População constrói santuário em praia do CE para agradecer ‘milagres’ de mulher morta em 1980
Embora não haja reconhecimento oficial da Igreja, Maria Adélia é celebrada por moradores do litoral.
Uma pequena capela instalada na faixa de areia entre Mundaú e Flecheiras, no município de Trairi, Ceará, tem atraído a atenção de moradores e visitantes. A construção, isolada na beira da praia, é associado à história de Maria Adélia, mulher que, segundo moradores mais antigos, foi assassinada no início dos anos 1980.
A reportagem não encontrou registros oficiais sobre a estrutura, mas ouviu moradores do local. À distância, a construção pode parecer uma pequena cruz, semelhante aos monumentos erguidos em memória de vítimas de acidentes. No entanto, segundo Francisco Almir, um dos responsáveis pela obra, a capela erguida em 2024 tem dois metros de altura, além de uma base de três metros de frente por três de lado, totalizando 12 metros de perímetro.
Procurada pela reportagem, a Arquidiocese de Fortaleza informou que não possui nenhum registro oficial da construção, comunicando que o local foi desenvolvido todo por iniciativa da população.
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Moradores contam que, em um dia de maré baixa, o homem levou Adélia até a faixa de areia isolada e tirou sua vida. As versões variam: alguns falam em esfaqueamento, outros em sufocamento com a própria areia do mar, mas todas concordam na violência do crime.
Naquela época, a estrada asfaltada não existia. O único acesso entre as praias ocorria pela beira do mar, quando a maré permitia. De acordo com os moradores, o corpo de Adélia foi enterrado em uma cova rasa. Quando a maré subiu, a água começou a expor o local. O corpo acabou sendo avistado por moradores, e o crime, revelado. Um ano após o ocorrido, uma cruz foi instalada no local pela comunidade em homenagem à Maria Adélia.
Primeiros registros de homenagens
Miguel Araújo de Paiva, 30 anos, influenciador e agente cultural do Trairi, afirma que, um ano após a morte, pescadores colocaram a primeira cruz no local onde o corpo foi encontrado. “Tinha um primeiro túmulo, feito pela família de pescadores, um ano depois da morte dela, quando alcançaram o primeiro milagre”, relata Miguel.
Com o passar do tempo, outras pessoas passaram a visitar o ponto. Velas eram acesas, flores eram deixadas, pedidos eram feitos. Passavam por lá pessoas de Mundaú, Guajiru, Flecheiras e até de cidades vizinhas, sempre movidas pelos relatos populares de “graças alcançadas”.
Apesar disso, não existe, até hoje, qualquer reconhecimento oficial por parte da Igreja Católica que considere Maria Adélia uma santa ou valide milagres atribuídos a ela. A devoção é exclusivamente popular e mantém força pela tradição oral da comunidade.
Relatos de moradores sobre a devoção
Liliane do Nascimento Silva, moradora de Guajiru e criadora de conteúdo, conta que sempre via o santuário na estrada e imaginava mil histórias, até ouvir de um morador mais antigo:
Maria Adélia era muito querida. Fazia caridade, era amável. As pessoas sempre falam que ela atende preces e pedidos.
Miguel também reforça o peso da tradição:
“Vem gente de todos os cantos. Tem quem caminhe a madrugada inteira para pagar promessa. Muita história, muita graça. Tudo que eu peço, ela dá certo”, diz.
Ele também recorda uma das narrativas mais antigas: um morador que viajava do Rio de Janeiro ao Ceará, em um avião prestes a cair durante uma turbulência, teria clamado por Maria Adélia e, segundo ele, o avião se estabilizou logo depois.
Outro ponto destacado pelos moradores é o desejo de localizar familiares de Maria Adélia. Como ela era carioca e veio do Rio de Janeiro para viver em Mundaú, muitos acreditam que parentes ainda possam existir. Segundo o agente cultural Miguel Araújo de Paiva, a comunidade tenta encontrar pessoas que conheçam a história original da vítima.
Temos muita vontade de encontrar a família dela para que conheça o que foi construído aqui. Já tentei buscar contatos pelas redes sociais, mas ainda não consegui.
Promessa atendida e a construção da capela em 2024
Entre os responsáveis pela nova capelinha está Francisco Almir Sulino, 52 anos. Morador da região, ele conheceu a história quando ainda era jovem. A decisão de levantar a capela, no entanto, veio de uma experiência pessoal.
Quando o filho, Ivo, tinha 9 anos, sofreu de febre reumática e perdeu os movimentos das pernas. Sem saber que direção seguir, Francisco fez uma promessa a Maria Adélia. Anos depois, diante da recuperação do menino, sentiu-se na obrigação de retribuir.
A obra foi erguida em 2024, com ajuda de moradores, pescadores, visitantes e até desconhecidos. Uma mulher de Minas Gerais enviou materiais após agradecer uma promessa atendida. Um pescador colaborou depois de uma pesca inesperadamente farta em um dia de escassez.
Para garantir que o local fosse respeitado, Francisco buscou autorização com o major da região e o presidente da colônia de pescadores de Mundaú. Desde então, a comunidade organiza a limpeza, manutenção e ornamentação do espaço.
Primeira missa e a peregrinação crescente
A primeira missa celebrada no novo local ocorreu em 31 de maio de 2024. A cerimônia, realizada na área externa da capela, reuniu moradores de Mundaú, Guajiru, Flecheiras, Caetano, Cana Brava e outras localidades.
“Teve gente que saiu às três da manhã, caminhando por cima do morro para chegar na hora da missa”, relata Miguel.
Na celebração, vários testemunhos foram dados. Pessoas relataram curas, viagens protegidas, empregos conquistados, problemas solucionados. Cada história era seguida por acenos, lágrimas e orações.
Um ponto de memória e devoção popular
A capela segue sendo mantida pela própria comunidade, que realiza limpeza, ornamentação e pequenos reparos. O local recebe fluxo constante de visitantes, especialmente em datas religiosas e finais de semana.
Embora não exista documento ou reconhecimento oficial que considere Maria Adélia uma santa, a devoção permanece presente em Mundaú e nas praias próximas, sustentada pela memória local e pelas histórias que circulam entre moradores.