Famílias denunciam falhas na inclusão de crianças com deficiência em escolas públicas de Fortaleza
Falta de profissionais de apoio e de planos individualizados de ensino estão entre reclamações.
O direito de crianças e adolescentes com deficiência a uma educação plena é constitucional, mas foi reforçado nessa terça-feira (21) com a instituição, por decreto, da Política e da Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva. Na prática, porém, famílias de Fortaleza enfrentam obstáculos históricos para esse acesso em escolas da rede municipal.
O número insuficiente de profissionais de apoio escolar e de assistentes de inclusão, além da falta do Plano Educacional Individualizado (PEI) e das barreiras físicas de acessibilidade, constam entre denúncias apontadas por famílias, entidades civis e por órgãos de fiscalização, como o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).
Em agosto deste ano, a Prefeitura de Fortaleza chegou a receber uma multa de R$ 150 mil, determinada pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), por descumprir uma sentença que obriga a garantia de profissionais de apoio na rede municipal, fruto de Ação Civil Pública (ACP) movida pelo MPCE em 2022.
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A dona de casa Sandy Lena, 44, vê essas deficiências da rede de educação tornarem inviável o desenvolvimento do filho, Raul Vitor, 11. Autista, ele cursa a 5ª série na Escola Municipal de Ensino Fundamental Monteiro de Moraes, no bairro Sapiranga, em Fortaleza – onde ela mesma precisa permanecer para dar suporte ao filho.
Sandy relata que chega à escola com Raul quando os demais alunos já estão nas salas de aula, após o horário do acolhimento. “Eu fico lá dentro com ele, levo uma apostila que comprei e fico ensinando. Só que ele fica querendo correr na sala, e tenho que me levantar para ele não atrapalhar e levo para o pátio”, detalha.
Sem suporte da escola nesses momentos, a dona de casa afirma que prefere levar o garoto para casa. Devido ao incômodo que sente, não é possível para Raul passar o dia inteiro na instituição. Na sala de aula em si, ele só permanece por cerca de 40 minutos.
assistentes de inclusão acompanhavam os estudantes com deficiência e autismo na rede municipal, até fevereiro deste ano. A Prefeitura estimava chegar a 1.759. Além deles, há ainda os profissionais de apoio escolar.
Raul estuda na rede municipal desde o Infantil 5, e teve as dificuldades acentuadas pela pandemia. “Atrapalhou todo o desenvolvimento do meu filho. Cheguei a contratar uma psicopedagoga, mas só aguentei pagar por três meses, porque não tinha condições”, relata.
Agora, Sandy tenta retomar a rotina do filho, mas tem dificuldades devido ao transtorno do sono que ele sofre, “trocando o dia pela noite”. Essa questão, somada à falta de acompanhamento e acolhimento na escola, torna o processo educacional do garoto ainda mais difícil.
Já fui surpreendida por profissionais da escola perguntando por que eu não tinha avisado que ele ia para o colégio. Quer dizer, a escola é pública, mas toda vida quando o meu filho vai, tem que avisar. ‘Olha, o Raul Vitor tá indo para o colégio, viu? Se prepare psicologicamente, porque ele tá chegando’
Segundo a dona de casa, os profissionais que acompanham as crianças na escola não são capacitados para a função. “Elas não têm nem a faculdade especializada na ABA, no comportamento das crianças”, diz.
“Lá tem crianças que choram do começo até quase o fim da aula, dentro das salas apertadas com mais ou menos oito alunos. E não demora muito, o colégio já liga para a mãe ir buscar, justamente porque as pessoas de lá não são capacitadas para lidar com as crises da criança com autismo”, relata Sandy.
Além disso, ela também reclama da infraestrutura precária do local. “A sala de aula é sucateada, as cadeiras não são boas, não tem ventilação e só algumas têm ar-condicionado”, afirma.
Como funciona a rede
A rede municipal de ensino de Fortaleza tem, hoje, pouco mais de 28 mil estudantes com deficiência matriculados. Só entre o início do ano e este mês, houve um incremento de 8 mil matrículas, de acordo com Mônica Costa, coordenadora de Diversidade e Inclusão da Secretaria Municipal de Educação (SME).
Embora, segundo ela, apenas cerca de 10% dos alunos tenham necessidade de profissionais de apoio ou assistentes de inclusão, esse aumento “exponencial” e constante da demanda – inclusive ao longo do ano, já que as matrículas não cessam – é um dos principais desafios para garantir o atendimento adequado a todos.
alunos da rede municipal têm alguma deficiência. Por outro lado, as escolas têm 2.200 assistentes de inclusão e 715 profissionais de apoio contratados.
“Não é a deficiência que define (a presença do profissional de suporte), mas necessidade do estudante, seja na alimentação, na higiene, na locomoção. À medida que as Células de Educação Inclusiva, a partir da matrícula, identificam a necessidade, nos repassam e a SME faz o processo de seleção e contratação de forma sistemática”, explica.
A contratação dos profissionais de apoio, com vínculo CLT, é feita em processo seletivo pela SME. Já os assistentes de inclusão são escolhidos pelas próprias escolas, com seleção feita pelo professor de Atendimento Educacional Especializado (AEE), válida por dois anos.
A coordenadora assegura que todas as escolas municipais de Fortaleza têm professores de AEE, que acompanham os estudantes PCD com atividades especializadas no contraturno das aulas regulares. “É um suporte a mais pra favorecer o desenvolvimento”, reforça Mônica.
Esses profissionais, que somam 460 contratados hoje, são responsáveis pela elaboração do Plano Educacional Individualizado (PEI). De acordo com a gestora, todos os estudantes têm esse plano, “que rege todo o acompanhamento do aluno”.
Além da adaptação pedagógica, Mônica ressalta que a gestão “tem ampliado o olhar para a necessidade de acessibilidade, seja arquitetônica, seja comunicacional, para que o ambiente também seja inclusivo”. Ela informa que as novas escolas entregues já seguem o padrão adequado, e que os prédios mais antigos têm passado por requalificação.
Profissionais de apoio
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e o recente decreto federal registram o direito de alunos com deficiência à presença do profissional de apoio escolar, “que exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária, em todos os níveis e modalidades de ensino”.
A LBI determina ainda que esse profissional “deverá ter formação inicial de, no mínimo, nível médio, e formação profissional específica com carga horária mínima de 80 horas”. Na prática, porém, a função é exercida por assistentes “sem preparo”, segundo as famílias.
“Os profissionais de apoio não podem ser substituídos por outros, seja a nomenclatura que for, nas funções que a legislação lhes determina, inclusive no que concerne à sua formação”, reforça Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDDPD) da OAB Ceará.
Emerson observa que “a LBI ainda fala no atendente pessoal e no acompanhante, os quais não se confundem com os profissionais de apoio escolar”.
Para o presidente da CDDPD, o acesso a esse acompanhamento é indispensável para garantir o direito à educação para meninos e meninas com deficiências, uma vez que “as escolas não podem ter barreiras, sejam físicas, atitudinais, pedagógicas, de comunicação ou tecnológicas”.
“As acessibilidades necessárias e adaptações razoáveis têm que ser garantidas. Estão aí incluídos profissionais de apoio, tecnologias assistivas, oferta de atendimento educacional especializado, e também um plano educacional individualizado”, pontua Emerson.
Essa lista, contudo, se restringe ao papel, como lamenta Daniela Botelho, presidente da Associação Fortaleza Azul (FAZ), que acolhe famílias de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outros de neurodesenvolvimento.
“Essas crianças não precisam de uma babá, precisam de uma pessoa preparada para fazer com que eles aprendam dentro das suas potencialidades. Eu não posso querer que as crianças sejam iguais a todos os outros alunos, mas que elas tenham condição de aprender no seu tempo, do seu jeito. Para isso, necessita de um profissional especializado, que não existe”, denuncia.
Daniela, mãe atípica, afirma que a demanda por um acompanhamento regular das crianças atípicas é constante, principalmente para meninos e meninas autistas de níveis 2 e 3 de suporte.
“Chega muito para a gente casos de crianças que vão para a escola, mas chegando lá não tem quem fique com elas, porque a cuidador não foi, ou casos de que tem uma cuidadora para três ou quatro crianças ao mesmo tempo”, afirma.
“Se uma pessoa não tem esse preparo, ela pode até ter a boa vontade para brincar e levar no banheiro, mas para fazer com que esse aluno desenvolva a parte pedagógica, que é o propósito da escola, eles [os cuidadores] não sabem”, reflete Daniela.
Em relação ao Plano Educacional Individualizado (PEI), Daniela explica que é um documento fundamental para que as crianças atípicas possam aprender conforme o currículo escolar, mas de acordo com suas especificidades.
“Se a sala está estudando sobre os animais aquáticos e aquele aluno não saber ler e escrever ainda, tem que ter uma atividade adaptada para ele. Pode ser um desenho, uma tarefa de ligar, de cobrir, de pontinho, mas trabalhando os animais aquáticos”, detalha.
Demanda histórica
O número insuficiente de profissionais de apoio escolar é reconhecido pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) como uma demanda de décadas, segundo frisa o promotor de Justiça Elnatan de Oliveira, titular da 11ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.
A decisão judicial acatando a ACP do MP, em 2022, não fixou um número de profissionais de apoio a serem contratados, como explica Elnatan, uma vez que “a demanda é diária”. O que a determinação traz é a obrigação de criação desses cargos acompanhando a necessidade – o que não acontece.
Segundo o promotor, além das ações coletivas, a Promotoria de Educação recebe solicitações individuais com frequência. “As mães nos procuram, a gente abre o procedimento administrativo e chama a Prefeitura para resolver”, destaca. Grande parte dos pedidos é resolvida sem necessidade de judicialização.
“Foi criado o assistente de inclusão, que é entre aspas o auxiliar do profissional de apoio. Mas é uma demanda que surge diariamente. O que resolveria é a criação de uma política pública via Executivo municipal, que se trate isso como algo prioritário e inegociável”
Esses assistentes são contratados, de forma voluntária, via edital da Prefeitura. Conforme o documento publicado neste ano, o objetivo dos profissionais é "assegurar as condições para pleno acesso e participação dos estudantes com deficiência nas diversas atividades desenvolvidas no contexto escolar".
Podem participar professores com pós-graduação em educação ou em outras áreas; professores com licenciatura; estudantes de licenciatura; estudantes do ensino superior; educadores com ensino médio na modalidade normal; e educadores com ensino médio.
Os assistentes que trabalham em um único turno letivo recebem R$ 525 mensais, enquanto aqueles que exercem atividades em dois turnos recebem R$ 1.050. Esses valores são considerados uma ajuda financeira para cobertura de despesas com transporte e alimentação.
Para a dona de casa Rosélia Castro, 39, esses profissionais são "tampa buraco" da Prefeitura para as crianças atípicas. "Na realidade, a gente precisa é de um assistente terapêutico para acompanhar nossos filhos", afirma.
Ela é mãe de Luna Cecília, de 8 anos, uma criança autista com epilepsia, matriculada no 3º ano na Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental (EMEIF) José Moreira Leitão, no bairro Ancuri.
Apesar do acompanhamento por um cuidador em sala de aula, a dona de casa afirma que não existe um processo escolar adequado com a filha. "Se eu disser que minha filha foi 20 vezes para a escola esse ano, ela foi muito, porque [o acompanhamento dela] é negligenciado", diz.
"Por estarem sobrecarregados, os professores não têm aquela empatia ou preparo de ensinar uma criança no nível de suporte da minha filha. O cuidador tem que fazer o trabalho dele de acompanhar a criança até um banheiro ou andar com ela pela escola, mas isso não é inclusão", afirma.
Outras três crianças da turma de Luna também precisam de cuidados especiais – e têm apenas um cuidador, que Rosélia conquistou por vias judiciais para a filha. "Muitas vezes, esse cuidador é um profissional de apoio que não tem preparo, é uma pessoa que termina o Ensino Médio, mas que não sabe lidar com crianças atípicas", contextualiza.
Emerson Damasceno, da OAB, afirma que a legislação sobre isso é clara e já existe – mas falta ser cumprida. “O principal problema ainda é o fato de que muitas escolas não querem cumprir a lei, direito constitucional de alunas e alunos com deficiência, não lhes garantindo o que não é favor algum, mas direito”, reforça.
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O advogado aponta que, “embora venha ocorrendo uma evolução, ainda há demanda por vagas, além de recusa ou falta de profissionais de apoio, como também ausência de acessibilidades e adaptações razoáveis a fim de garantir a inclusão escolar”.
Para Emerson, a principal solução do problema histórico é uma só: “cumprir a lei”. “Já há legislação suficiente. Além disso, muita fiscalização, formalização de denúncias. O Judiciário está atuante também e já há diversos julgados, quando o direito constitucional de alunas e alunos com deficiência não é observado”, situa.
“Mas além disso tudo, é lembrar o óbvio à toda sociedade, aí incluídas as gestões públicas e privadas: estudantes com deficiência não precisam de favor algum, mas sim que o seu direito constitucional seja cumprido. Nossa sociedade só irá ganhar com isso.”
“Ganham alunos com deficiência e também sem deficiência, que desde a infância irão aprender sobre a riqueza de nossa diversidade. E ganha a sociedade como um todo ao incluir milhões de brasileiras e brasileiros que irão, sem barreiras, nos guiar para dias melhores e a uma realidade mais inclusiva e menos capacitista.”
Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado, reforça: “não é simplesmente garantir uma vaga e um profissional sem formação, mas garantir que a criança aprenda e tenha suas necessidades atendidas”.
Entre as principais demandas nesse âmbito que chegam ao núcleo, que atende famílias em situação de vulnerabilidade, está justamente a solicitação da presença de profissionais de apoio ou assistentes de inclusão, “que vão intermediar o conhecimento, assegurar as tarefas adaptadas, a produção de conteúdo”.
Outra questão grave, aponta a defensora, é a ausência do PEI. “Temos uma psicopedagoga, e ao receber essas demandas ela faz o atendimento da criança, dos familiares, e muitas vezes vai às escolas. O que observamos é que muitas vezes sequer existe o plano individualizado”, lamenta.