As escolas sempre tiveram desafios relacionados à aprendizagem. Inúmeros e históricos obstáculos. Mas, a pandemia de Covid-19, sem dúvida, os acentuou. Em 2022, período letivo, até o momento, mais regular dos últimos anos, nas salas de aula o déficit no aprendizado é evidente.
No Ceará, alunos passaram de ano, mas acham que “não estão no nível adequado”. Veem colegas “atrasados”. Professores reiteram que o problema existe. A situação não surpreende, mas requer ainda mais atenção.
No Dia da Educação, 28 de abril, o Diário do Nordeste aborda a realidade das escolas no Ceará.
As “sequelas da pandemia”, amplamente projetadas na área da educação há 2 anos, são, no atual cenário, de fato, sentidas no dia a dia. Agora, o que deve e pode ser feito? Como lidar com as perdas na aprendizagem e o que na prática, pode recompor esse processo?
No Estado, escolas públicas e privadas retornaram às aulas presenciais ainda em 2021. Mas, 2022 tem sido, até agora, o período letivo com a realidade mais próxima a de um ano regular. É nesse ambiente que professores e estudantes veem o nível de aprendizado estar abaixo do adequado em disciplinas do currículo básico.
As redes estaduais e municipais no Ceará têm traçado prioridades e ações para tentar ajudar a recuperar a aprendizagem dos estudantes. Mas, na ausência de orientações mais amplas, as próprias escolas, ou até mesmo os professores por iniciativas individuais, têm investido para tentar auxiliar nesse processo.
“Não acho que a turma esteja no nível que está cursando”
Apesar das diferenças nas redes, o desnível é uma realidade sentida de modo generalizado. Em Brejo Santo, na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Professor José Teles de Carvalho, a estudante Ana Karoline Leite explica que “o retorno foi natural e tranquilo para alguns, mas para outros foi um pouco mais assustador”.
Com a pandemia, diz ela, muitos dos colegas “tiveram e têm dificuldade em acompanhar o conteúdo da época e o de hoje”.
“Infelizmente, não acho que a turma esteja no nível que está cursando. Isso me preocupa. Principalmente, por conta do Enem, que é o exame mais importante para nós, estudantes”.
Na instituição, ela garante que os professores foram acolhedores e os funcionários essenciais. Um ponto a ser considerado, destaca, é que os estudantes na volta estão retomando rotinas, cumprindo novamente horários mais extensos de aulas, como a permanência dela na escola que é 7h às 16h40.
Em Fortaleza, na Escola de Ensino Fundamental e Médio Padre Rocha, o estudante também do 3º ano, Alison Wesley da Silva, diz que as aulas são divididas em 2 momentos: uma parte com conteúdos do 3º ano, e outra com revisão do que “deveria ter sido aprendido no 1º e 2º ano".
Na escola, relata, as aulas presenciais voltaram em setembro de 2021. Mas em 2022, a "defasagem" ficou mais expressiva.
“Fiz os dois anos do Ensino Médio no remoto. No terceiro ano deveria focar no Enem, mas temos que focar em revisar conteúdos passados. Diversas escolas estão assim”.
Redes realizaram avaliações diagnósticas
Em 2021, quando voltou às aulas presenciais, ele diz que foi realizada pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc), uma avaliação diagnóstica, justamente para saber o nível de aprendizado dos alunos. Esse ano, a avaliação foi novamente aplicada.
O Diário do Nordeste perguntou à Seduc, em linhas gerais, o que os resultados dessas avaliações evidenciaram.
Em nota, a pasta informou que a avaliação diagnóstica “foi desenvolvida para identificar a situação de aprendizagem dos estudantes. Essas informações são destinadas aos professores e gestores para subsidiar seus trabalhos, com o intuito de promover a recomposição das aprendizagens”.
Um exemplo desse desnível no País, é que em março, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo divulgou dados do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar (Saresp).
O diagnóstico apontou que estudantes da rede estadual terminaram o Ensino Médio em 2021 com uma defasagem em matemática de quase 6 anos. Em português, a defasagem foi de 4 anos.
O estudante da Escola de Ensino Fundamental e Médio Dom Helder Câmara, em Fortaleza, Matheus Bruno Félix, reitera a ocorrência do problema. A opção individual para tentar recuperar o aprendizado, conta, foi entrar no cursinho pré-vestibular da UFC. “Estou pegando toda a base e revisando tudo”, garante.
“É gritante o desnível porque quando eu voltei do ensino remoto, nem eu, nem a maioria dos alunos conseguiu absorver o conteúdo. Se for aplicado uma prova de Ensino Fundamental, a maioria não vai conseguir fazer. O professor é obrigado a passar conteúdo referente à série. Alguns tentam, por ações individuais, fazer isso (revisão)”.
Ele ressalta que acreditou que, ao voltar às salas de aula, os professores iriam revisar o conteúdo dos anos anteriores. Mas, em geral, relata, isso não ocorreu. “O nível de aluno do terceiro ano é o mesmo do primeiro ano. Existe esse desnível muito grande. Nenhum aluno na minha sala sabe fazer uma regra de três. E é básico”.
“Aprovados sem ter a base tão solidificada”
Em Itapajé, a professora de Matemática na Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP), Adriano Nobre, Tyara Lima, diz que as atividades presenciais foram retomadas em 2021, mas “o baque, nós só viemos sentir esse ano”.
Na percepção de Tyara, muitos estudantes se acostumaram a estar em casa e não estudaram de forma contínua nos anos anteriores. “Isso fez com que eles deixassem de aprender muita coisa e gerou uma falha, uma quebra”. De acordo com ela, ocorreram promoções de uma série a outra, mas sem conhecimento em nível adequado.
“Eles foram aprovados para a série seguinte sem ter a base tão solidificada. Não digo isso sobre todos. Alguns estudantes conseguiram, mesmo em meio à pandemia, continuar estudando, mantendo o ritmo de estudo e continuar aprendendo. Não é só o fato de você estar na frente do computador, mas o quanto, de fato, está redendo aquele conhecimento”.
Na Escola Municipal Professora Belarmina Campos, em Fortaleza, o professor de História, Pedro Monteiro, trabalha com as turmas do 6º, 7º e 8º ano e diz que há dois problemas detectados no retorno às salas: o aumento expressivo do número de alunos em cada turma e as lacunas na consolidação da alfabetização.
“As turmas que hoje estão no sexto ano estavam na consolidação da alfabetização, essa consolidação acabou não sendo feita direito. Alunos do sétimo ano estão dizendo ‘professor não sei ler".
Pedro enfatiza que, embora afete todas as disciplinas, as lacunas na alfabetização geram consequências para todas as demais.
“Se o aluno não consegue ler uma questão, ele não consegue fazer questões de matemática. Se a consolidação da alfabetização não foi bem feita, inevitavelmente esse aluno vai entrar na série seguinte com problemas de alfabetização em todas as áreas”, acrescentou.
Do reforço na alfabetização às aulas de cursinho
Os relatos ouvidos pelo Diário do Nordeste também indicam que apesar de não serem uma política generalizada, ações estão sendo adotadas para reverter o desnível. Em algumas escolas de Ensino Médio da rede estadual, os alunos do 3º ano têm aulas de cursinho no turno da noite.
Em Itapajé, a professora de Matemática na Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) Adriano Nobre, Tyara Lima, explica que o foco na recomposição da aprendizagem “é a palavra de ordem do momento”.
“Não adianta a gente correr com conteúdo pra dizer que viu e o aluno não aprender. A nossa meta é que o nosso aluno aprenda. Que a gente consiga, de fato, recompor essa aprendizagem, mais do que fazer um nivelamento, a gente precisa proporcionar a ele aquilo que não teve durante esse tempo de pandemia".
As aulas presenciais, destaca ela, conseguem “chamar mais a atenção do aluno e fazer com que ele fixe mais o conteúdo”. Na escola, em paralelo às aulas, estão sendo feitas revisões.
Outro ponto, enfatiza ela, é tentar desacelerar. “Embora sejamos bastante conteudistas e o professor, de um modo geral, queria ver seu conteúdo em tempo hábil, a gente entende que agora não dá mais pra ser feito dessa forma”.
O trabalho de revisão, afirma, é feito por professores, por alunos que são monitores e deve envolver toda a comunidade escolar.
Na Escola Municipal Professora Belarmina Campos, em Fortaleza, o professor Pedro Monteiro diz que há atividades de alfabetização no contraturno. Ele defende que o ideal é a Prefeitura aumentar a carga horária da rede municipal e bancar esse investimento.
A Secretaria Municipal de Educação (SME) de Fortaleza foi indagada sobre os déficits de aprendizagem, mas não respondeu até a publicação desta matéria.
O estudante da Escola Dom Helder Câmara, em Fortaleza, Matheus Bruno, explica que na instituição, os professores que têm mais tempo, disponibilizam também materiais online.
“Meu professor de Matemática tem um canal no Youtube e disponibiliza aula lá. O problema é que nem todos os professores conseguem fazer isso. E não é uma ação da escola como um todo”.
Questionada pelo Diário do Nordeste sobre as ações desenvolvidas, a Seduc informou que as atividades de recomposição de saberes “acontecem no âmbito do Foco na Aprendizagem, programa que orienta o trabalho pedagógico desenvolvido, por meio da formação continuada dos professores, do uso de material didático estruturado e do projeto de tutoria em Língua Portuguesa e Matemática”.
A rede também foi orientada, acrescenta a nota, “a fortalecer a formação de vínculos entre a escola e os diversos atores que a compõem, incentivando o acolhimento e a busca ativa, por exemplo”.
Em 2021, o Governo do Ceará, informa a Seduc, lançou o Projeto Aluno Monitor da Busca Ativa Escolar.
Mil bolsas para estudantes monitores de 670 escolas. Em 2022, a iniciativa terá sua continuidade assegurada.
No âmbito do Programa Ceará Educa Mais, a Seduc diz que desenvolveu um Projeto de Educação Híbrida para o período de 2021 a 2031. A iniciativa, conforme a pasta, “envolve múltiplas aprendizagens, com inovação para a sala de aula, combinando tecnologias educativas, ambientes virtuais e presenciais”.
Olhar para alunos de baixa renda
Para o diretor fundador do Instituto de Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), Ernesto Martins, as avaliações diagnósticas realizadas no Ceará em 2021 e 2022, são um passo inicial e relevante.
Entender como está a situação atual, tanto dos alunos como dos professores, por meio de avaliações e diagnósticos, afirma ele, é um dos eixos estruturantes. Saber “onde estão essas dificuldades. Como foi o ensino em casa”, completa.
Além disso, destaca, com as defasagens acumuladas, os professores precisam estar próximos dos alunos. Outro ponto, é a equidade. “Certamente quem mais sofreu com a pandemia são alunos em condições de vulnerabilidade. Alunos de baixa renda”.
Então, é necessário ter atenção e identificar quais alunos precisam de mais suporte. “As ações não podem ser só aplicar avaliações, mas aplicar questionários e tentar entender que têm alguns grupos que merecem algum tipo de atenção mais específica. É importante olhar para os alunos que também tem mais dificuldade para aprender”.