A máquina de produzir adoecimentos por trás do falso bem-estar

Conteúdos disputam narrativas sobre uma suposta qualidade de vida, mas constroem ambientes adoecedores.

Escrito por
Alessandra Silva Xavier producaodiario@svm.com.br
Legenda: Influenciados por uma promessa de saúde, bem-estar e alegria, muitas pessoas acabam colocando a própria saúde em risco ao procurar soluções em conteúdos ou protocolos.
Foto: Prathankarnpap/Shutterstock

O crescimento de produtos e conteúdos direcionados à promoção do bem-estar e da saúde representa, segundo dados de 2023, 6 trilhões de dólares — ou seja, mais de 6% do Produto Interno Bruto (PIB) global, de acordo com a Forbes.

Entretanto, esse mercado com inúmeros conteúdos que pregam atividades contínuas demandam engajamento e monitoramento constantes, disputam narrativas sobre alimentação, exercício, comportamento, relações, e constroem o ambiente propício ao próprio adoecimento. Criam assim um ciclo: constroem o problema e oferecem a solução

Além de escamotear os conflitos e causas que ocasionam boa parte dos adoecimentos e transtornos mentais, transferem para o individual toda a responsabilidade pelo que envolveria necessidade de políticas públicas, investimentos que aplicassem injustiças e desigualdades sociais e muitas vezes vendem pacotes como se o singular fosse produto em série.

Além disso, vendem uma única ideia de saúde, beleza e bem-estar, desconsiderando idiossincrasias, desejos e aspectos interseccionais. A velha regra de que nem tudo que é bom para um serve para todos.

Neste projeto de uniformização, o sujeito se sente fiscalizado e cobrado sobre o que come e o que faz, e entra na disputa do espetáculo para exibir o quão cuida bem de si, da alimentação e da saúde, quando, muitas vezes, é um grande engodo e cenário que silencia a verdade de dores e sofrimentos.

Por trás de uma aparente corrida para o bem-estar, esse sujeito passa a levar uma vida rígida, controlada, fiscalizada — como se a saúde estivesse atrelada a produtos ou ações roteirizadas. Não é questionado a pensar sobre o sentido das suas ações, sobre a qualidade das relações, nem a se deparar com as impossibilidades da vida.

A promessa de felicidade e saúde encontra em muitas pessoas inseguras, alvos que podem colocar a própria saúde em risco, pela crença de que encontrarão soluções para sua vida se seguirem determinados conteúdos ou protocolos.

Se prestarmos atenção, a lógica envolve criar um problema para você se identificar com ele: 'você é inseguro', 'sua vida está sem graça', 'você está cansado de não ser visto'. E oferecem soluções que vão desde cura emocional rápida, conquista do corpo perfeito e recuperação da autoestima, geralmente relacionada à solução pela compra de um produto. 

Ele não resolverá o problema, mas criará uma dependência a ser alimentada com um novo produto. Assim, situações complexas passam a ser negociadas com soluções mágicas. 

Acontece uma valorização da “positividade tóxica” onde você tem que ficar feliz e grato por todas as desgraças que acontecem, tem que “vibrar” na alegria e no sucesso e que será isso que “atrairá” a solução dos problemas. A pessoa tem que ser sempre feliz, mostrar alto desempenho, produtividade, mostrar que ela consegue tudo e que é uma vencedora.

Mesmo que não se sinta assim, mesmo que se violente e esconda tristeza, dores, sofrimentos, que não possa falar nem pensar sobre coisas difíceis. Mesmo que o corpo e as condições físicas não permitam aquela fórmula, mesmo que a história de vida seja o contrário do que dizem que você tem que ser.

As emoções negativas e difíceis passam a ser rejeitadas, tornando cada vez mais desesperador lidar com sentimentos complexos, lutos, frustrações, desamparo, incitando a uma performance constante de alegria e relacionamentos felizes, que, quando deixam de “entregar tudo”, são rapidamente substituídos. 

Esse “falso bem-estar” se nutre de satisfações imediatas, dependência emocional de “influencers” muita vezes sem formação nem fundamentos científicos para as orientações, e se contrapõe a um bem-estar baseado em reflexão, autonomia, compreensão das imperfeições, limites, em encontrar as próprias alternativas diante do mal-estar da existência, em vez da negação baseada em uma performance emocional que defende que “tudo vai dar certo” e desconsidera sofrimentos complexos que precisam de ajuda profissional, e que podem levar muito tempo.