Quando a mulher perde o direito sobre o seu corpo, como é possível sustentar a alma?
Os direitos das mulheres foram conquistas árduas e negligenciadas. Quando Olympe de Gouge, durante a Revolução Francesa, propõe a Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã, e se opõe ao patriarcado, ela é guilhotinada, o que já questiona que talvez Igualdade, Liberdade e Fraternidade não seriam para todos.
No Brasil, somente em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, lei de autoria da primeira Deputada Federal do País, Carlota Pereira de Queiroz, torna-se permitido que mulheres trabalhem, viajem, ampliem direitos civis, sem a necessidade de autorização do marido, e somente com a Constituição Federal de 1988, garante-se igualdade no campo do direito entre homens e mulheres.
A lei é ferramenta poderosa nos processos civilizatórios, pois organiza desejos e protege cidadãos diante das relações de opressões e injustiças. Entretanto, quando sobre o corpo das mulheres incidem discursos de posse, controle e disciplinamento que revelam o desconforto, o incômodo e o medo diante da sexualidade e do feminino e a lei não se coloca para garantir a proteção diante do básico, que é a posse do próprio corpo, dispensam-se os argumentos científicos, os direitos humanos e legitima-se que a mulher não pode decidir sobre seu desejo.
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Assim, torna-se possível aprovar leis que restringem o direito ao aborto legal, impondo aos corpos das mulheres a aceitação da violência e do cinismo da brutalidade dos homens, para que sejam elas as responsáveis por suas próprias dores.
Os discursos jurídicos, sanitários, religiosos, morais sobre o corpo feminino revelam como o patriarcado é estrutural nas sociedades, organizando e sustentando suas relações de poder a partir da ideia de supremacia do gênero masculino, necessidade de controle sobre o corpo feminino e sua capacidade reprodutiva, para garantir a ordem social, o sistema de heranças e acordos políticos, a gestão econômica e simbólica das relações.
Assim, se a mulher estiver no lugar do cuidado, da submissão, da maternidade, que não contesta e que se satisfaz em realizar os desejos dos outros, se não expressar seus desejos e sexualidade, merecerá respeito e proteção.
Entretanto, se confrontar, se manifestar desacordo ao lugar que lhe é imposto, se desafiar, se disputar relações de poder, se não se oferecer à sombra, ao silêncio, sofrerá castigos e violências, muitas vezes legitimada pelo "aspecto educativo" do gesto, e apoiada por uma sociedade que legitima desigualdades, misoginia, intolerância, racismo e relações de poder baseadas na opressão e dominação.
Diante dessa lógica, o estupro, o assédio, a violência, são naturalizadas e o lugar da vítima eclipsada pela necessidade de proteger os mesmos valores que colocam as mulheres em local de objeto a satisfazer os desejos de homens os quais não precisam se preocupar com as consequências; pois toda a responsabilidade da violência a que forem submetidas recairá sobre elas mesmas.
Assim, o cenário conservador se alia ao campo político, norteado por uma pauta moral onde o corpo e o comportamento das mulheres possui eixo central de disputa. O domínio da sexualidade feminina passa a expressar sob o discurso da valorização da família, da tradição, da religião e da manutenção da ordem social vigente (que significa manter o poder nas mãos de uma determinada parcela da população, que geralmente é branca, rica e masculina), no controle da mulher e seu corpo, na definição do seu lugar social como o de cuidar do ambiente doméstico e de oferecer obediência ao homem, um de seus mais valiosos pilares.
A disciplina e a gestão do corpo das mulheres, funciona como um exemplo do controle ao qual a sociedade precisa se submeter para funcionar como se fosse um organismo biológico, desconsiderando tensões, conflitos, história, desejos e calcada na ideia de que felicidade é submissão e silêncio.
Desta forma, o papel de uma boa mulher seria a de que obedece, cuida da casa, dos filhos e do marido, e não tem desejos para si. As decisões sobre o seu corpo não lhe pertencem, mas ao Estado, à Igreja, ao esposo.
Sobre esse corpo passam a ser elencadas regras e valores que irão nortear o olhar sobre as mulheres, sua forma de ser, agir: como se veste, qual o vocabulário, e principalmente como se comporta em relação aos desejos e sexualidade. Caso exerça alguma conduta que seja dissonante do esperado da função materna e de procriação, será desqualificada e banida, pois a sexualidade masculina que é empoderada e valorizada, quando se refere às mulheres aparece como pecado ou transtorno.
Retidas no ambiente doméstico, muitas mulheres não têm acesso à educação, renda e trabalho, o que fortalece a submissão e restringe ainda mais a força no campo econômico e político.
Às custas da opressão de um gênero, o outro se fortalece, criando abismos na dificuldade de relacionamento, respeito, escuta, relações dialógicas e de cuidado. Se o outro é submisso, para quê me preocupar? Se o outro é inferior, como respeitar? Se o corpo do outro nada vale, porque não posso usar quando quiser e fazer o que quiser?
Além disso, torna-se justificativa para ataque às mulheres lésbicas, trans, às profissionais do sexo e qualquer outra expressão que confronte esse ideário de que o feminino só pode se aproximar da maternidade idelizada, da esposa e da santidade reduzindo a existência à biologia.
Esse contexto promoverá em muitas mulheres culpas avassaladoras, sensação de julgamento constante, busca por aprovação, aceitação do sofrimento e submissão enquanto destino, associação entre amor e sofrimento e exercício do papel de mãe de esposos e parceiros.
Além disso, pode fazer com que muitas mulheres se apossem desse discurso para julgar outras mulheres obtendo assim a aprovação dos homens. Nesta conjuntura de opressão, aumentam os quadros de depressão, ansiedade e sofrimento psíquico entre mulheres, além dos índices de feminicídio, estupro e assédio.
Nesse cenário onde o doméstico é somente responsabilidade do feminino, cria-se um distanciamento dos homens da dimensão do afeto, do cuidado com os filhos, da capacidade de lidar com a alteridade, da negação dos próprios aspectos femininos e da busca pelos símbolos de potência e poder, impactando em dificuldades para lidar com perdas, diferenças, rejeição e pensar criticamente sobre a construção da vida em sociedade.
Será que você ama, respeita e admira as mulheres ou deseja ter o controle, a submissão e a garantia da posse, mesmo que isso signifique o adoecimento e a infelicidade dela, para que você se considere protegido da rejeição, da frustração, da dúvida e da impotência? Ao ser silenciada, destituída da posse de seu corpo, de seu desejo, de suas escolhas, de seus direitos, como é possível sustentar a alma? E paradoxalmente, sem a pulsação do desejo das mulheres, o mundo dos homens fica árido e sombrio.
*Este texto reflete exclusivamente a opinião da autora.