Como o aumento de motos redesenha o trânsito de Fortaleza?

Além das faixas azuis, capital cearense tenta outras medidas para acompanhar crescimento, e especialistas discutem real eficácia

Escrito por
Clarice Nascimento clarice.nascimento@svm.com.br
(Atualizado às 14:14)
Duas motocicletas com condutores e passageiros de capacete em movimento rápido na rua. Fundo borrado para criar efeito de velocidade (panning).
Legenda: Aumento do número de motocicletas e motonetas em Fortaleza demanda reorganização do trânsito e conscientização de condutores e passageiros
Foto: Thiago Gadelha

Fortaleza tem vivido um crescimento intenso do volume de veículos nos últimos 10 anos, principalmente com relação à quantidade de motocicletas. Em 2015, eram 273 mil motocicletas e motonetas circulando na cidade e, uma década depois, esse número é de 406 mil — um crescimento de 48,79%.

Hoje, esse modo de transporte representa 30,9% da frota total de transportes motorizados em circulação, enquanto os carros correspondem a 48,99%. Os dados são do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE).

Diante desse cenário, medidas como o teste de faixas exclusivas para motocicletas, anunciada em 6 de outubro pela Prefeitura de Fortaleza, vêm sendo adotadas com foco em atender esse público e organizar o trânsito. No entanto, o que mais tem sido pensando, nos últimos anos, e o que está em discussão para os próximos anos? E mais: quais os reais impactos dessas medidas para a cidade?

“Podemos pensar que as motos têm uma dimensão menor e o aumento de um pouquinho de moto não vai atrapalhar. O problema é que temos um aumento muito superior em relação ao resto da frota”, explica Flávio Cunto, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Já André Luís Barcelos, gerente de Operação e Fiscalização da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC), afirma que hoje o usuário de motocicletas é um dos pontos de atenção das ações do órgão. “Esse público é mais da metade da mortalidade no trânsito de Fortaleza, então ele é um dos focos prioritários das ações de educação, de engenharia e de fiscalização”, afirma. 

Segundo dados solicitados à Autarquia, a cidade registrou 184 mortes no trânsito em 2024. Dessas, 55% envolveram motociclistas ou passageiros de motocicletas, sendo 56% dessas vítimas do sexo masculino e com idades entre 30 a 59 anos (56%). 

“Parece muito claro que é esse o usuário que a gente deve focar nossas políticas públicas, junto do pedestre, que vem em segundo lugar, e dos ciclistas, que são os mais vulneráveis”, pontua Flávio Cunto.

Para minimizar a gravidade dos sinistros de trânsito, a AMC afirma que Fortaleza tem adotado política de readequação da velocidade, além de reforço nas ações de fiscalização dos principais fatores de risco e nas abordagens educativas, com a inclusão de cursos de pilotagem segura direcionada ao motociclista.

Gestão de velocidades

Em 2015, Fortaleza se tornou parte da Iniciativa Global em Segurança Viária da Bloomberg Philanthropies e, desde então, passou por um conjunto de ações inspirados em dois princípios da segurança viária moderna: “Visão Zero” e “Sistema Seguro”, como explica o professor da UFC. 

O primeiro parte do princípio e adota como uma missão que “nenhuma morte ou vítima gravemente ferida é aceitável no trânsito”. “Todas as ações que os órgãos que se relacionam com segurança viária, procuram fazer, sempre pensando em não haver vítimas fatais ou gravemente feridas”, explica.

Motociclista borrado em primeiro plano em uma rua urbana. O foco está em um sinal de trânsito elevado no centro que indica “ATENÇÃO VELOCIDADE MÁXIMA PERMITIDA: 50 km/h”.
Legenda: Desde o início da adoção da política de gestão de velocidade, média total de redução de mortes nas vias alteradas de 60 km/h para 50 km/h foi de 68%
Foto: Fabiane de Paula

Partindo disso, surge a política de gestão de velocidade das vias urbanas. Em 2018, a Capital cearense começou a alterar os limites de velocidade nas ruas e avenidas, alcançando a todos os elementos do trânsito, como motociclistas, motoristas, ciclistas e pedestres. 

Isso gerou um impacto logo no início da adoção: a média total de redução de mortes nas vias que receberam alteração de 60 km/h para 50 km/h foi de 68%, segundo dados do Relatório Anual de Segurança Viária de 2023. Em relação aos atropelamentos, a queda foi de 30%. 

Para Dante Rosado, Gerente Sênior de Segurança Viária da Vital Strategies no Brasil, essa política é uma das principais estratégias para garantir a segurança de motociclistas e passageiros. “A velocidade é o principal fator de risco para ocorrência de morte em trânsito”, pontua. 

Ao modificar a velocidade de uma rua, diminui-se o principal fator de risco para ocorrência de morte em trânsito, como explica Flávio. “Ela tem uma ligação muito direta, muito objetiva com a frequência e a severidade dos sinistros, porque ela trata da energia do momento da colisão”, afirma. 

“O excesso de velocidade dá menos tempo para a pessoa reagir, como também exige um esforço de frenagem maior para evitar colisão. E, caso não seja possível evitar, o sinistro vai acontecer numa energia menor”, completa.

Num atropelamento a 60 km/h, as chances da vítima sobreviver são pouco menos que 3%. Com a redução para 50 km/h, há o aumento de 25% a 30% nas chances de sobrevivência, compara o professor. 

No entanto, a facilidade de burlar as formas de fiscalização impedem uma melhor eficiência dessa medida. “A fiscalização eletrônica, conforme feita hoje, tem pouco poder sobre motociclistas porque eles conseguem burlar. A cidade poderia votar a estratégia de escalação por meio de radar móvel, por exemplo”, diz Rosado.

Faixas são boa alternativa?

Outra medida voltada para o público das motos são as áreas de retenção, adotadas em 2020 como uma medida paliativa, mas que, hoje, foram ampliadas para 1.971 sinalizações em 695 cruzamentos da cidade.

Esses espaços são delimitados por duas linhas de retenção — com uma área de aproximadamente cinco metros — e permitem a parada de veículos de duas rodas no semáforo entre a faixa de pedestres e os automóveis, priorizando a largada quando o sinal abrir.

Grupo de motociclistas de capacete parados em uma faixa de retenção em um semáforo na cidade. Símbolo de bicicleta pintado no asfalto em primeiro plano.
Legenda: Áreas de espera existem em 695 cruzamentos da cidade e já reduziram em 33% o número de acidentes com vítimas nas interseções contempladas.
Foto: Thiago Gadelha

Com os “motoboxs”, condutores de carros também garantem conforto ao reduzir a disputa por espaço e aglomeração de motos ao lado dos veículos. Dessa maneira, quando o semáforo verde acende, os motociclistas partem na frente, evitando ultrapassagens arriscadas e conflitos.

Conforme Dante Rosado, essa medida é eficaz, pois já mostrou resultados comprovados. Informações enviadas pela AMC apontam a redução de 33,3% no número de acidentes com vítimas nas interseções contempladas com esse dispositivo.

“Elas funcionam e, comprovadamente, reduzem os riscos dos motociclistas. No caso das faixas azuis, apesar da narrativa construída pela Prefeitura de São Paulo de que reduz mortes, não há evidências disso”, ressalta. 

As faixas azuis chegam em Fortaleza nos próximos meses de forma experimental e quatro avenidas da cidade receberão os corredores exclusivos. São elas: 

  • Avenida Alberto Craveiro: extensão de cerca de 2,7 km por sentido;
  • Avenida Humberto Monte: no trecho entre a rua José de Pontes e a rua Rio Grande do Sul, extensão de cerca de 1,6 km por sentido;
  • Avenida Santos Dumont: no trecho entre a avenida Engenheiro Santana Júnior e a rua Professor Otávio Lobo, extensão de cerca de 1 km, sentido único;
  • Avenida Presidente Costa e Silva: trecho entre a avenida Juscelino Kubitschek e a avenida Godofredo Maciel, extensão de cerca de 4 km por sentido.

Segundo a AMC, essa implantação acontece experimentalmente e as vias foram definidas a partir de critérios técnicos, como a “ocorrência e severidade de sinistros envolvendo motociclistas, a existência prévia de infraestrutura cicloviária ou priorização para ônibus, a configuração viária favorável, sem necessidade de redução no número de faixas já existentes”. 

Durante o período de teste, serão elaborados relatórios mensais com informações sobre a velocidade operacional de cada faixa, pesquisas de opinião com as impressões dos usuários e do entorno. Além disso, os documentos terão análises de resultados alcançados, recomendações técnicas e parâmetros que visem aprimorar o uso da sinalização. 

No entanto, os especialistas em segurança viária avaliam que a eficiência dessas faixas ainda não foi comprovada cientificamente e, até o momento, não há evidências de redução de mortes. Flávio Cunto compõe a equipe que avalia e testa a eficiência dessas faixas no trânsito de São Paulo e conta que, conforme os resultados preliminares, não é possível dizer que a motofaixa reduziu nenhum tipo de sinistro na capital paulista. 

“Não existem evidências para dizer que isso reduz o número de acidente, principalmente quando a gente olha os sistemas seguros, a energia relacionada às velocidades. As velocidades das motos nas faixas azuis aumentaram consideravelmente”, revela. 

Vista aérea de avenida de São Paulo com faixa prioritária para motocicletas.
Legenda: As faixas de priorização do tráfego de motocicletas são testadas em São Paulo desde 2022.
Foto: Reprodução/Dante Rosado

O professor explica que, nos locais sem essa faixa, uma em cada 10 motocicletas excedem a velocidade, aproximadamente. “Já nos espaços com faixa azul são sete em cada 10”, diz.

Isso acontece, segundo ele, pelo espaço de folga que se cria entre carros e motos e gera uma confiança maior entre os motoqueiros. Assim, segundo ele, os estudos trazem mais incertezas e ressalvas do que pontos positivos

André Barcelos, da AMC, reforça que essa não é a primeira medida adotada em Fortaleza com base em outras cidades e os erros e problemas são considerados. Ele relembra que, quando houve a redução da velocidade, foi feito um pacote de infraestrutura na cidade, como melhoria da travessia dos pedestres, da iluminação, e ações educativas prévias. 

“Quando começa a fiscalização, a população já está ajustada. Isso foi o sucesso da de toda essa política de readequação de velocidade de Fortaleza. São Paulo não teve isso. Então vamos buscar esse mesmo caminho agora”, pondera. 

Em relação à velocidade, Barcelos pontua que serão implementadas indicações para o usuário entender que tem responsabilidade e a faixa “não é garantia de estar imune, vai precisar se disciplinar”. 

“A sinalização de Fortaleza vai ser um pouco diferente, vai ter mais indicação de velocidade e mais um trabalho de mídia, de orientação para que a gente possa avaliar e fazer com que essa medida ela seja segura. O grande desafio é esse: fazer com que toda intervenção feita na cidade seja de forma segura”, reitera.

A mensagem que tá indireta por trás de uma ação como essa é de que queremos mais motos na rua, porque podemos dar a infraestrutura para ela. E a gente está deixando de lado outros modos que são muito mais sustentáveis do ponto de vista social, do ponto de vista econômico, do ponto de vista ambiental, como o transporte público
Flávio Cunto
professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC)

O que a gestão prevê até 2029

Reduzir as mortes no trânsito é um dos objetivos da Prefeitura de Fortaleza apontado no Plano Plurianual de 2026 a 2029, que tramita na Câmara Municipal desde setembro. No eixo “Segurança Viária, Mobilidade Urbana e Acessibilidade”, essa meta será trabalhado a partir da melhoria do transporte público, ampliação de ciclovia, da melhoria da infraestrutura urbana e viária e da universalização do uso dos espaços públicos.

Diante desse objetivo, as ações previstas no PPA são:

  • Promover campanhas educativas voltadas a motoristas, motociclistas e pedestres;
  • Construir calçadas amplas, ciclofaixas e corredores exclusivos para motocicletas;
  • Implantar pontos de apoio com banheiros, áreas de sombra e acesso à água potável para trabalhadores do setor de transporte;
  • Requalificar vias com asfaltamento, redução de buracos e sinalização. 

No eixo da Segurança Viária está o Programa Segurança no Trânsito, que tem como indicadores as taxas de mortalidade de ocupantes de motocicleta, vias com velocidade readequada e vias contempladas com projetos de áreas de trânsito calmo. 

  • Hoje, o índice de mortalidade de ocupantes de motocicleta é de 2,35%, calculado pela divisão entre o número de mortes de ocupantes de motocicleta pela frota total de veículos. O objetivo é que esse valor reduza para 2,13% em 2026 e 1,47% em 2029. 
  • No que diz respeito as vias com velocidade readequada, Fortaleza possui 241,7 km de ruas e avenidas com limites de velocidade reduzidos. A meta é que suba para 269 km em 2026 e 329 em 2029. 
  • Já as vias em área de trânsito calmo, com zona de velocidade de 30 km/h, é de 25,80 km. Espera-se um crescimento para 30 km em 2026 e 38,60 km em 2029. 

Qualificar o transporte coletivo é reduzir o uso da moto

O Diário do Nordeste vem mostrando como o do transporte coletivo têm perdido força na cidade em detrimento dos transportes individualizados. Segundo os especialistas, promover esse tipo de locomoção é fundamental para, de fato, existir um trânsito seguro. Flávio explica que as chances de uma pessoa falecer numa motocicleta é 150 vezes maior do que num sinistro com ônibus. 

Foto de ação (panning) de um ônibus de transporte coletivo e um motociclista em movimento rápido. O ônibus tem o número da linha 710. Fundo borrado para efeito de velocidade.
Legenda: Transporte coletivo vem perdendo força em Fortaleza devido aos carros e motos por aplicativo.
Foto: Thiago Gadelha

Antes de adquirir seu veículo próprio em 2022, Higo Rodrigues, de 25 anos, utilizava os ônibus ou as motos por aplicativo para se locomover em Fortaleza. O balconista saia do trabalho por volta de 22 horas da noite e só tinha uma opção de coletivo para voltar para casa.

“Eu ficava naquela tensão porque às vezes o ônibus não passava ou então estava atrasado, ou passava adiantado na parada. E a moto facilitou demais porque você fica despreocupado com a hora que vai sair já que tem o seu transporte ali esperando”, afirma. 

O crescimento do uso da motocicleta vai além do desejo das pessoas: houve uma política de incentivo fiscal no Brasil para a produção e aquisição desse modal. Além do custo acessível, elas também foram impulsionadas pelo processo de ‘uberização’ e pelo colapso do sistema de transporte coletivo, apontam os especialistas.

O advogado Diego Nogueira, de 33 anos, considera como principal benefício da moto a agilidade na locomoção do dia a dia. “A via que eu pego para trabalhar é muito movimentada de carros e o engarrafamento deles é muito maior, é mais lento e o trânsito flui menos. Com moto, normalmente você tem corredor, tem outros acessos que consegue mudar de faixa”, afirma. 

Apesar disso, ele entende que esse não é o meio de transporte mais seguro. “Quem decide comprar uma moto preza mais pela agilidade do que propriamente pela segurança. Não tem como você colocar, num veículo desse, a segurança em primeiro lugar, porque a gente sabe que é muito perigoso”, pondera.

Assim, como explica Dante Rosado, investir em melhorias no sistema de transporte urbano é possibilitar um meio de transporte mais seguro e eficaz para a população. “Se você pudesse escolher, em sã consciência e sem se preocupar tanto com a questão financeira, se tivesse um transporte público competitivo em termos de tempo de viagem, confiabilidade dos horários e conforto, as pessoas andariam provavelmente de ônibus”, acrescenta Flávio.

Diego costumava utilizar as motos por aplicativo, mas o custo e, principalmente, a segurança o fizeram investir no veículo próprio. Ele afirma que muitos motociclistas por aplicativo andam com objetivo de ‘bater a meta’ de corridas, então “quanto mais cedo ele vir deixar, mais cedo ele pode pegar outra corrida”. “É esse senso de urgência que coloca em risco a nossa segurança”, afirma.

Prefiro confiar na minha pilotagem do que em pessoas que eu não conheço, porque alguns são extremamente responsáveis, mas eu já peguei motoqueiro que fornece um capacete sem a jugular (correia ajustável), sem estar acolchoado por dentro, só a casca. Para mim é torcer para chegar em casa bem
Diego Nogueira
33 anos, advogado e condutor de motocicleta

Para o professor da UFC, Flávio Cunto, as gestões públicas precisam se aproximar das empresas que empregam esses condutores com intuito de orientar os profissionais para a educação no trânsito. “Precisamos melhorar a capacitação deles e também o modelo de remuneração, para não ser baseado somente na eficiência pelo tempo ou velocidade”, afirma. 

Os passageiros também são componentes importantes para a segurança na condução. “Não é só subir na moto e vamos lá. Não, né? Tem elementos em relação a equilíbrio, à bolsa que você vai levar, ao posicionamento. Não pode ficar olhando para o celular enquanto trafega e não pode estar distraído. O uso do capacete nem precisa dizer. Tem que ser 100%”, pontua. 

Hoje, a AMC oferece um curso de pilotagem segura direcionada ao motociclista, explica Barcelos. Essa capacitação busca promover a conscientização sobre a importância de um tráfego mais seguro, com base no respeito às normas de circulação. Temas como direção defensiva, técnicas práticas de frenagem, condução em curvas e situações de risco são alguns dos abordados no curso.

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