População de rua cresce em Fortaleza e ultrapassa 9 mil pessoas; cidade tem apenas dois Centros Pop
Quantidade e estrutura de equipamentos para atender esse público é insuficiente, de acordo com movimentos sociais e órgãos de Justiça
A primeira refeição do dia, única garantida, tem origem certa. É para os dois Centros de Referência para População em Situação de Rua (Centros Pop) de Fortaleza que centenas de homens e mulheres caminham, todo dia, para buscar pelo menos um dos tantos direitos violados no caminho. Uma das unidades, porém – a do Centro –, chegou a ser fechada, nessa quarta-feira (27).
O prédio, um casarão na rua Jaime Benévolo, teve reabertura determinada pela Justiça no mesmo dia, mas o episódio expõe problemas antigos: falta de estrutura, de profissionais e o próprio número irrisório de equipamentos para uma cidade como Fortaleza já são denunciados com frequência por movimentos sociais e órgãos fiscalizadores.
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Sob as marquises e em barracos nas vias públicas da quarta capital do País, dormem, pelo menos, 7.666 famílias, formadas por 9.410 pessoas. É a quantidade de grupos familiares em situação de rua inseridos no Cadastro Único (CadÚnico) em novembro deste ano – inscrição que, aliás, é um dos serviços ofertados pelos Centros Pop.
Um desses dígitos é Tiago, 36, que vive na rua desde 2002, quando rompeu o vínculo com os pais devido ao vício em álcool e drogas, ainda na adolescência. A companhia que o segue e o protege pelas vias, hoje, tem 5 meses de vida, pelo curto e caramelo: a cadelinha Susy.
No Centro Pop do Benfica, na Av. João Pessoa, o homem alto, magro e com olhos de saudade tenta recuperar, dia a dia, parte da dignidade: come, toma um banho, tira a barba e lava a roupa que suja toda noite ao dormir no chão da Praça da Gentilândia.
“A merenda aqui é com força, e ainda dão fruta. Mas num é uma vida muito boa não, senhora. Principalmente no inverno. É cruel. A roupa fica molhada, adoece… Já vi gente morrer, já, por causa do frio”, diz, nos espaços entre os goles que dá no copo de 500 ml de arroz, caldo, frango e verduras, em plenas 8h30.
Pouco antes, às 8h em ponto, Carlos, 57, chegava ao Centro Pop do Centro para tentar renovar um benefício social que recebe. O serviço estava agendado para aquele dia, mas os computadores do equipamento, esvaziado na manhã anterior, ainda não tinham sido reinstalados.
“Me disseram ontem que tava fechado, mas eu vim mesmo assim e graças a Deus tá aberto. E nunca há de fechar, porque a população precisa demais”, reforça, enquanto cumprimenta Jandir, 38, outro que caminha todo dia da Av. Tristão Gonçalves até o Centro Pop.
“Venho buscar alimentação, banho, lavagem de roupa, tudo aqui. Já tirei aqui um encaminhamento pra identidade, fiz meu cadastro pro Bolsa Família… Guardo meus documentos aqui ou no do Benfica, pra não perder, não molhar”, relata o homem, feito refém pela rua há 2 anos devido à dependência química.
Demanda maior que a oferta
Apesar de leis e recomendações federais versarem sobre a instalação dos Centros Pop, estabelecer a quantidade mínima de equipamentos de uma cidade, assim como “localização, espaço físico e recursos humanos”, cabe somente à gestão local, como reforça o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.
A Pasta observa, porém, que “a implantação da unidade deve ser precedida da elaboração de um diagnóstico socioterritorial que identifique as áreas de maior concentração e trânsito dessa população, bem como sua dinâmica de movimentação”. Os dois Centros Pop de Fortaleza são cofinanciados por Governo Federal e Prefeitura.
Para quem acompanha a demanda na prática, porém, o déficit do número de equipamentos na capital é “óbvio”, como descreve Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado.
“Os Centros Pop, além de terem carência de pessoal e de estrutura gigantesca, não atendem à demanda do ponto de vista de localização. Observamos um crescimento grande de pessoas em situação de rua no Papicu e em Messejana, e ausência total não só de Centros Pop, mas de equipes de abordagem social nesses pontos da cidade”, destaca.
A defensora reforça a importância dos dois equipamentos do Centro e do Benfica, que também são regiões atravessadas por essas famílias, mas frisa que o número de pessoas em situação de rua cresce muito mais rapidamente do que as políticas de assistência.
“Temos judicializado a questão do acesso ao aluguel social, por exemplo. Atendemos essas pessoas, tem relatório do próprio equipamento do município atestando que a pessoa faz o perfil de acessar o aluguel social, mas ela não consegue e passa anos e anos na tentativa. Segundo dados da própria SDHDS, existe uma fila de 450 famílias”, informa a defensora.
Além do aluguel social, demandas como acesso a equipamentos de acolhimento, espaços para dormir, acesso à saúde e regularização de processos judiciais também aparecem entre as principais em que a Defensoria Pública do Estado atua junto a esse público.
Seis, e não dois. Seis é o número de Centros Pop que Fortaleza deveria possuir, segundo análise de Messias Douglas, antropólogo e trabalhador do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Ele destaca que as unidades são “é um elo para todos os serviços, programas e projetos e benefícios para as pessoas em situação de rua”.
“Tudo isso articulado por um trabalho social especializado, para fortalecer os vínculos e promover a saída dessas pessoas das ruas – que é muito difícil, mas que a gente tem que partir do pressuposto de que é possível”, pondera o antropólogo.
Messias contextualiza, ainda, que o enfraquecimento das políticas de assistência social como um todo – incluindo o sucateamento dos Centros de Referência, os CRAS – contribui para o aumento vertiginoso do número de pessoas sem ter onde morar.
“A pessoa só vai pra situação de rua porque tem seus vínculos sociais, familiares e comunitários interrompidos. E a função do CRAS no território é promover o fortalecimento desses vínculos. No que fecham ou ficam sucateados, essa capacidade fica comprometida”, analisa.
Para o antropólogo, a situação dos Centros Pop e dos CRAS reflete “descompromisso com uma política tão importante, que garante e articula direitos para os usuários mais vulneráveis através de um trabalho social”.
O que tem sido feito
O Diário do Nordeste questionou a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) sobre os pontos levantados pelos especialistas e pediu informações sobre:
- Número de profissionais que atuam em cada Centro Pop;
- Demanda diária de cada uma das unidades;
- Se havia, durante a gestão, perspectiva de ampliar o número de equipamentos;
- E com qual número de população em situação de rua a Prefeitura de Fortaleza trabalha, atualmente, já que o Censo municipal mais atual indica 2 mil pessoas, o federal indica 6 mil pessoas, e o CadÚnico, 9 mil.
A SDHDS informou, em nota, que “realiza, diariamente, 2.600 atendimentos nos 19 equipamentos municipais de assistência espalhados em diversos pontos da Cidade”, nos quais “são oferecidos alimentação diária, acolhimento institucional, Pousadas Sociais, Centros de Referência com atendimento socioassistencial, Aluguel Social, espaços de higiene cidadã, Centros de Convivência, Casa de Passagem e Refeitórios Sociais”.
Sobre os Centros Pops, a SDHDS frisa que “possuem assistentes sociais, psicólogos, advogados e educadores sociais, que totalizam 18 profissionais”. Na unidade Centro, lista a Pasta, “são atendidas, em média, 215 pessoas, e no Benfica, mais de 160 pessoas”.
“Em relação ao Censo municipal sobre a população em situação de rua, tramita internamente um processo licitatório para contratação de uma empresa especializada”, completa a SDHDS.
Segundo a Pasta municipal, “a gestão tem empenhado esforços para garantir e fortalecer os serviços assistenciais, mesmo diante de significativas reduções nos repasses de recursos”.
“Em 2020, com o início da pandemia, Fortaleza sofreu uma redução de R$ 9 milhões nos repasses do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) em comparação a 2019. Em 2021, houve uma queda de R$ 13 milhões. Para 2024, a estimativa é que o Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS) financie apenas 2% das despesas totais com Assistência Social no município, enquanto a União contribui com 18%, e o Município assume a maior parte, arcando com 80% dos gastos”, finaliza a SDHDS.
Em 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou o “Plano Ruas Visíveis”, voltado para a população em situação de rua por eixos como:
- assistência social e segurança alimentar;
- saúde;
- violência institucional;
- cidadania, educação e cultura;
- habitação;
- trabalho e renda;
- e produção e gestão de dados.
A medida tem investimento federal inicial de R$ 982 milhões, montante a ser distribuído entre estados e cidades que formalizarem interesse em aderir, voluntariamente, por meio de Termo de Compromisso.
De acordo com o MDHC, “o Ceará ainda não formalizou adesão ao Plano Ruas Visíveis”, mas o ministério está “em contato recente com para viabilizar a pactuação deste instrumento no Estado”. Entre as gestões municipais cearenses, nenhuma aderiu ao plano.