seis, fico devendo duas horas por noite. Em cinco dias da semana, estou falando de dez horas de débito. Multiplica por 52 semanas, e você cria um débito que você nunca mais vai pagar”, exemplifica.
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA
A apneia obstrutiva do sono é um distúrbio em que a pessoa tem interrupções breves e repetidas da respiração durante o sono. Ela está relacionada ao ronco e é causada por um estreitamento de via aérea superior. Andersen classifica a doença como uma questão de saúde pública e destaca que o desfecho clínico mais acentuado é o cardiovascular.
“Cada vez que eu entro em uma pausa respiratória, meu cérebro entende que eu estou em uma situação de hipóxia, com pouco oxigênio. O coração faz o bombeamento, chega oxigênio e, ufa, o coração vai poder descansar. No minuto seguinte, outra pausa. O coração não aguenta”, explica.
Alguns fatores de risco para a apneia são: sexo masculino, idade (é menos comum em jovens) e ganho de peso. Nas mulheres, o risco aumenta após a menopausa. Até o momento, o tratamento padrão ouro é o CPAP, uma máscara que força a pressão positiva e mantém o fluxo de respiração constante.
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Mas uma novidade citada pela biomédica são os tratamentos farmacológicos para a doença que estão sendo estudados por duas empresas norte-americanas. As pesquisas ainda são iniciais e podem “não dar em nada”. Porém, caso obtenham êxito, “vai ser algo revolucionário”, por mudar a forma de tratar os pacientes.
“A dificuldade do CPAP é a aderência. Não tem um efeito cumulativo, você vai precisar de eletricidade e vai dormir com uma máscara que você pode adaptar, mas é para o resto da vida. Essa aderência é muito baixa. Então, a farmacologia da apneia veio revolucionar. Se eu te falo ‘toma um comprimido à noite’, é muito mais fácil de o paciente aceitar. Logicamente, a gente não sabe se a medicação vai promover o mesmo efeito de uma máscara que força a pressão positiva”, explica.
DICAS PARA HIGIENE DO SONO
Há um conjunto de práticas que, se adotadas antes de dormir, podem ajudar a facilitar a chegada do sono e melhorar a qualidade dele. É a chamada higiene do sono. Dependendo da realidade de cada pessoa, talvez nem todas as “regras” sejam viáveis para a rotina, mas, no geral, quanto mais recomendações forem incorporadas, mais benefício são proporcionados. As principais orientações do Instituto do Sono são:
- Ter horários bem definidos para dormir e acordar, que devem ser seguidos mesmo em feriados e aos fins de semana;
- Não consumir bebidas estimulantes — como cafeína, chocolate, bebidas alcoólicas, chá-preto, chá-verde e refrigerantes — pelo menos seis horas antes de dormir;
- Não comer alimentos muito pesados no jantar e evitar estimulantes como açúcares ou comidas picantes;
- Praticar exercícios físicos com regularidade, respeitando uma janela de pelo menos quatro horas antes do horário de ir dormir;
- Ficar longe de telas — como celulares, televisão e tablets — na cama pelo menos uma hora antes de dormir;
- Evitar cochilos durante o dia. Se não for possível, impedir que eles se estendam por mais de 45 minutos ou que aconteçam ao final do dia;
- Manter o quarto escuro, com luz indireta e diminuta;
- Controlar a temperatura do quarto, dando preferência por aquelas mais amenas;
- Usar pijamas confortáveis e adequados para o clima;
- Manter o ambiente silencioso e tranquilo;
- Não usar a cama ou o dormitório para outras atividades não relacionadas ao dormir, como trabalhar ou estudar.
* A repórter viajou a convite do evento