O abandono e a falta de cuidados em saúde mental podem nos levar aos leões

Como aceitar que o que deveria ser realização de sonho se transforma em tragédia?

Escrito por
Alessandra Silva Xavier producaodiario@svm.com.br
Legenda: É preciso pensar em programas e projetos que se comprometam em melhorar a saúde mental dos jovens.
Foto: Pexels

Há uma semana um adolescente morreu após escalar um muro de seis metros e entrar na jaula de uma leoa, que reagiu por instinto e o atacou. Gerson de Melo Machado, tinha somente 19 anos, mas um longo histórico de abandono. Desde os 10 anos era acompanhado pelo conselho tutelar após ter fugido de um abrigo e ser encontrado vagando em uma rodovia; a mãe tinha esquizofrenia e ele foi o único dos cinco irmãos que não fora adotado.

Diagnosticado com esquizofrenia e deficiência mental,  ao longo da vida transitou entre equipamentos de saúde mental, entretanto sem constituir rede de apoio. Continuou vagando de certa forma, pela rodovia ao longo de toda a vida. 

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O sonho de ir para a África cuidar de leões fez com que fosse detido uma vez no aeroporto. O menino abandonado desejava cuidar, desejava voar, desejava ter a chance de viver. Como sobreviver a uma sequência de abandonos e de negligência? Como sobreviver à violência do desamparo institucional?

Como negligenciar que a falta de apoio do poder público e de políticas robustas e verbas em saúde mental matam? Quantos adolescentes caminham invisíveis em dores e sofrimentos pela cidade? Quem acolhe os que não puderam ser  acolhidos pelo ambiente familiar? Como falhas graves afetam a possibilidade de construir um ser humano que possa ser e ir para o mundo?

Como aceitar que o que deveria ser realização de sonho, possibilidade de esperança e trabalho, se transforma em tragédia? A doença mental obscurece a capacidade de pensar com visibilidade, de ler o perigo, de lidar com a realidade. Sozinho, sem apoio, sem suporte, sem amparo, a dor pode direcionar para o perigo. Ser separado dos irmãos, ter passado por violências inomináveis inscreve uma trajetória onde o perigo e a morte podem ser mais conhecidas do que o cuidado e o amor.

Como não chorar por ele? A leoa agiu por instinto, e nós que somos movidos por pulsões e desejo, seres de cultura, o que temos desejado enquanto sociedade para os adolescentes que vivem aqui? Será que garantimos espaços seguros, confiáveis, onde seja possível amar, existir, brincar, sonhar, construir um projeto de vida ou as trilhas que oferecemos levam aos leões?

Mulher de vestido branco agachada à beira da água, tocando a superfície com a ponta dos dedos sob um céu de pôr do sol.
Legenda: Quantos adolescentes caminham invisíveis em dores e sofrimentos pela cidade? Quem acolhe os que não puderam ser acolhidos pelo ambiente familiar?
Foto: Pexels

Uma semana após o ocorrido em João Pessoa, um adolescente esfaqueia outro em um banheiro de uma escola particular em Fortaleza. No espaço que deveria ser promotor de vida, sonhos, capacidade de encontrar alternativas para os problemas e para a dor, que institui um marco civilizatório na formação do humano, onde o conhecimento, a capacidade de diálogo, de pensar, de construção ética, de formação de vínculos, de empatia, de possibilidade de transformar violência em debate e alternativas diante do medonho que nos habita, escancara-se uma ferida que nos questiona e incomoda: como a educação cuida da formação humana?

Como os projetos pedagógicos englobam programas interdisciplinares, transversais em saúde mental? Quais os princípios que regem os marcos educacionais e civilizatório? Estamos preparando adolescentes para a vida ou para a morte? Como estamos ajudando adolescentes a desenvolverem recursos psíquicos para lidar com dores, frustrações, perdas e se protegerem da impulsividade?

Em que medida o contexto social contemporâneo de violência, indiferença, dificuldade em lidar com a diversidade, de declínio dos processos simbólicos, de negação da alteridade, de identidades narcísicas tem se entrincheirado nas identidades adolescentes?

Como família e escola têm construído pontes de diálogo? Quais as falhas das articulações intersetoriais na prevenção à violência e nos cuidados em saúde mental e como as questões interseccionais estão inseridas no contexto educativo? Como anda a saúde mental da comunidade escolar e qual o suporte às Comissões de Prevenção à Violência nas escolas?

Por que é tão difícil perceber e oferecer ajuda a adolescentes em sofrimento? Por que é tão difícil entender que adolescência precisa de suporte, atenção, cuidado, proteção, limites para contornar o avassalador das violências internas e externas? Como lidar com a tragédia, o trauma e qual o papel da educação diante da dor? Como ajudar adolescentes a perceberem o outro desconhecido como igual, não como coisa que pode ser eliminada?

Quando a violência vira o canal de expressão e denúncia dos sofrimentos, seja voltando-se contra si ou contra os outros; quando a saúde mental é negligenciada, percebemos que estamos perdendo muito enquanto sociedade. Estamos perdendo aquilo que deveria ser o mais valioso e fundamental, mais importante que notas, que sucesso material: a capacidade de fortalecer vínculos, de sustentar subjetividade que possuam esperanças em projetos de vida.   

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.