Casas destruídas, falta de energia e isolados: como estão os moradores de cidades em emergência pela chuva
Em meio aos destroços e à lama deixada, os moradores vão tentando recuperar lembranças afetivas e objetos que amenizem os prejuízos
Sem energia, isolados e procurando nos destroços qualquer objeto que possa ser salvo. Essa é a realidade de famílias que vivem na comunidade de Bananal, em Uruburetama, quatro dias após uma das piores enxurradas registradas no município. Das 7h do último sábado (18) até as 7h do domingo (19), a cidade registrou a maior máxima de chuvas em 24 horas, de 150 milímetros.
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Uruburetama, inclusive, já desponta como a cidade do Ceará com a maior média mensal de chuvas em 2023: 480.7 milímetros acumulados até o dia 21 de março, 71% a mais do que o previsto para todo o mês. Os dados são da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). A intensidade das precipitações levou a Prefeitura a decretar situação de emergência ainda na última semana.
No último sábado, a tarde escureceu mais rápido e transformou a noite em um filme de terror para os moradores da comunidade, como relataram à reportagem. O "pedi para chover, mas chover de mansinho", como cantava Luiz Gonzaga em a Súplica Cearense não veio e logo caiu "toda chuva que há", como já antecipava a música.
"Quando a água subiu, subiu muito rápido", relembra o agricultor Michel Ferreira, de 41 anos, que precisou botar a filha na "cacunda" e amarrar uma corda em uma coluna para conseguir tirar a esposa e a menina de casa naquela noite, tamanha era a correnteza da água que entrou e rapidamente preencheu toda a residência.
"Eu amarrei uma corda lá naquela coluna, aí eu coloquei minha filha na 'cacunda', levei ela em pânico para lá. Peguei minha esposa também, mesma coisa, e levei para lá. Minha esposa ia se soltando e eu 'pelo amor de Deus, tu não se solta, tu não se solta'"
Quatro dias depois do episódio, as marcas da chuva nas paredes da casa não deixam Michel e a família esquecerem o que passaram. Os prejuízos, muito menos. Além de objetos e eletrodomésticos, Michel ainda viu a casa que o irmão construía ao lado ir para o chão.
"Eu não sei nem por onde eu lhe dizer a necessidade, porque é tudo, né? Praticamente tudo. Não perdemos tudo porque nós estamos vivo para reconstruir de novo. Mas eu perdi praticamente tudo: documento, cartão de banco, televisão, a geladeira. A água levou tudo", conta, agradecendo pelos danos terem sido somente materiais e por todos da família estarem vivos.
'Água no pescoço'
Para a idosa Maria Neuza Teixeira, de 76 anos, as lembranças do sábado (18) são de quase morte. A aposentada estava sozinha com a neta quando de repente viu a água "batendo na boca" e sequer pôde terminar de rezar o terço que segurava nas mãos.
"Eu tava deitada, aí me levantei, vim tomar banho e rezar um terço. Tava aqui rezando um terço quando a chuva encheu. Eu ia morrer, porque a água tava batendo aqui na minha boca. A minha netinha Joana me tirou e foi me deixar ali na minha prima Luiza"
"Graças a Deus, estou viva. E já vou rezar um tercinho para Jesus", agradece a idosa pelo livramento.
Filha de dona Maria Neuza, a professora Lúcia Teixeira, de 46 anos, relata que nunca viu um volume tão grande de chuva em tão pouco tempo. As precipitações começaram a se intensificar no fim da tarde, conforme conta. Para ela, foi só "o tempo de acabar com tudo".
"Subiu muito rápido, mas também secou muito rápido. Subiu o tempo de acabar com tudo", relembra.
Ao enumerar as perdas de móveis, eletrodomésticos, alimentos, danos na casa e na energia elétrica, que oscila na comunidade desde sábado, Lúcia não esquece de tentar amenizar a sua situação e de sua mãe ao comparar que todos os vizinhos também estão na mesma situação.
"Os vizinhos não estão nos ajudando porque todos estão precisando de ajuda material", finaliza.
Desabamento
Na casa do agricultor Vicente Martins dos Santos, de 54 anos, a enxurrada "muito rápida" foi suficiente para tirar a casa em que morava há 30 anos. Em toda a sua vida, ele diz que nunca viu uma chuva como a do último fim de semana, apesar de ponderar que a comunidade já sofria com alagamentos no período chuvoso.
"Minha vida foi bem dizer aqui mais de 30 anos. Já tinha entrado água, mas muito pouco. Essa (enchente) agora deu quase no pescoço. Eu tirando as coisas com água aqui nos peitos, e de repente essa água aumentando, aumentando... Aí um amigo meu veio e disse 'Doutor, sai daí', que o meu apelido é 'doutor'. Aí começou cair e eu saí correndo"
Além do prejuízo irreparável com o desabamento da casa, seu Vicente ainda amarga a perda dos remédios para a diabetes da esposa. Há poucos dias, tinha feito a feira do mês e comprado mais de R$ 200 de insulina.
Agora, ele pretende aproveitar os tijolos do único cômodo que ainda está de pé para fazer um novo "cantinho". "Tem que morar mais pra cima, fazer um novo cantinho, porque é próximo à água", explica se referindo ao Rio Angelim, próximo da comunidade e o qual a prefeitura aponta relação com as enchentes registradas.
De acordo com o prefeito Aldir Chaves, a relação do Rio Angelim e do Rio Mundaú com o relevo das áreas afetadas contribuíram para as enchentes e deslizamentos.
Além disso, a comunidade de Bananal chegou a ficar isolada devido às fortes chuvas. Agora, segundo o prefeito, apenas a comunidade de Pau Alto continua com o acesso bloqueado, sem acesso à energia e outros serviços básicos.
O gestor acrescentou, ainda, que a prefeitura tem levado medicamentos e alimentos para a população afetada.
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Itapajé
A pouco mais de 15 quilômetros de distância de Uruburetama, comunidades de Itapajé vivem situação semelhante com as fortes chuvas. No bairro Esmerino Gomes, a população amarga perdas de pertences e sofre em não poder ver mais a própria casa como abrigo seguro.
Na residência da dona de casa Silverlandia Araújo, de 29 anos, o chão do quarto foi literalmente tragado pela força da água. Embaixo da casa dela passa uma espécie de córrego, cujo fluxo foi aumentado com as chuvas.
Até o dia 21 deste mês, a cidade já registrou 287.5 milímetros de volume médio acumulado no mês. A prefeitura também já decretou situação de emergência por conta das precipitações.
'O chão abriu'
Das 7h de sábado (18) até as 7h de domingo (19), o município registrou uma máxima de 98 milímetros de volume de chuva. Nesse período, Silverlandia estava com a filha em casa. No entanto, antes de um buraco se formar no chão de um dos quartos, a filha já tinha ido para a casa do tio porque a casa estava ficando alagada.
"Meu irmão veio pegar minha filha e eu escutando uma 'zuada' aqui (do quarto que o chão cedeu). Quando eu vim olhar, estavam as coisas tudo entrando bueiro adentro. Aquela 'zuada' era a água chupando, a água tava tão forte que tava chupando as minhas coisas"
Na casa em que o autônomo Paulo Sérgio, de 30 anos, vive com a esposa, no mesmo bairro, os objetos boiaram no pico da enxurrada. Para ele, a situação precária do bairro em relação a saneamento faz com que o alagamento de casas no inverno seja algo recorrente. Porém, a chuva do último sábado agravou ainda mais a situação.
"Todo inverno, entra água. Toda época de chuva, a água brota do chão. Esse córrego aqui ao lado, devido ao não suporte de água do saneamento aqui, acumula muito água, penetra no chão. Tanto aqui como na vizinha. Mas nesse ano foi diferente. (...) As coisas boiavam", conta.
Tanto Silverlandia como Paulo Sérgio relataram que agentes da prefeitura de Itapajé foram até o local oferecer o aluguel social para que eles deixassem as casas que estão localizadas em uma área de risco.
No entanto, Silverlandia e Paulo Sérgio reclamaram da burocracia para poder receber a ajuda financeira da prefeitura e do valor do benefício, que é de R$ 250. Segundo eles, não há casas para alugar por esse valor na região.
Procurada, a assessoria de imprensa de Itapajé informou que a prefeitura já decretou estado de emergência e que já atendeu, durante o fim de semanas, dezenas de ocorrências na cidade para ajudar "o máximo de pessoas possível". Segundo a gestão, há menos de 30 pessoas atualmente morando em casas de situação de risco, conforme verificado pela Defesa Civil e técnicos da cidade.
Diante disso, o município disponibilizou escolas como pontos de apoio para as famílias ficarem até a concessão do aluguel social. Além disso, a prefeitura informou que disponibilizou caminhões de mudanças para as famílias que tinham locais para ir e rejeitaram abrigo nas escolas.