Seja gentil consigo
Ser gentil consigo é um ato de permissão para falhar, para não atender a expectativas, para ser humano.
A gentileza é um ato político, estético, psíquico. Representa a capacidade da gratidão e do reconhecimento do outro. Reconhecer o outro, a dignidade da existência do outro, poder receber o bom do outro dentro de si e se considerar capaz de oferecer o melhor de si ao outro envolve re-existências multifacetadas.
O contexto de consumo contemporâneo sobrevive às custas de insatisfação contínua relacionada à oferta de algum produto que promete sanar o mal-estar, alimentando um ciclo infindável onde o sujeito não é confrontado com a falta que funda o desejo e constitui a subjetividade, e sim, com a busca infindável de uma promessa de felicidade, uma falta que nutre vazios e a fuga do pensar.
Assim, irritados, impacientes, acelerados, os sujeitos vão em busca de uma produtividade e de objetos que possam satisfazer a ilusão da felicidade contínua, sem se darem conta de que o aumento da incapacidade de lidar com a tristeza e o sofrimento, lhes retira do conforto consigo.
Veja também
Diante de metas impossíveis, pois sustentadas por ilusões de onipotência, força, perfeição e aspectos narcísicos, o sujeito se depara com um modo raivoso contínuo, embrutecido, agressivo e em busca de excitações constantes e experiências de êxito e sucesso para fugir do que seria a vida cotidiana.
Frequentemente, esse modo de agir provoca uma sensação contínua de desgaste com o próprio convívio, principalmente quando esse não atende às idealizações. Neste funcionamento, não somente o outro passa a ser atacado nas suas falhas e imperfeições, mas o próprio sujeito.
Neste formato, gentileza vira moeda rara e por vezes, desconhecida. Ser gentil consigo é um ato de permissão para falhar, para não atender a expectativas, para ser humano.
Ser gentil consigo é reconhecer a própria ignorância e valorizar quando é possível ser sábio. Ser gentil consigo é poder ver o sagrado que lhe habita e fazer as pazes com o profano. Ser gentil consigo é aceitar o que muda, e permitir ter tantas peles quanto couber na vida. Ser gentil consigo é fazer da vida uma arte, revestindo feridas com poesia e esperança.
Ser gentil consigo é confiar que é possível ser amado apesar do desejo de destruir a si. Ser gentil consigo é aceitar o perdão dos outros e de si. Ser gentil consigo é poder receber os milagres cotidianos do recomeçar. Ser gentil consigo é poder oferecer, percebendo a dádiva do ter para dar.
Ser gentil consigo é poder ir, sem necessariamente saber onde chegar. Ser gentil consigo é romper máscaras, rótulos, estigmas. Ser gentil consigo é poder chorar as dores acumuladas que não sabiam desaguar. Ser gentil consigo é saber que o perdido não anula o reencontro.
Ser gentil consigo é poder parar quando o mover é excesso. Ser gentil consigo é respeitar o tempo nos manuscritos do corpo. Ser gentil consigo é aprender a presentear a alma com o imaterial. Ser gentil consigo é reconhecer que natureza e cultura navegam e se entrelaçam em nós.
Ser gentil consigo é saber que o melhor pode não vir, mas que a gente pode esperar, mesmo que nos enganemos. Ser gentil consigo é permitir o equívoco sobre os outros, sobre nós. Ser gentil consigo é refutar as certezas que paralisam.
Ser gentil consigo é reconhecer a potência do não. Ser gentil consigo é acolher as próprias bobeiras. Ser gentil consigo é tecer o manto das memórias protetivas para se cobrir nos dias difíceis. Ser gentil consigo é permitir o colo da amizade. Ser gentil consigo é reconhecer a vulnerabilidade.
Ser gentil consigo é reconhecer o adoecer. Ser gentil consigo é apaziguar com a finitude. Ser gentil consigo é diferenciar o possível, o idealizado e o sofrimento entre ambos. Ser gentil consigo é poder falar sobre o quê e para quem precisa ser dito. Ser gentil consigo é reconhecer os privilégios.
Ser gentil consigo é reconhecer as injustiças, as opressões, as desigualdades. Ser gentil consigo é entender que as moedas raciais e de gênero possuem valores sociais diferentes e que isso não é culpa sua, mas que a gentileza consigo impõe que estabeleça um câmbio justo e com dignidade ao seu valor.
Ser gentil consigo é positivar o que me fará bem. Ser gentil consigo é denunciar as falas sobre si que não traduzem sua verdade. Ser gentil consigo é mergulhar nos abismos do reinventar-se. Ser gentil consigo é aprender sem pressa. Ser gentil consigo é ter a fala mansa diante dos demônios internos.
Ser gentil consigo é não alimentar o que lhe maltrata. Ser gentil consigo é não cumprir prazos quando isso colocar em risco a sua ética. Ser gentil consigo é respeitar o que a alma e o corpo conversam. Ser gentil consigo é reconhecer o brincar e o sonho como lugar de saúde. Ser gentil consigo é não ser refém do desejo do outro.
Ser gentil consigo é olhar para dentro quando o violento quer lhe retirar de si. Ser gentil consigo é cachecol diante do vento frio de gritos, ofensas e humilhações. Ser gentil consigo é desmontar certezas sobre si. Ser gentil consigo é semear esperança para colher nos dias áridos de cuidados.
Ser gentil consigo é permitir quebra de roteiros e paradigmas que alimentam ciclos de dor e adoecimento Ser gentil consigo é procurar cuidados. Ser gentil consigo é investir no imaterial e saber que recursos não se restringem ao financeiro.
Ser gentil consigo é tomar posse dos diversos caminhos da própria história e conseguir contemplar o percurso com amorosidade. Ser gentil consigo é permitir a autonomia das escolhas. Ser gentil consigo é pedir ajuda. Ser gentil consigo abre portas, cria pontes para desembrutecer a vida.
Ser gentil consigo permite amar. Ser gentil consigo estende braços e mãos à gentileza com o outro.
E você, qual a dimensão de sua gentileza consigo?
*Este texto reflete exclusivamente a opinião da autora.