Conheça Marica Lessa, que virou livro ao 'matar' marido e foi presa em Fortaleza há 170 anos
História é um marco da sociedade cearense do século XIX e inspirou obra "Dona Guidinha do Poço"
Marica Lessa, herdeira de uma das famílias cearenses mais ricas do século XIX, foi levada de Quixeramobim, no Sertão Central, para a Cadeia Pública de Fortaleza, no dia 8 de novembro de 1853, há exatos 170 anos. Acusada de mandar matar o marido, mesmo sempre se dizendo inocente, a história da mulher inspirou o livro Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, de 1952.
Mas, neste caso, a arte foi que imitou a vida ao retratar a turbulenta situação de Maria Francisca de Paula Lessa, apelidada de Marica Lessa, quando se apaixonou por outro homem – depois de anos ao lado do coronel Domingos Victor de Abreu, com quem se casou para agradar os pais.
O resultado foram décadas detida onde hoje funciona o Centro de Turismo do Ceará (Emcetur). Os detalhes foram publicados pelo historiador Fernando Câmara na Revista do Instituto do Ceará, de 2003, no artigo “Os 150 anos do Crime de Marica Lessa”.
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"A repercussão deste crime abalou profundamente a nossa então província e o presidente do Ceará, Dr. Joaquim Vilela de Castro Tavares [...] determina que o chefe de polícia se dirija com a maior brevidade àquele lugar, a fim de instaurar o competente processo", contou o historiador.
Os dias na fazenda Canafístula, onde o casal vivia em Quixeramobim, começaram a se complicar com a chegada do sobrinho, Senhorinho Antônio da Silva Pereira, foragido da Justiça de Pernambuco pela denúncia de participar da morte do padrasto.
“Senhorinho conseguiu resolver o problema judicial e se fixou em uma das fazendas que os tios possuíam. Marica Lessa se tornou a principal freguesa da casa comercial dele em Quixeramobim”, acrescentou Fernando no artigo.
Ao se fixar no município cearense, começou a cortejar uma jovem filha de juiz, despertando a insatisfação de Marica Lessa. Ela conseguiu impedir o relacionamento dos dois e passou a convidar Senhorinho para passeios e festas na fazenda.
Isso não era bem visto pelos trabalhadores e moradores, que passaram a comentar o caso. Coronel Domingos, que as pessoas diziam ter casado com Marica por interesse na riqueza, parecia não ligar para os boatos – mas se importava.
Depois de ouvir alguns funcionários comentando sobre a possível traição, o coronel veio a Fortaleza, fingindo estar doente, para o “desquite” com o apoio do senador Thomaz Pompeu de Souza Brasil.
Um vigário influente tentou evitar o divórcio e acabou revelando os planos do coronel para Marica Lessa, que ficou revoltada com a situação. A partir desse momento, Domingos ficou preocupado com a própria segurança.
O coronel passou a ser acompanhado por um soldado, mas o artigo detalha que Marica planejava ultrapassar essa barreira para tirar a vida do marido. Após não conseguir na primeira tentativa, o historiador conta que ela contratou outra pessoa.
Manoel Ferreira do Nascimento, um homem escravizado na fazenda, conhecido por “Corumbé”, foi o escolhido. Corumbé, inclusive, era afilhado de batismo do casal.
Ao entrar na casa em que o coronel se abrigava, o encontrou diante de um espelho, aparando a barba, e ouviu: "Corumbé, você por aqui? Que anda fazendo? Como estão todos lá?". O coronel, então, só teve tempo de virar, colocando a tesoura na mesa, até ser apunhalado nas costas.
Coronel Domingos ainda chegou a gritar por socorro e o vigário apareceu, retirando o punhal. Foi quando a vítima revelou a identidade do seu algoz e morreu momentos depois.
Corumbé foi preso, confessou o crime e entregou Marica Lessa como a pessoa que o pediu para matar o marido. Durante muitos anos, na casa onde aconteceu o assassinato, ainda se via impresso na parede da sala o formato dos dedos sujos de sangue da vítima.
Prisão de Marica Lessa
O sepultamento do coronel aconteceu no mesmo dia da morte, em 20 de setembro de 1853, causando uma intensa movimentação ao redor da Igreja Matriz de Quixeramobim. Os soldados foram até a fazenda Canafístula prender Marica, que não imaginava ser levada devido à riqueza e prestígio.
Marica, montada num cavalo, Corumbé e Senhorinho foram levados de Quixeramobim para Fortaleza. Ela deu entrada na Cadeia Pública de Fortaleza, onde ficou na cela 21, que dividia com outras onze mulheres, registrada com o n° 114.
Corumbé fugiu da cadeia e Senhorinho foi transferido para uma unidade no Pará, deixando Marica de lado. A defesa dela recorreu da condenação do crime e a Justiça de Pernambuco, a qual o Ceará era associado, deu um veredito de 30 anos de prisão.
“Me chama atenção esse poder sobre a vida de uma pessoa, porque o que efetivamente levou a condenação foi a denúncia do escravo, mas não justifica a forma como ela foi presa e julgada”, analisa Altemar Muniz, professor doutor de História na Universidade Estadual do Ceará (Uece), que publicou o estudo sobre o assunto em parceria com a historiadora Carla Ronniele Teixeira Andrade.
Marica nunca voltou à fazenda e, mesmo depois de cumprida a pena, passou a viver em completa miséria, permanecendo na Cadeia Pública, em Fortaleza, de onde saía apenas para pedir esmolas. Ela sempre se disse inocente.
“A partir das obras que a gente estudou, é que ela cumpriu os 30 anos, mas gastou os bens com advogados, alguns a ignoram e depois desse tempo ela não sabia como viver longe daquele espaço da cadeia”, completa Altemar.
Quem foi a mulher
Marica Lessa, única filha mulher, nasceu em janeiro de 1804 e vivia na fazenda ou na chamada Vila de Quixeramobim, onde os pais tinham uma casa montada para estadia durante festas religiosas e de réveillon.
"Ali, frequentava as residências de suas amigas ou andava pela vila, procurando saber as novidades do dia a dia. Não tinha hora para retornar ao lar, o que contrariava bastante aos seus familiares", detalha o artigo da Revista do Instituto do Ceará.
Quando estava na fazenda, não dispensava os passeios a cavalo e, em certa ocasião, atravessou a nado o açude Pirabibu, só porque uma de suas amigas duvidou de sua coragem para tanto.
Naquela época, era comum os casamentos acontecerem por volta de 14 anos, mas aos 23 ela ainda permanecia solteira até a chegada do coronel Domingos Victor de Abreu e Vasconcelos, natural de Pernambuco. “É uma história muito viva em Quixeramobim e que ainda desperta a curiosidade”, resume Altemar .
“Era uma mulher que, pelo que é contado da história, era a frente do tempo, corajosa, se permitia andar com homens sem ser casada e em determinados segmentos da elite eram tolerados”, frisa sobre o perfil. Altemar contextualiza que naquele período, muitos exemplos de mulheres fortes como Marica se destacavam na cidade.
“Demonstra uma característica sobre as viúvas que são cabeças da família e que prefeririam se manter viúvas para manter o controle dos bens, porque antes só podiam ser assim com maridos, irmãos e pais”, frisa.
Cadeia Pública
O Centro de Turismo foi criado em 1973, mas o prédio foi construído para sediar a antiga Cadeia Pública, em 1850, tendo a sua conclusão definitiva em 1866, conforme o Mapa Cultural do Ceará, da Secretaria da Cultura do Estado (Secult).
A edificação foi feita em arquitetura neoclássica, com simplicidade nas formas, tendo as características conservadas.
A antiga Cadeia Pública foi adaptada para abrigar o Centro de Turismo e está protegida pelo Tombo Estadual segundo a lei n° 9.109 de 30 de julho de 1968, por meio do decreto n° 15.319 de 17 de junho de 1982.