Para sair de casa utilizando o transporte público, o fortalezense precisa enfrentar uma longa espera pelos ônibus, a lotação dos veículos e frotas em condições precárias. Se decidir por usar bicicletas, encontra ciclovias inexistentes ou com infraestrutura perigosa. Os metrôs ou Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) não atendem todas as localidades e não há integração entre os modais, sendo preciso despender mais dinheiro. 

Com o momento atual do transporte coletivo de Fortaleza, os passageiros estão ‘fugindo’ dos coletivos e modais ativos — como bicicletas —, e passam a utilizar carros ou motos por aplicativo pela comodidade do serviço e o custo-benefício. Com isso, vem a redução da receita das operações de ônibus e o aumento da emissão dos gases poluentes. 

Na segunda-feira (29), passageiros, motoristas e autoridades de Fortaleza foram pegos de surpresa com a suspensão de 25 linhas de ônibus da Capital — Sindiônibus alega incapacidade financeira de manter os coletivos nas ruas. Diante desses cenários, o que pode ser melhorando para que a quarta maior capital do Brasil tenha uma rede de transporte público realmente coletivo e de qualidade? 

Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste afirmam que uma das formas de reverter a fuga de passageiros e retomar o acesso ao transporte público coletivo em Fortaleza é integrar os modais de transporterepensar o modelo de financiamento — que hoje é baseado no pagamento por usuário transportado. 

Um dos eixos do Plano Plurianual de 2026 a 2029que atualmente tramita na Câmara Municipal, tem como tema “Segurança Viária, Mobilidade Urbana e Acessibilidade”. Ele estabelece duas diretrizes:

  • Ampliar o acesso e melhorar a experiência dos usuários do transporte coletivo;
  • Assegurar a circulação segura para pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência, por meio de urbanização inclusiva.

Entre as principais ideias previstas estão o aumento da frota, a redução do tempo de espera, a implementação da integração tarifária com bilhete único, a instalação de paradas de ônibus seguras e cobertas e a construção de calçadas amplas e ciclofaixas. 

Esta produção integra uma série especial veiculada pelo Diário do Nordeste com um diagnóstico do Plano Plurianual 2026–2029, investigando os desafios para o próximo ciclo de gestão e qual a Fortaleza planejada pelo Poder Público municipal.

Separador PPA

Financiamento coletivo

Os especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste pontuam que a valorização do transporte público coletivo e a melhoria da experiência do usuário — propostos no Plano Plurianual de Fortaleza — passam pela reestruturação do financiamento e da arrecadação. Uma das alternativas é a replicação de um modelo de pagamento por quilômetro rodado, que existe no Ceará desde o ano passado.

O novo sistema metropolitano de transporte público coletivo — que conecta os municípios da Região Metropolitana à Capital — funciona através do pagamento às empresas por serviço prestado, e não mais por passageiro transportado. Segundo Dimas Barreira, do Sindiônibus, essa é uma tendência que já vem crescendo no Brasil. 

“A medida que os subsídios vão aumentando começa a não fazer mais sentido você dizer que o transporte tem que se viabilizar pela demanda que ele transporta. Uma coisa é o que ele custa, a sustentação financeira, outra coisa é a demanda que ele transporta, se alguém vai contribuir com quanto”, afirma. 

Como serviço essencial previsto na Constituição de 1988, o transporte público é um direito e deve ser ofertado mesmo onde a demanda é escassa. “Por exemplo, a linha que tem muita gratuidade, ela não vai deixar de desistir porque as pessoas não são menos importantes. Esses usuários têm um direito a um acesso gratuito”, explica Dimas. 

O transporte público serve a sociedade como um todo, por isso, ele poderia ser pago pela sociedade na totalidade e não só por quem usa. Mesmo que você não use o sistema de transporte por ônibus diretamente, você vai ser atendido em uma loja ou num hospital por uma pessoa que usou o transporte público para chegar ali. Você se beneficia da existência do sistema, embora não use
Mario Angelo
professor da Universidade Federal do Ceará

No sistema metropolitano, as empresas contratadas mediante licitações do Estado percorrem uma rota já estabelecida pelo setor técnico, com horários e frequência determinadas. Elas recebem o pagamento antecipado para funcionar. 

A receita arrecadada dentro dos veículos — oriunda do vale-transporte ou de dinheiro — é repassada ao Governo. Ao fim do mês, é feito um apurado do quanto foi apurado e o Estado paga o restante do serviço licitado por quilômetro. Dessa forma, a variação no número de passageiros não afeta diretamente a remuneração da operadora, desde que o serviço contratado seja cumprido. 

Ônibus de transporte público branco e cinza parado em um ponto de ônibus na rua. Várias pessoas estão esperando sob uma cobertura do ponto, e há uma árvore e uma fachada de loja visíveis no lado esquerdo.
Uma fotografia em ângulo ligeiramente baixo e aberto captura um ônibus de transporte metropolitano parado em um ponto para embarque e desembarque.O ônibus, predominantemente branco com detalhes em preto e um adesivo colorido grande na lateral, ocupa o lado direito da imagem. No lado esquerdo, sob um abrigo de ponto de ônibus metálico, há três mulheres de costas esperando. A mulher em primeiro plano, à esquerda, tem cabelos grisalhos e usa uma blusa preta e rosa com estampa floral. A mulher no meio veste uma camiseta magenta e calças brancas. O ambiente geral é urbano, com alguma vegetação no fundo, à esquerda, e o foco é na interação entre os passageiros e o veículo de transporte público.
Legenda: O usuário que parte da RMF para a capital se beneficia com desconto na segunda passagem
Foto: Thiago Gadelha

O presidente da Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce), Rafael de Paula, explica que o modelo surgiu pela necessidade de o Governo do Estado de implantar o Vai e Vem, programa de gratuidade para estudantes que moram e estudam em municípios diferentes da Região Metropolitana e para pessoas desempregadas em busca de emprego formal. 

Para o dirigente, é possível replicar essa sistematização dentro de Fortaleza, dando mais controle da gestão sobre o serviço e possibilitando, inclusive, que as gratuidades sejam implementadas de forma mais abrangente. “O modelo permite que a Prefeitura tenha uma maleabilidade na modicidade tarifária da passagem de ônibus ou até tarifa zero de alguns programas como o Governo do Estado implantou com o Vai e Vem”, afirma. 

Por outro lado, Alexandre Queiroz, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Observatório das Metrópoles, afirma que esse modelo funciona em linhas de longa distância, como é o caso dos ônibus que fazem o trajeto de fora para dentro de Fortaleza. No caso de trechos mais curtos, como um deslocamento entre bairros próximos, essa logística pode não ser favorável. 

Uma alternativa, segundo ele, seria a criação de fundos ou de recursos derivados de atividades nocivas, por exemplo, cobrando mais impostos e destinando os valores à melhoria das estruturas, ampliando frotas e reforçando o financiamento. "É como aquela história do imposto do pecado, em que pode usar certas questões, mas vai ser sobrado mais impostos daquilo para cobrir ações na saúde, na mobilidade, que valham a pena", soluciona. 

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Tarifa Zero em Fortaleza é possível?

Desde novembro de 2023, todos os estudantes residentes de Fortaleza têm passe livre no transporte público via carteirinha de estudante. A medida é estabelecida pela lei do Passe Livre Estudantil, sancionada pelo então prefeito José Sarto. No ano anterior, a Prefeitura havia informado que estudava a implantação de tarifa zero para toda a população.

Os benefícios do passe-livre universal são destinados, principalmente, à parcela mais pobre da população, possibilitando acesso ao mercado de trabalho e ao lazer. O dinheiro antes destinado ao deslocamento passa para o comércio local. E o trânsito diminui com a migração do carro para os ônibus. 

Mario Angelo pontua que a principal ação para o funcionamento da medida é ter uma fonte de financiamento determinada e separada no orçamento público. E isso vai além dos subsídios municipais, é preciso colocar União na conta. “É um esquema que precisa ser estudado e acho que entra no nível nacional”, afirma.

Segundo o professor, montante de recursos necessários para viabilizar a extinção das passagens é ‘pesado’. Para ele, é possível zerar as tarifas de maneira escalonada, com congelamento dos preços e, gradativamente, subsidiando o que ‘falta’. Ele explica que, cada prefeitura que possui a Tarifa Zero estabelece por meio de uma lei municipal, uma vez que as normas federais não possibilitam uma boa cobertura para essa experiência.

Em primeiro plano, mãos seguram um cartão de transporte, possivelmente um passe livre estudantil. Em desfoque no fundo, um ônibus azul e branco se aproxima em uma avenida sob um céu parcialmente nublado.
Legenda: Qualquer estudante da rede pública ou privada, com carteirinha estudantil validada pela Etufor, pode usufruir de duas passagens gratuitas válidas em dias úteis e letivos, conforme o calendário estipulado pelas instituições de ensino
Foto: Thiago Gadelha

Dessa forma, se a isenção das tarifas for ampliada para a cidade na totalidade, o transporte pode voltar a ser concorrência dos aplicativos. “Se o serviço de transporte público for bom, a um preço que cabe no bolso da pessoa, ela vai utilizar”, destaca Mario Angelo. 

Segundo Dimas, vem acontecendo uma mobilização pela participação da União para o andamento das operações de transporte público coletivo. Pela primeira vez, o Governo Federal vem se posicionando sobre fortalecer as prefeituras no âmbito das operações de ônibus. 

Em dezembro de 2024, o Projeto de Lei n.º 3.278, de 2021, foi aprovado no Senado Federal, que institui o Marco Legal do Transporte Público Coletivo Urbano. A proposta reconhece o transporte público coletivo como direito social, dever do Estado e o classifica como serviço público essencial. 

Além disso, estabelece que a União, os estados e o Distrito Federal, e os municípios deverão adotar medidas, de modo compartilhado, para organizar os serviços em rede única, intermodal, acessível, abrangente e integrada, respeitando as necessidades e particularidades de cada município.

Para o professor Mario Angelo, a participação federal nos cálculos de subsídios nos ônibus pode ser uma saída para os problemas de cidades além de Fortaleza. Hoje, a União e o Estado entra indiretamente na operação, com a construção de infraestrutura, melhoria de terminais e outros. 

Em nota, o Ministério das Cidades afirmou que realiza estudos e pesquisas para ‘levantar informações atualizados sobre a demanda de projetos de transporte público coletivo e o custo para operar este serviço nas cidades brasileiras’. Isso tem sido feito em diálogo com prefeituras, governos estaduais, operadores privados, cadeia produtiva do setor, academia e sociedade civil.

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Fortaleza em duas rodas

Conforme o Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a capital cearense é a que apresenta maior densidade demográfica do país. Isto é, Fortaleza é a cidade brasileiro que tem o maior número de habitantes por quilômetro quadrado entre as capitais: mais de 7 mil habitantes por km².

Essa quantidade de pessoas precisa se locomover, todos os dias, dentro da cidade para exercer suas atividades — seja escolar, laboral ou de lazer. Aliado a isso, a Região Metropolitana de Fortaleza também é muito grande e seus habitantes também se deslocam para a capital para trabalhar, estudar ou outras circunstâncias. 

Plano próximo de duas pessoas pedalando em uma ciclovia vermelha de asfalto, com a palavra
Vista da rua com duas pessoas em bicicletas, capturadas com desfoque de movimento, pedalando em uma faixa vermelha demarcada ao lado de uma picape branca suja. No fundo, há um prédio moderno de vidro, fiação elétrica aérea e pedestres na calçada.
Ciclista de frente para a câmera, atravessando uma faixa de pedestres sobre uma faixa vermelha, transportando uma caixa de plástico vermelha grande na bicicleta. Um carro preto se aproxima em desfoque no fundo.
Legenda: Malha cicloviária de Fortaleza têm crescido nos últimos anos, bem como melhorias nas infraestruturas
Foto: Thiago Gadelha

"Há um descolamento entre os espaços dotados de emprego, de instituições de trabalho e de ensino, com os espaços que são moradia daqueles que mais usam o transporte coletivo. Com isso, você precisa estabelecer nesses espaços distantes condições para dar acesso rapidamente, já que não é possível mudar a forma de acesso ao solo urbano, à habitação", explica Alexandre Queiroz. "É preciso facilitar que os indivíduos cheguem até os ônibus e que, depois, eles tenham opções mais rápidas de chegar no seu destino ou chegar na sua residência", acrescenta.

Desse modo, é preciso que o transporte coletivo funcione como eixo estruturador dessa necessidade de deslocamento dentro e fora da cidade, da mesma forma que as micromobilidades — como caminhadas e bicicletas — funcionem de maneira articulada aos coletivos. Para o professor, a integração entre os modais de transporte, de forma simultânea e complementar, e uma infraestrutura segura ajudam a incentivar e atrair novos usuários. 

O Eixo IV do PPA estabelece indicadores relacionadas à malha cicloviária e à ligação com o transporte coletivo: “Pessoas vivendo próximo a uma estação do Bicicletar” e “Pessoas vivendo próximo a uma infraestrutura cicloviária protegida”.

  • Hoje, o percentual de pessoas que vivem a até 300 metros de uma estação do Bicicletar é de 51,40%. A meta, conforme o documento, é que esse valor cresça para 56,40% em 2026 e atinja 71,40% em 2029.
  • Já o índice de pessoas que vivem a até 300 metros de uma infraestrutura cicloviária protegida é de 34,50%, com meta de crescer para 37,50% em 2026 e 46,50% em 2029. 

Em relação às infraestruturas cicloviárias de Fortaleza, a melhoria desses espaços é fundamental para tornar o modal viável para ser um meio de transporte no dia a dia. A principal estrutura existente hoje são as ciclofaixas, com 318,4 km ao todo. No geral, elas são demarcadas por uma pintura nas vias e frequentemente acompanhadas de tachões e balizadores. 

Dois ciclistas pedalam em uma ciclovia segregada por um meio-fio em uma grande avenida urbana, com o fundo repleto de prédios e ônibus de transporte público. Há uma placa visível indicando
Legenda: A Avenida Bezerra de Menezes possui uma ciclovia de 3,3 km e é separada fisicamente do fluxo de veículos
Foto: Kid Jr

Recentemente, a Prefeitura anunciou que quer transformar 50 km da infraestrutura cicloviária atual em ciclovias arborizadas, até o final da gestão do prefeito Evandro Leitão (PT). Essa proposta não só torna esses espaços mais seguros para quem pedala, como favorece o conforto térmico dos ciclistas. A primeira via que vai receber esse modelo de infraestrutura será a avenida Dom Luís.

Victor Macedo, coordenador de mobilidade urbana da Secretaria Municipal da Conservação e Serviços Públicos (SCSP), afirma que a maioria dos ciclistas de Fortaleza é composta por pessoas de baixa renda e que se deslocam para o trabalho. Em sua maioria, esse público é de adultos e homens e apenas cerca de 20% são mulheres. 

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Metrôs 

Além da integração entre as bicicletas e o transporte coletivo, os fortalezenses esperam, há anos, a conexão entre os ônibus e as linhas do metrô. Reportagens do Diário do Nordeste publicadas em 2018 e 2022 traziam a promessa de que, por meio do Bilhete Único Metropolitano, os usuários que utilizassem o metrô e o ônibus em Fortaleza teriam um desconto no valor da segunda passagem, conferindo assim uma integração entre os modais. 

No entanto, até setembro de 2025, essa conexão entre os meios de transporte ainda não foi para frente. O professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mario Ângelo, explica que a gestão e a responsabilidade de cada modal pertence a órgãos diferentes, com orçamentos e custos separados. 

Um trem de passageiros na cor verde e branca está parado em uma plataforma coberta de uma estação de metrô. A frente do trem exibe a inscrição
A lateral de um trem de metrô verde e branco, com as portas abertas em uma plataforma coberta. Vários passageiros, incluindo um homem idoso de camisa azul, estão entrando ou saindo. O logotipo do Governo do Estado do Ceará e a inscrição
Um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) moderno, branco e verde escuro, passa ao ar livre. O trem possui um design aerodinâmico. Ele está parcialmente cercado por uma grade de metal e há uma placa de advertência amarela de
Legenda: Desde a inauguração, o VLT Parangaba - Mucuripe funciona gratuitamente
Foto: Thiago Gadelha

Além disso, no caso do metrô, o custo da operação é bem mais cara do que as linhas de ônibus e esse valor entra no orçamento do Metrofor. “Quem opera o metrô também é responsável pela manutenção da linha. Já a empresa que opera o ônibus, ela não tem nada a ver com a construção da avenida ou o pavimento”, explica. 

“Então, você precisa achar um modelo de colocar na panela e que se entenda todo mundo, tanto o Governo do Estado, com todas as prefeituras e que tenha uma estrutura de custo e que tudo opere coordenado, integrado”, ressalta. 

Para Alexandre Queiroz, Fortaleza está "atrasada anos-luz em relação a isso", uma vez que a malha ferroviária é restrita para o tamanho da cidade e não existe a conexão entre esses dois modais. "Isso acontece porque o planejamento metropolitano foi esquecido, nós não temos uma entidade que pense a metrópole", ressalta. 

Em nota, o Metrofor afirmou que um modelo de integração tarifária geral está em estudo e que “a cobrança e o percentual de desconto por deslocamento devem ser definidos em conjunto pelos entes municipais e estadual”.