‘Nem um copo?!’ O que é ‘sober shaming’ e como impacta alcoólatras recuperados em festas de fim de ano
Temporada de confraternizações favorece exposição a bebidas alcoólicas e exige rede de apoio sólida
“Não vai tomar nem um copo?” “Bora, só pra brindar!” “Só uma dose, deixa de ser careta!” A temporada de festas de fim de ano pode ser desafiadora para quem busca, dia a dia, se firmar na sobriedade. O alcoolismo, doença crônica que afeta milhões de brasileiros, esbarra, durante eventos sociais, em um obstáculo grave e comum: o “sober shaming”.
Definido como ato de causar constrangimento a alguém que decide não consumir bebida alcoólica, o comportamento é ainda mais nocivo quando direcionado a um alcoólico recuperado – alguém que já enfrenta desafios físicos e mentais para se manter sóbrio.
O alerta é do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), referência nacional na área, que lista recomendações sobre como agir diante de algum familiar ou amigo que decidiu parar de beber:
- Não diga frases como: “mas você não vai tomar nem um copinho?” ou “você tem problema com bebidas alcoólicas? “está grávida?” ou “só um copinho para brindar”;
- Respeite a decisão e não insista para a pessoa beber;
- Procure sugerir atividades e passeios que não estejam associados ao consumo de álcool;
- Marque encontros em locais onde há opções de bebidas e drinks sem álcool;
- Não julgue “chato” ou “careta” quem bebe pouco ou não bebe. É possível se divertir sem álcool;
- O fato de alguém decidir moderar ou parar não significa um ataque ao comportamento ou às escolhas de quem não faz o mesmo; encare como algo a ser respeitado.
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Para o aposentado Paulo*, é exatamente no “só um gole” que reside o perigo. Sóbrio há cerca de 40 anos, ele conta que não chegou a beber diariamente, mas “uma dose apenas de qualquer bebida alcoólica, independentemente do teor, desencadeava porre”.
“Eu esquecia o que tinha feito, isso me machucava muito, e eu curava com outro porre”, recobra. “Eu estava na porta do casamento. Tinha que comprar os móveis, organizar minha casa, mas não conseguia. Foi quando eu entrei nos Alcoólicos Anônimos (AA).”
Foram 3 meses de sobriedade até a primeira recaída. “Aí foi um desastre. Mas voltei e encontrei a força no AA. Hoje eu tenho 48 anos de casado, sem beber. O alcoolismo é uma doença sutil: a pessoa sempre acha que está se divertindo, que bebe igual às outras pessoas, mas não é”, alerta.
‘Sou impotente à bebida’
João* (nome fictício), 61, vive história parecida. Está sóbrio há 38 anos, 5 meses “e uma semana”, quando nos concedeu entrevista. A cada dia, escapa de uma sina que começou na adolescência, aos 14, e logo consumiu todas as horas da vida. “Bebia todo dia e por necessidade”, lembra o aposentado, membro do AA há quase quatro décadas.
A consciência de que nunca estará curado não é um peso, e sim um guia, como ele descreve. “Quando eu bebia, tudo era motivo pra beber. Hoje não. Pode acontecer o que acontecer, eu estou consciente que eu não posso nem devo ir ao primeiro gole. Já estou consciente da natureza exata da minha doença”, sentencia.
Tenho que estar consciente de que eu perdi o domínio sobre a minha vida e que eu sou impotente perante ao primeiro gole de qualquer bebida que contenha álcool. Eu sou impotente perante a qualquer tipo de bebida.
A busca por ajuda veio aos 22 anos de idade, após insistência do chefe, de amigos e até do próprio pai – também membro do AA. “Até chegar no AA, estive no verdadeiro fundo de poço. Eu tinha perdido o domínio da minha própria vida, o controle da bebida, eu não tinha mais condição de continuar”, relembra João*.
Ele reflete que uma das dificuldades é o estigma social atrelado à doença. “O alcoolismo é uma doença que todos escondem, né? É a doença da família. Tanto mata as pessoas que bebem como as pessoas que não bebem”, diz.
Apesar de já completar quase 40 anos sem beber, João* reconhece que o desafio permanece, mas se apega a um pilar sólido para prosseguir “longe do primeiro gole”: “o que faz eu manter a minha sobriedade é a vontade de viver”.
‘Alcoolismo não é falta de força de vontade’
No Brasil, 16 estados estão acima do índice nacional de mortes associadas ao álcool – o Ceará é um deles. A nível nacional, são 33 óbitos dessa natureza a cada 100 mil habitantes: no território cearense, a taxa é de 37,4 vítimas, de acordo com levantamento do CISA.
Ao todo, o Estado registra uma média de nove mortes por dia associadas ao uso de álcool. As principais causas, segundo o estudo, são doença alcoólica do fígado (18%), transtornos mentais e comportamentais por uso de álcool (12%) e agressão por meio do disparo de arma de fogo (10%).
A médica psiquiatra Olivia Pozzolo, pesquisadora do CISA, reforça que o alcoolismo é “uma condição complexa que envolve fatores biológicos, psicológicos e sociais”, e que “essa ideia equivocada de que é apenas uma escolha individual reforça o estigma e dificulta que as pessoas busquem tratamento”.
Além de sintomas físicos de abstinência, como “insônia, ansiedade, tremores e até convulsões e delirium tremens (confusão mental e alucinações)”, a pressão social para beber é um dos maiores desafios para os alcoólicos manterem a sobriedade, como destaca Olivia.
“O suporte psicológico, o apoio de familiares e amigos, e o tratamento farmacológico, quando necessário, são fundamentais. A sobriedade vai além de simplesmente parar de beber, é sobre construir uma nova relação com si mesmo e com o mundo”, aponta a psiquiatra.
Nesse contexto, o “sober shaming”, alimentado por “uma cultura onde o consumo de álcool é visto como norma social”, pode ser “extremamente prejudicial”, como alerta a pesquisadora do CISA.
Isso coloca quem está tentando manter a sobriedade em uma posição desconfortável, muitas vezes levando a um sentimento de exclusão ou vergonha. Nessa temporada de festas, isso pode ser ainda mais desafiador.
“Comentários como ‘só um gole não vai te fazer mal’ ou ‘você é mais divertido quando bebe’ podem parecer inofensivos, mas têm um impacto emocional profundo. Para quem está em recuperação, esses momentos podem ser gatilhos para recaídas ou para o isolamento”, complementa a médica.
Respeitar a escolha de quem não quer beber, então, é mais do que “de bom tom”: é obrigatório. “Seja porque estão em recuperação, por questões de saúde, religião ou simplesmente porque não querem, essa decisão merece ser acolhida e vista como algo natural”, frisa Olivia.
Como evitar recaídas
Diante da exposição a gatilhos e das dificuldades inerentes ao desafio diário de se se recuperar do alcoolismo, a médica Olivia Pozzolo lista alguns itens fundamentais para evitar recaídas ou lapsos:
- Manter uma rede de apoio composta por pessoas que respeitem a decisão de não consumir álcool e incentivem a sobriedade.
- Identificar e evitar gatilhos, como situações, emoções ou ambientes que possam estimular o desejo de beber, assim como desenvolver estratégias para lidar com eles;
- Estabelecer uma rotina saudável, que inclua atividades físicas regulares, uma alimentação balanceada e boas noites de sono;
- Acompanhamento contínuo com profissionais de saúde, como terapeutas ou grupos de apoio, para fortalecer o compromisso com a recuperação;
- Envolvimento em hobbies e atividades prazerosas, o que contribui para reduzir o estresse e preencher o espaço antes ocupado pelo álcool na rotina.
Quem precisa de ajuda para cessar o consumo de bebidas alcoólicas tem caminhos a seguir, como orienta a psiquiatra, mas todos exigem um primeiro passo: “é admitir que precisa de suporte e entender que pedir ajuda é um ato de coragem e não de fraqueza”.
A partir disso, Olivia aponta que “é recomendável procurar um profissional de saúde que poderá realizar uma avaliação inicial e indicar o caminho mais adequado para o tratamento”.
Outra alternativa, ela acrescenta, “é recorrer a centros especializados no tratamento do uso problemático de álcool, como os CAPS-AD (Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas), que oferecem acompanhamento multidisciplinar, e a grupos de apoio, como o AA”.
Onde buscar ajuda
- Alcoólicos Anônimos (AA). Telefone/WhatsApp: (85) 3231-2437. Site: www.aaceara.org.br ou www.aa.org.br
- Hospital de Saúde Mental de Messejana – Rua Vicente Nobre Macêdo, S/N. Telefone: (85) 3101.4350
CAPS Álcool e Drogas de Fortaleza
- CAPS AD Dr. Airton Monte – Av. Monsenhor Hélio Campos, 138, bairro Cristo Redentor.
- CAPS AD Cidade 2000 – Rua Giselda Cysne, s/n (próximo ao Posto de Saúde Rigoberto Romero).
- CAPS AD Centro – Rua Dona Leopoldina, 08.
- CAPS AD Alto da Coruja – Rua Betel, 1826, bairro Itaperi.
- CAPS AD Granja Portugal – Rua Antônio Nery, S/N.
- CAPS AD Amadeu Furtado – Rua General Bernardo Figueiredo, 1991.
- CAPS AD Luciano Cavalcante – Rua Monsenhor Carneiro da Cunha, 140.
Relembre quiz do Diário do Nordeste sobre consumo de álcool