Conheça 'Canoa Doida', padre anti-herói que subornava fiéis e foi proibido de celebrar missa no CE
Do nascimento à morte, Alexandre Verdeixa representou um legado de desafio à moral e aos bons costumes da época
Debochado, irônico, provocador, pecador. Na história cearense, esses adjetivos foram usados à exaustão para descrever o padre Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, apelidado de “Canoa Doida”, uma das figuras mais controversas da Terra do Sol. Ele chega a ser considerado o primeiro anti-herói do Estado por um de seus biógrafos.
Alexandre nasceu no Crato, em 3 de janeiro de 1803. Por 69 anos, expôs incoerências da sociedade local e sofreu represálias por isso, de ameaça e prisão a tentativas de assassinato. É o que conta o historiador Airton de Farias no livro “Canoa Doida”.
Filho de Feliciana Maria da Conceição, fruto de uma relação extraconjugal, Verdeixa realizava travessuras desde criança nas cidades onde morou, na região do Cariri. Jovem irrequieto, também aderiu às forças republicanas da Confederação do Equador, em 1824, inclusive ajudando a massacrar “corcundas”, como eram conhecidos os monarquistas.
No entanto, a posição política de Verdeixa variava de acordo com o governo do momento. Sua bandeira era atacar as oligarquias, criticando práticas como nepotismo, autoritarismo, corrupção, adultério e falso moralismo.
Alexandre pertencia à classe média, mas queria se aproximar das elites. Para isso, decidiu ingressar na vida religiosa (não por vocação), frequentando o seminário de Olinda, em Pernambuco, no fim da década de 1830. Já em 1831, era vigário em Lavras da Mangabeira, no Ceará, primeiro palco de suas polêmicas e confusões.
Desde o início, o sacerdote chamava os templos de “quitandas” e os paroquianos de “queridos fregueses”. Utilizava o púlpito e os sermões para “atingir e ridicularizar inimigos”, e cobrava metade do valor pelas celebrações, enfurecendo colegas de batina. Como defesa, dizia que suas homilias não valiam “nem dois vinténs”.
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Poderes sobrenaturais?
Conta o biógrafo que certa vez o padre confessou uma noiva. Durante a festa de casamento, ele pegou um chifre de guardar tinta, saiu entre os convidados imitando um boi e jogou o objeto aos pés do noivo, proferindo:
“Um chifre para quem tem chifre”.
Depois, pegou o cavalo e saiu do local, deixando um clima de velório. O ambiente da cidade se tornou hostil ao padre. Certa vez, até sofreu um atentado.
Chamado para ministrar sacramentos a um morimbundo, trocou a batina pela roupa de seu acompanhante, que ficou vestido de padre. No caminho, uma bala saída do meio do mato matou o inocente, enquanto Canoa corria em disparada.
Devido a essas e outras situações, acreditava-se que Verdeixa tinha o “dom” de prever tragédias, o que o possibilitava escapar de emboscadas e de acidentes.
Depois de acumular inimizades tanto em Lavras como Icó, ele partiu para Fortaleza em 1835. Lá, se indispôs com o então presidente provincial (governador), José Martiniano de Alencar.
Verdeixa o chamava de “padre Cobra” e propagava boatos maldosos a seu respeito. Alencar retribuía mandando capturá-lo e surrá-lo, mas Canoa sempre "escapulia". Alencar saiu do governo em 1837, e Alexandre assumiu o cargo de juiz de paz (hoje semelhante a delegado) em Baturité.
O homem utilizou seu poder para, na eleição de 1840, prender todos os eleitores da oposição, usando das mais diversas e mirabolantes justificativas. No fim, obviamente, o candidato apoiado por ele venceu.
Inconstante, rompia com políticos com facilidade e por isso era perseguido, mas sempre fugia. Apesar de ser persona non grata para alguns, também desfrutava “da simpatia e apoio de certos segmentos sociais, tanto que foi eleito duas vezes deputado provincial”, conta Airton.
Por que Canoa Doida?
O apelido pelo qual ficaria conhecido nos livros de história foi dado quando Verdeixa morou em Aracati. Aparentemente, ele se movia torto, curvado, “a passos curtos e rápidos”, em movimento semelhante à embarcação.
Curiosamente, não há fotos ou desenhos retratando a icônica figura, segundo o biógrafo. Relatos escritos o descrevem como um homem alto e magro, “desengonçado”, de cara “ossuda”, queixo pontudo e orelhas grandes.
A falta de dotes físicos foi suprida por uma “inteligência incomum” e “língua afiada”, tornando-o um precursor da cultura do Ceará Moleque, ideia em que o humor se integra ao cotidiano social.
Pecados e punições
Como narrado até aqui, Canoa Doida não era muito afeito a regras. Tanto é que desrespeitou várias da própria Igreja Católica, principalmente a abstinência sexual: dava em cima de várias mulheres e chegou a ter quatro filhos (duas moças e dois rapazes que morreram na Guerra do Paraguai).
Por sua conduta inadequada, o bispo pernambucano D. João Perdigão, também responsável pelo Ceará, chegou a proibi-lo de celebrar missas e administrar sacramentos. Canoa disse que era vítima de inveja e conseguiu uma pena mais branda. Porém, mal seu superior foi embora, o padre voltou a aprontar.
Em 1841, o governo da província o nomeou professor de latim em Tauá. Canoa nem saiu de Fortaleza, por querer próprio, mas a Câmara de Tauá também se movimentou: recusou a chegada dele para “prevenir inconvenientes” por saber dos “barulhos” que o padre causava.
No mesmo ano, Verdeixa foi preso por ser oposição agressiva ao governador Joaquim Coelho. Condenado a oito anos com trabalhos forçados, foi liberado em 1843.
Nos anos seguintes, sofreria “vários processos, condenações, prisões e tentativas de assassinato”.
Em 1847, por exemplo, quando era vigário em Soure (hoje Caucaia), foi acusado injustamente da morte de um professor de quem era declaradamente inimigo, mas logo foi inocentado. Tempos depois, escapou por pouco de uma tijolada que lhe seria fatal.
Ao longo da carreira, o homem também foi acusado de diversos crimes paroquiais, como tornar públicos segredos de confessionário caso não lhe pagassem suborno; roubo de objetos e negligência na conservação de templos, dentre outros.
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Um bom político?
1848 marcou seu primeiro ano como deputado provincial, além de primeiro capelão do Cemitério de São Casimiro. Já naquela década, ele defendia ideais de abolição da escravatura (embora tivesse um escravo que sempre o acompanhava) e de proteção ao meio ambiente.
Em seus discursos, condenava as oligarquias e “recusava curvar-se aos governantes e poderosos, fossem eles liberais ou conservadores”. Chegou a chamar a Assembleia Legislativa de “ilustre casa das mamatas”.
Além disso, reclamava da pouca assistência governamental às vilas do interior do Estado e condenava a concentração de investimentos em Fortaleza: “não é possível que só a Capital seja a bem-aventurada”, chegou a dizer.
Em atitude ousada, em 1864, Canoa Doida propôs a criação da “Empregópolis”, colônia penal agrícola que seria destinada não só a criminosos “comuns”, mas a profissionais que recebiam salário sem trabalhar - em clara alusão aos colegas parlamentares e outros funcionários públicos.
Seus discursos ganhavam ressonância em vários periódicos que criou quando assumiu o cargo, nos quais batia em todos os adversários, fossem governantes, policiais, sacerdotes ou outros jornalistas. As pessoas “entravam em pânico” ao abrir as páginas, conta Airton de Farias.
Acumulando inimigos no local, foi cassado durante seu segundo mandato e não terminou a legislatura.
Fim da vida
Depois de arranjar confusão em praticamente todo o Ceará, Canoa Doida encerrou suas atividades sacerdotais em Baturité e Pacatuba. No início dos anos 1870, foi recolhido de favor na casa de um amigo, em Aracati.
Doente e idoso, tornou-se amargo até com quem o acolhia de bom grado. Com a piora no quadro de saúde, pediu transferência de barco para a Capital. Faleceu na Santa Casa de Fortaleza, em 17 de outubro de 1872, depois de entregar a uma freira um pacote com os 400 mil réis conquistados pela venda de seu único escravo.
Apesar de “figura esquecida pela historiografia tradicional”, na leitura de Airton de Farias, “ninguém conseguiu silenciar o matraca”. “Seu nome e peripécias continuam ainda a atazanar os hipócritas”, reflete.