Por que escolas indígenas do Ceará ficarão fora da universalização do tempo integral em 2026
Das 776 escolas públicas da rede estadual do Ceará, ao menos 687 devem ofertar ensino em tempo integral até o fim de 2026. A iniciativa de ampliar a jornada escolar é discutida no Estado há mais de quatro anos, e foi assumida como meta pelo governador Elmano de Freitas (PT). Mas, apesar da ideia de universalização do modelo, na prática, a mudança não alcançará toda a rede. Ao menos 79 escolas, entre indígenas e Centros de Educação de Jovens e Adultos (Ceja), seguirão em regime parcial. Mas por que essas unidades ficarão de fora do processo?
Hoje, no Estado 531 escolas da rede estadual, de distintos modelos, funcionam em tempo integral. Nesse conjunto há escolas de jornada ampliada sem formação profissionalizante; escolas de educação profissional; escolas do campo; escolas militares; e uma unidade quilombola. Em todos esses formatos, os alunos ficam na escola em dois turnos, com jornadas diárias que variam entre 7, 8 e 9 horas de aula.
No Ceará, segundo a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), dos 184 municípios, somente 7 cidades (Barreira, Missão Velha, Orós, Pindoretama, Tururu, Uruoca e Ibiapina) ainda não contam com unidades da rede estadual em tempo integral. Em 2026, 156 escolas, também de diferentes modelos, se tornarão de tempo integral, enquanto outras 79, ao menos por ora, permanecerão no regime parcial, no qual os alunos passam um turno na unidade.
O Diário do Nordeste publica neste mês uma série de matérias para discutir como está a tentativa do Governo do Estado de cumprir a promessa de universalizar o tempo integral no ensino médio das escolas da rede pública estadual em 2026, detalhando o número de unidades que ainda precisam efetivar a política, assim como os diferentes impactos para a comunidade escolar.
A resposta para essa não inclusão no processo, segundo diferentes agentes da área da educação ouvidos pelo Diário do Nordeste, é muito mais conectada ao respeito às especificidades de cada unidade, do que a uma exclusão propriamente. As escolas que ficaram fora da meta têm características próprias, como público atendido, organização pedagógica e contexto social, e isso exige um debate mais aprofundado antes da implementação da mudança.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a secretária executiva do Ensino Médio e Profissional da Seduc, Jucineide Fernandes, destacou o compromisso do Estado em assegurar, até 2026, a ampliação do ensino em tempo integral de forma abrangente.
A resistência (ao tempo integral) não é um desafio grande para a gente. Está bem equacionado, tem muita procura pelas escolas de tempo integral e estamos caminhando bem nesse sentido. Inclusive com o PAIC fortalecendo os municípios para eles ofertem o tempo integral no 9º, depois no 8º e no 7º ano.
Segundo ela, uma evidência de que política de integralização da jornada escolar no Ceará tem se consolidado é que algumas escolas que não faziam parte do planejamento inicial como, as quilombolas e militares, passaram a adotar o modelo, em determinados casos, a partir de demandas das próprias comunidades escolares, iniciando assim o processo de integralização.
Considerar a realidade das comunidades
No Ceará, o processo de estruturação das escolas indígenas começou no final da década de 1990, e hoje a rede estadual tem 44 unidades do tipo, que recebem alunos de 13 etnias, são elas: Jenipapo Kanindé, Tapeba, Pitaguary, Tremembé, Anacé, Tapuya Kariri, Kanindé, Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Tubiba Tapuya, Gavião e Tabajara.
Nessas unidades, as dinâmicas de funcionamento são diferenciadas, com ofertas educacionais variadas. “De modo geral, há uma diversidade de situações”, explica o professor Fábio Jenipapo-Kanindé, coordenador da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (OPRINCE).
Ele destaca que algumas escolas indígenas ofertam exclusivamente o ensino fundamental, seja nos anos iniciais ou finais, enquanto outras já avançaram para a oferta do ensino médio. Há ainda situações, diz ele, em que uma mesma unidade atende simultaneamente ao ensino fundamental e ao ensino médio, embora essa configuração não seja homogênea em todo o estado.
Essa diferença está diretamente relacionada às condições estruturais das escolas, à organização dos territórios, ao número de estudantes, à formação de professores e às políticas públicas implementadas ao longo do tempo.
Por isso, aponta ele, “quando se discute qualquer mudança mais ampla, como a ampliação da jornada escolar ou a universalização do tempo integral, é fundamental considerar essa diversidade de contextos e etapas ofertadas”, de modo a evitar generalizações, aponta, e “respeitando as realidades específicas de cada escola e de cada povo indígena”.
A educação escolar indígena está prevista na Constituição Federal 1988 e também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) que assegura às comunidades indígenas o direito à educação diferenciada, específica e bilíngue.
De acordo com ele, no processo de universalização do tempo integral, representantes da Seduc procuraram a OPRINCE para iniciar um diálogo com as comunidades indígenas sobre a possibilidade da ampliação da jornada nas escolas indígenas.
A partir desse contato, diz ele, foram realizadas escutas “junto às comunidades e, de forma geral, a resposta foi bastante clara: para que a educação em tempo integral possa, de fato, acontecer nas escolas indígenas, é necessário, antes de tudo, investir em melhorias estruturais e físicas nas unidades escolares e, em muitos casos, na construção de novos espaços”.
Necessidade de melhorias
O coordenador da OPRINCE, professor Fábio Jenipapo-Kanindé, também ressalta que a maioria das escolas indígenas ainda enfrenta limitações de infraestrutura que dificultam a ampliação da jornada escolar, como a ausência de refeitórios adequados, espaços para atividades culturais, esportivas e pedagógicas diferenciadas, além de condições apropriadas para permanência prolongada dos estudantes.
Assim, aponta ele, o debate sobre a implementação da educação em tempo integral nas escolas indígenas não pode se limitar às normas e propostas administrativas. A decisão, portanto, portanto, deve ser analisada com cautela e serenidade, já que a universalização do tempo integral no ensino médio “é uma política relevante, com potencial para gerar avanços significativos”, mas na educação escolar indígena, tem condições específicas.
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No caso das escolas indígenas do Ceará terem ficado fora dessa política, entendo que isso pode ser visto menos como uma exclusão e mais como um reconhecimento de que não se pode aplicar um modelo único a realidades tão diversas. A educação escolar indígena é diferenciada, intercultural, bilíngue ou multilíngue, e precisa dialogar com o calendário cultural, com as atividades comunitárias, com os saberes tradicionais e com as responsabilidades que muitos estudantes assumem em seus territórios.
Ele reforça ainda que “não defendemos a negação de políticas públicas, mas o direito de pensar modelos próprios de educação integral, que respeitem nossas realidades e fortaleçam a permanência dos jovens na escola sem romper seus vínculos comunitários, culturais e territoriais”.
Dentre os aspectos positivos que a ampliação da jornada pode trazer para os alunos indígenas, ele destaca, que do ponto de vista pedagógico, há possibilidades de fortalecimento de atividades culturais, oficinas de saberes tradicionais, práticas esportivas, artísticas e ações que valorizem a identidade indígena.
Por outro lado, reflete, “é preciso reconhecer que esse modelo também pode gerar impactos negativos se for implantado sem considerar a realidade das comunidades”.
Isso porque, aponta ele, nas escolas indígenas, “a educação não acontece apenas dentro da sala de aula. Ela está profundamente ligada ao cotidiano comunitário, às práticas culturais, às atividades produtivas, aos rituais, às assembleias, às vivências no território e ao convívio com os mais velhos. Muitos estudantes participam ativamente da vida da comunidade e têm responsabilidades familiares e coletivas que fazem parte do seu processo formativo”.
O professor de Política Educacional da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ruy de Deus e Mello Neto, reitera que as escolas indígenas, embora possam, em determinadas circunstâncias, adotar o tempo integral, “possuem organização, tempos e estruturas próprias, o que requer modelos específicos capazes de atender às suas particularidades socioculturais e pedagógicas”.
Ele também reforça que alguns modelos educacionais diferenciados, como a educação indígena e a Educação de Jovens e Adultos “não comportam facilmente a lógica de uma escola integral tradicional”.
No caso dos 34 CEJAs da rede estadual, eles também não serão enquadrados, por ora, na universalização do tempo integral. O professor aponta que, nesse caso, o perfil de estudantes fora da faixa etária regular exige uma lógica formativa distinta, já que dificilmente esse estudante adulto dispõe de tempo e de condições para aderir a um modelo de ensino em tempo integral.